Autor original: Maria Eduarda Mattar
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Tramita desde fevereiro na Câmara dos Deputados o projeto de lei 4776, de 2005, encaminhado pelo Executivo. A proposta pretende criar três formas de gestão de florestas públicas: a criação e a gestão direta de Florestas Nacionais (flonas), a destinação às comunidades locais e a concessão florestal, a ser aplicada em florestas naturais ou plantadas e nas unidades de manejo das Florestas Nacionais. Em outras palavras, cria a possibilidade de gestão de florestas nacionais pelo setor privado, através de concessão ou aluguel.
Mesmo recente, o PL já causou muita polêmica, especialmente por estar tramitando em regime de urgência – o que pode vir a prejudicar o debate e a reflexão adequados a respeito do tema. O debate é necessário, o que fica evidenciado até mesmo pela criação, dentro da Câmara dos Deputados, de uma Comissão Especial para análise da matéria, integrada pelas Comissões de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural; Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; Trabalho, de Administração e Serviço Público; Finanças e Tributação e Constituição e Justiça e de Cidadania.
As reações de diversos setores da sociedade acabaram resultando em uma espécie de movimento contrário à proposta. Uma das pessoas que integram este movimento informal é o geógrafo e presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o professor da Universidade de São Paulo (USP) Aziz Ab'Saber. Nesta entrevista, ele expõe as razões que o fazem questionar a proposta do governo – o qual critica por demonstrar desconhecimento –, classificando-a como “um descalabro” em alguns pontos. “O maior problema é a ética com o futuro”, indigna-se.
Rets - Qual seria, exatamente, a função do setor privado na gestão de florestas públicas, de acordo com o PL? Quais são os principais problemas que o senhor aponta nesta proposta?
Aziz Ab’Saber - Em primeiro lugar, o setor privado está dentro do sistema capitalista, dentro do sistema de obter rentabilidade com qualquer tipo de atividade. E, no caso de aluguel de florestas nacionais, as flonas, para particulares, a situação ainda é mais complicada, porque os particulares poderão ser brasileiros ou do exterior. E, nesse caso, eles estarão preocupados em ter rentabilidade com a exploração da floresta.
Essas flonas foram organizadas quando o manto florestal da Amazônia ainda era muito bem preservado. Então isolaram-se algumas áreas para se pensar mais tarde sobre a possibilidade de fazer uma silvicultura seletiva tirando um pouco de proveito delas. Acontece que 20, 30 anos depois deste quadro de preservação integrada, abriu-se um enorme espaço fora dessas flonas. Houve uma degradação conectada ao longo de rodovias, de ramais, de sub-ramais, de espinhelas de peixe. E, na medida em que foram estabelecendo pequenas ou grandes fazendas do tipo agropecuário, ou apenas uma experiência qualquer, sem nenhum conhecimento da resposta do solo degradado, evidentemente que as flonas agora constituem reservas de biodiversidade.
E pretender conceder flonas a ONGs estrangeiras ou alugar para particulares é de uma idiotice fantástica. Somente mesmo quem não conhece a Amazônia, quem não sabe interpretar o que aconteceu fora das flonas, quem nunca se preocupou com o futuro da biodiversidade regional pode pensar nisso.
Se, em 13 anos, exploraram 50,5% da área na região da PA-150, uma estrada que vai de Belém até o sul do Pará, imagina o que vai acontecer daqui a 50 anos. Especialmente em uma área que hoje é um Estado paralelo, dominada pelos fazendeiros e pelos madeireiros.
Rets - Aliás, a indústria madeireira ilegal iria gostar da possibilidade, não?
Aziz Ab’Saber - Mas é claro! E outra coisa: há uma esperança de que essa proposta passe e eles possam fazer o que quiserem. Aliás, já vêm fazendo o que querem. Nas propriedades privadas nesse centro-sul do Pará, a mentalidade é a seguinte: "a propriedade é minha, eu faço o que quiser, como quiser e quando quiser".
E um governo mal-orientado – muito mal-orientado –, sobretudo no Ministério do Meio Ambiente e também no Ministério da Agricultura, pouco está procurando entender a força do grupo que se apossou do território e arrasou com imensas áreas no centro-sul do Pará. Eles alegam que não têm recursos para fiscalizar etc. Em primeiro lugar, não têm é inteligência para planejar uma fiscalização, um gerenciamento, para evitar esse Estado paralelo que ali se colocou e para o qual o governo central não tem nenhum olhar. O Executivo Federal fica, muito razoavelmente, pensando em relações internacionais, e esquece de cuidar do Brasil.
Estamos em uma situação desesperadora em relação à Amazônia. Ela é observada pelo mundo inteiro sob duas óticas. A primeira é a de evitar a devastação consentida. A segunda é: "quem sabe conquistaremos – direta ou indiretamente – esse grande espaço tropical, com grandes riquezas de água doce, florestais e outras ainda” – que, na verdade, já foram compradas durante a privatização da Vale do Rio Doce e durante a exploração da Serra do Navio, no Amapá.
Ou seja, a minha indignação é por motivos muito combinados. Não posso entender que um governo que queira fazer concessão de florestas nacionais – dentro de um esquema que não é o do passado, quando não havia muita devastação, mas em um esquema em que elas são as grandes reservas de biodiversidade do momento – diga: "vamos fazer concessões, desde que sejam auto-sustentáveis". Pois esse governo, em todos os níveis, não sabe o que é uma exploração auto-sustentável. Como é que ele pode imaginar que ONGs estrangeiras, da região pré-alpina ou subalpina da Suíça, por exemplo, venham ao Brasil para fazer uma exploração amazônica auto-sustentada?
E quanto ao aluguel, muito pior. Se forem alugadas as flonas para, por exemplo, grupos estrangeiros de olho nessas florestas, o que vai acontecer é que outros governos que daqui a dez, 15 anos queiram cortar o contrato, não poderão. Pois o contrato vai ser discutido em nível jurídico internacional. Então a luta pela preservação das flonas tal como elas estão e obter um outro tipo de economia auto-sustentada, nas bordas das florestas já devastadas, é o principal.
Como quem critica também tem que fazer sugestões, a minha é de que se copie o projeto-piloto implementado na fronteira de Rondônia com o Acre, na região de Nova Califórnia e arredores, e que se tente utilizar as bordas da floresta, onde sempre tem umidade residual (eu costumo dizer que são os cabelos úmidos da floresta) e luminosidade forte. A partir daí, seriam desenvolvidas culturas amazônicas (açaí, cupuaçu etc.) e pequenos quadros de culturas alimentares (mandioca, mamoeiros, hortaliças), próximos às novas casas que vierem a ser instaladas, além de serem construídas escolas para dar a possibilidade de que os filhos das pessoas mais pobres tenham alguma instrução, para não entrarem no esquema do Estado paralelo.
Rets - Na Amazônia o problema é ainda pior, haja vista o interesse de empresas químicas nos conhecimentos tradicionais e nas plantas medicinais lá encontradas?
Aziz Ab’Saber - Se houver aluguel de flonas, a intenção básica será cortar madeiras nobres, que estão distribuídas no meio da floresta irregularmente. Portanto tem que fazer uma trilha para chegar até uma dessas árvores, fazer uma clareira em volta para a derrubada. Então vem o grupo da motosserra e corta, depois faz-se o caminho para o caminhão chegar até o local e levar a madeira embora. E, como essas árvores estão espalhadas irregularmente pela floresta – uma aqui, outra a 200 metros, outra a 500 etc. -, pode-se imaginar o que vai acontecer com a continuidade da biodiversidade regional.
Mas, além de tudo, ao longo disso, existem elementos importantes na flora regional para fármacos, os quais o próprio Brasil não conhece totalmente. Sei de uma grande instituição da Amazônia que contratou pessoas para estudarem a parte bioquímica de árvores, mas não dispunha de instrumentos especializados para fazer pesquisa de laboratório. Então, nessa situação, aqueles que tiverem uma outra noção e uma outra possibilidade de trabalho laboratorial em relação a fármacos vão nos vencer.
E depois vem aquele problema de que lá fora eles tentam formas de dizer que a invenção é deles etc. e ficam com a produção. Tentaram fazer uma espécie de lei dizendo que o cupuaçu é deles [Ab’Saber refere-se ao registro comercial do nome “cupuaçu”, feito em 2003 pela empresa japonesa Asahi Foods e cancelado no ano passado, devido à pressão de organizações e comunidades amazônicas e de parte da opinião pública internacional]. Então não temos nenhuma possibilidade de aceitar de imediato o início da exploração da floresta dentro desse sistema.
Rets - Fala-se que a aprovação deste PL seria um primeiro passo concreto rumo à internacionalização da Amazônia – questão que vem sendo comentada já há alguns anos. Quais as reais chances de a chamada internacionalização da Amazônia realmente acontecer? Ou já está acontecendo?
Aziz Ab’Saber - Não gosto de dizer que é um primeiro passo concreto. É um passo, simplesmente. Começa-se a alugar aqui e outros a comprarem acolá. Muita gente está comprando glebas de terras, e aceita-se essa compra. E, além disso, aquele problema que já comentei, do centro-sul do Pará, que é seriíssimo.
Não gosto de falar em “internacionalização da Amazônia”, não quero discutir isso. Acho que não se discute a privacidade da casa da gente. Todas as vezes em que falam no termo internacionalização, eu me desvio. Porque não vamos discutir internacionalização a partir do Brasil. Já chamei até a atenção de militares sobre isso.
Rets - A transferência de poder aos municípios para realização também das "concessões florestais", através de leilões apropriados, poderia facilitar a influência ou o jogo de interesses de empresários locais?
Aziz Ab’Saber - Isso é um descalabro. Pois além de facilitar a influência de grupos com interesses locais, pode ter a interferência de pessoas completamente sem conhecimento sobre a questão. Eles não previam os impactos considerando o todo. É uma descentralização absurda que, em termos de planejamento para o caso do Brasil, é extremamente perigoso.
Rets - O Ministério do Meio Ambiente, pelos seus informes, tem se mostrado a favor do PL. O senhor avalia como demonstração do enfraquecimento da questão do meio ambiente neste governo?
Aziz Ab’Saber - O Ministério do Meio Ambiente tem errado em tudo. Ou em quase tudo. Lá dentro há algumas pessoas que eram de ONGs e que assumiram, junto com a Marina [Silva, ministra do Meio Ambiente e também oriunda de movimentos sociais], uma posição governamental absurda, com muita ignorância, com muito desconhecimento. É um absurdo que pessoas que não conhecem nada de economia ecologicamente auto-sustentada digam que, desde que sigam uma exploração auto-sustentada, poderá haver concessões a ONGs ou aluguéis das flonas. Eles nem sabem o que é isso: explorações auto-sustentadas. Se o ministério não sabe o que é uma economia ecologicamente auto-sustentada, não tem experiência disso. Uma das pessoas que estão junto da Marina, quando perguntado em um programa de televisão – de público, portanto – se conhecia a Amazônia, disse: “Já fui ao Amapá”. Portanto como querem exigir uma coisa que não conhecem?
Rets - O governo Lula, então, não está honrando algum dos seus compromissos de campanha nessa área?
Aziz Ab’Saber - Não chega a ser isso. O governo Lula escolheu algumas pessoas que são muito simplórias, que foram muito importantes no Senado, como políticos, mas não têm conhecimento de Brasil, nem de planejamento, nem de futuro. O maior problema é a ética com o futuro. Se forem concedidos aluguéis de 30 a 60 anos, se outro governo quiser recuperar as flonas como elas estiverem – e não estarão muito bem –, não será possível. Só em instituições jurídicas internacionais. Falta conhecimento e planejamento e, por outro lado, uma inserção do provincianismo sobre o todo. A gente tem que pensar no nacional, no regional – que é imenso no caso da Amazônia, por exemplo – e no setorial. É claro que o nacional pressupõe a conjuntura internacional e, nesta área, têm havido alguns acertos. Mas atenção: não é só fazer eventos e mais eventos, viagens e mais viagens, e descuidar do próprio país. Porque o Brasil de hoje precisa cuidar do Brasil de amanhã.
Além do que, no caso da Amazônia, em função da quantidade de água doce, dos recursos da biodiversidade das florestas, das poucas explorações econômicas pontualizadas – Serra Pelada, Serra dos Carajás, Serra no Navio... veja o que está acontecendo: a Serra do Navio, hoje, é um buraco. Muita gente pensava que a exploração do manganês no Amapá transformaria o estado em uma espécie de Minas Gerais. E não aconteceu, evidentemente. Chamei a atenção na época, quando uma pessoa me perguntou isso. Acontece que os exploradores internacionais que se associaram a nacionais quitaram totalmente a Serra do Navio. Hoje é um buracão. E isso pode acontecer em tudo.
Fiz uma intensa luta contra a privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Acho que acertei em tudo, pois o volume de lucros que a Vale está tendo agora pagaria, em dois ou três anos, o custo da privatização, que o governo fez para arranjar dinheiro. Portanto a minha crítica não é ao governo Lula, só. Há muitos governos e muitas pessoas que aconselharam mal os governantes.
Então, concluindo, o nosso grande problema é gente que não tem competência tratando de desenterrar velhos planos de um tempo em que não existia nem um ambientalismo correto, nem um sistema ecológico bem pensado, tampouco responsabilidade com o futuro. Certa vez escutei a seguinte frase: “os que vierem depois de nós que recebam o mundo que nós deixarmos, mesmo porque nós recebemos o mundo que outros deixaram”. Essa frase é a mais ignorante que se fez no fim do século XX, no mundo.
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