Você está aqui

Marco legal das ONGs - discussão no seu devido lugar

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Marco legal das ONGs - discussão no seu devido lugar


O debate sobre o marco legal das ONGs avançou um pouco mais na semana que passou. Há tempos tendo eco somente entre as organizações da sociedade civil organizada, a discussão chegou, mesmo que simbólica e seminalmente, ao Congresso Nacional. Isso foi possível com a realização do seminário "Marco legal das ONGs em debate no Congresso Nacional" em plena Câmara dos Deputados - mais especificamente no auditório Nereu Ramos - no dia 4. A iniciativa foi da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong), junto com o Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (FBOMS), o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), a Rede de ONGs da Mata Atlântica, a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e o Instituto Socioambiental (ISA).

Como se tem pretendido influenciar nas propostas que tramitam no Congresso envolvendo ONGs, o evento foi estratégico para levar aos parlamentares o que pensa, discute e defende o conjunto de organizações que vem debatendo exaustivamente o tema. Para isso, contou com palestrantes como a deputada Ann Pontes, relatora do polêmico projeto de lei (PL) 3.877/2004 - criado no Senado, a partir da CPI das ONGs -; o deputado Eduardo Barbosa (PSDB/MG), membro da Comissão de Seguridade Social e Família; o deputado Luiz Couto (PT/PB), vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias; o senador Flávio Arns (PT/PR) e o senador Cesar Borges (PFL/BA), autor do texto substitutivo ao PL 7/2003, aprovado no Senado e transformado em PL 3.877/2004 quando chegou à Câmara. Além, naturalmente, de representantes de algumas das entidades organizadoras.

Também estiverem presentes, assistindo ao evento, os deputados Luiz Alberto Santos (PT/BA) e Augusto Nardes (PP/RS) e a deputada Fátima Bezerra (PT/RN), presidente da Comissão de Legislação Participativa. Estava prevista ainda a participação, como palestrante, da senadora Fátima Cleide (PT/RO), que não compareceu por razões de saúde. Foram realizados uma mesa de abertura e dois painéis, ambos seguidos de debates com a participação da platéia, que ocupou mais da metade dos 200 lugares do auditório. Os painéis tiveram como temas "O papel das ONGs na cena política" e "Desafios na construção de um marco legal das ONGs".

As exposições dos painéis e as participações do público espelharam a diversidade de temas que vem pontuando o debate sobre um marco legal para as ONGs. Mais do que discutir o conteúdo de leis, o evento serviu para uma reflexão sobre o espaço e a própria forma de atuação das ONGs – e como as leis têm de refletir a importância que elas têm tido como atores políticos essenciais à plena expressão da democracia. "O evento acabou servindo para colocar o debate do marco legal no campo político, não no jurídico", disse à Rets Taciana Gouveia, da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e diretora de desenvolvimento institucional da Abong.

Tanto nas falas dos palestrantes quanto na participação do público - formado, em parte significativa, por representantes de ONGs -, o que se salientou foi que a discussão sobre o marco legal deve levar em conta a dinâmica social e política que vem se firmando com a atuação política das organizações não-governamentais. Em uma intervenção durante os debates, Iara Pietricovsky, coordenadora do Inesc, argumentou: "O que estamos vendo neste evento é o debate não só sobre leis que queremos, mas sobre a democracia que queremos. Democracia esta que nos últimos anos vem mudando: deixando de ser meramente representativa e passando a ser participativa".

O ponto de vista de Iara foi compartilhado por participantes das mesas, que defenderam a necessidade urgente do reconhecimento desse papel político e participativo que as ONGs têm tido - e estimulado -, ao proporem temas para a agenda pública, executarem programas e ações inovadoras que atendem demandas sociais, lutarem pela diminuição de desigualdades etc. Toda esta atuação reflete, portanto, o caráter de interesse público das ONGs, no sentido de que realizam atividades de fim público, que beneficiam a esfera pública e a sociedade como um todo. Como explica o diretor geral da Abong, Jorge Eduardo Durão, "é preciso fazer a distinção: público não é estatal, não se restringe a isso". Para ele, as organizações têm executado diversas ações que "não são necessariamente complementares ou suplementares ao Estado, porém são da mesma forma públicas, como as ações junto à própria sociedade, de conscientização e sensibilização para temas como igualdade de raça e de gênero", explica.

Durante sua apresentação, José Antônio Moroni, diretor de Relações institucionais da Abong, ressaltou que o entendimento do fim público das ONGs não deve se retingir às ações de complementaridade ao Estado - "por exemplo, a execução de políticas de atendimento na área de saúde" - e às de suplementaridade, agindo onde o Estado tem ficado ausente. "O entendimento de fim público não pode se restringir à relação das organizações com o Estado, mas, sim, englobar a noção de que as ONGs fazem um trabalho com e para a sociedade, como as políticas de aumento da participação social", lembrou.

Para alguns dos palestrantes, essa posição política das ONGs tem incomodado e, por isso, acaba provocando a criação de projetos de lei que tentam cercear as atividades das organizações ou lhes impor maior controle. De acordo com informações fornecidas por Silvio Rocha Sant'Ana, da Fundação Grupo Esquel Brasil, segundo mapeamento feito pela organização, há atualmente 24 proposições envolvendo ONGs no Congresso. "A questão das ONGs tem sido recorrente na agenda e nos projetos apresentados na Câmara e no Senado. Por que incomoda tanto? Porque, a partir do momento em que as organizações estão surgindo como atores políticos fortes, estão ferindo, incomodando interesses", acredita Moroni, do Inesc. Taciana, em sua palestra, defendeu a mesma coisa, com outras palavras: "Implementando-se direitos, perdem-se privilégios", disse ela, referindo-se à busca de organizações pela garantia de novos e antigos direitos.

Esse "incômodo" que as ONGs representam refletiria, assim, em projetos de lei como o já citado 3.877/2004, entre muitos outros. Esse PL foi objeto de comentários específicos de diversos participantes dos painéis, que, de uma maneira geral, rejeitam o texto da proposta, considerando-o cerceador e com o objetivo de limitar e colocar entraves a uma atividade garantida no artigo 5º da Constituição Federal: a liberdade associativa. "No artigo 3º do PL, diz-se que as organizações têm de prestar esclarecimentos sobre 'informações que sejam consideradas relevantes para a avaliação de seus objetivos'. Cadê a liberdade de associação garantida na Constituição?", indaga Moroni. O sentimento geral é de que, ao se discutir e elaborar uma legislação para o setor, este projeto de lei deve ser refutado, nem sequer adaptado. "Devemos ampliar o escopo da discussão, não podemos nos conformar com debate sobre o PL 3.877, pois este é um projeto de controle e cerceamento", afirma Durão.

Outro ponto fortemente debatido no seminário foi a necessidade de entendimento e delimitação do vasto campo das organizações sem fins lucrativos, ponto que repetidamente vem sendo abordado nas discussões promovidas pela Abong. É preciso entender a heterogeneidade e diversidade de fins para que se possam criar leis efetivas e eficazes no esforço de regular a relação com o Estado e de conferir transparência à atuação dessas entidades. Só para se ter uma idéia: estudo lançado em dezembro pelo Ipea e pelo IBGE, com a parceria da Abong e do Gife, indica que existem 276 mil fundações e associações civis sem fins lucrativos (formas jurídicas possíveis de uma ONG). E, dentro deste universo, existem instituições (como hospitais, universidades, associações profissionais e patronais, igrejas etc.) que não se encaixam no conceito que se costuma associar ao termo ONG - denominação que comumente identifica entidades que buscam transformação social, garantia e defesa de direitos, exercício da cidadania, luta contra desigualdades etc. Compreender essas diferenças e sutilezas é necessário para saber para quem se está legislando e, portanto, para a criação de um marco legal adequado para as organizações.

Essas questões foram o cerne das discussões do seminário. Foi essa a mensagem que as ONGs do campo Abong conseguiram levar para a Câmara dos Deputados. Durante o evento, a senadora Fátima Cleide, em bilhete justificando sua ausência, declarou-se aberta a contribuir para a questão e ajudar no debate sobre o marco legal dentro do Congresso. Na mesa da qual participou, o senador Cesar Borges lamentou essa discussão não ter acontecido antes - quando o PL 3.877 tramitou e foi votado no Senado, período em que ele teve que elaborar um substitutivo - e também se colocou à disposição para discutir o assunto e, segundo afirmou, "patrocinar uma Proposta de Emenda Constitucional, Lei Ordinária ou qualquer proposta, que surja com um mínimo de consenso, para regulamentar o setor".

Representantes de ONGs envolvidas no seminário avaliaram positivamente o evento. Para o diretor geral da Abong, "ficamos felizes de conseguir a participação de senadores e deputados de diferentes partidos. O senador Cesar Borges apontou que houve, na época da votação do PL 3.877 no Senado, um processo insuficiente de mobilização das ONGs e outras entidades da sociedade civil. Demos um passo necessário nesse sentido, tivemos que fazer um acúmulo intenso de discussões, elaborando a cartilha Ação das ONGs no Brasil, que entregamos nos gabinetes dos parlamentares".

Para Kláudio Cóffani, da RMA - outra das organizadoras do evento - e do Instituto Vidágua, este foi um início de diálogo formal entre a sociedade civil e o Congresso. "A sociedade civil organizada precisa, agora, procurar outras formas de diálogo, minimizar conflitos e depurar conceitos", acredita. "As ONGs têm que, agora, montar grupos de trabalho e ir ao Congresso debater projetos - seja para propor um próprio, seja para adequar o que já existe", completa. Para Taciana Gouveia, esse é um processo de aproximação lento, em que se tenta criar um diálogo que hoje ainda não existe. Ela reclama da falta de presença massiva de representantes da Câmara ou de seus assessores - "ou, se houve, não se manifestaram", diz -, mas reconhece o efeito simbólico do evento, "o que também é muito importante", afirma.

Durão acredita que os próximos passos devem incluir um ponto que considera central: o estabelecimento de um marco político de relação entre Estado e organizações da sociedade civil. "Não há uma lógica clara. Na Alemanha, por exemplo, existe o princípio da subsidiaridade, que ao menos orienta essas relações. No Brasil, há um conglomerado de leis feitas em momentos diferentes, em contextos diversos, para regular atividades que aconteciam em circunstâncias diferentes das de hoje. A elaboração do marco legal das ONGs passa pela revisão da legislação existente. Há leis arcaicas", afirma.

O diretor geral da Abong gostou da idéia levantada pelo deputado Eduardo Barbosa durante sua palestra, que sugeriu a realização de audiências públicas, dentro da Câmara, enfocando sempre algum dos temas centrais da discussão. "Acho que este pode ser um caminho para as nossas próximas ações concretas." Taciana complementa: "Temos de usar a estratégia que os movimentos têm usado sempre: de pegar pelo pé da palavra. Já que alguns deles se mostraram abertos e se colocaram à disposição, temos que aproveitar. Devemos aumentar a pressão no parlamento, sem deixar de legitimar o debate junto à sociedade civil. Porque se não tiver apoio da sociedade civil, não passa", conclui.

Maria Eduarda Mattar

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer