Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() Stephen Hayford | ![]() |
Há 22 anos, o caso Aracelli Cabrera dos Santos chocou o país. A menina, de oito anos, foi estuprada e morta em Vitória, no Espírito Santo, no dia 18 de maio. O caso até hoje não foi solucionado. A indignação que causou chamou atenção para um problema que durante muito tempo foi pouco divulgado: o abuso sexual de crianças e adolescentes. A data se tornou, em 1998, dia nacional de combate a essa prática (o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infanto-Juvenil), verificada em todos os segmentos sociais, mas pouco punida e denunciada –apesar da mobilização da sociedade estar aumentando nos últimos anos.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define abuso sexual como “toda situação em que a criança ou adolescente é usado para gratificação sexual de pessoas mais velhas. O uso do poder, pela assimetria entre abusador e abusado, é o que mais caracteriza essa situação”. De acordo com o Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria), essa é uma situação “de ultrapassagem de limites de direitos humanos, legais, de poder, de papéis, do nível de desenvolvimento da vítima, do que esta sabe e compreende, do que o abusado pode consentir, fazer viver, de regras sociais e familiares e de tabu”.
A OMS calcula que 800 milhões de pessoas já tenham sofrido assédio sexual quando criança ou adolescente em todo o mundo. Segundo a agência das Nações Unidas, 20% das mulheres e entre 5 e 10% dos homens foram vítimas desse tipo de violência em algum momento da vida pré-adulta. A estimativa é alta devido à dificuldade de se verificar a agressão, que em grande parte é feita por pessoas próximas da criança. Os casos de assédio intrafamiliar representam 30% do total, de acordo com a OMS. Na maioria das vezes, os abusos são praticados por pais, tios, padrastos ou vizinhos, todos possuidores de confiança da criança.
No Brasil, de acordo com o estudo “Abuso sexual contra crianças e adolescentes –os (des)caminhos da denúncia”, realizada em 2000 pela pesquisadora Eva Faleiros, da Universidade de Brasília (UnB), 60% dos abusadores são parentes e 95,7%, homens. Entre as vítimas, 69% são menores de 12 anos, sendo que a maior incidência de casos está na faixa de 7 a 9 anos. A pesquisa analisou 40 casos em cinco cidades: Recife, Vitória, Goiânia, Belém e Porto Alegre.
Já um levantamento da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia) aponta que no Brasil acontecem aproximadamente 165 abusos por dia, ou 7 por hora. A maioria das vítimas é de meninas com idade entre 7 e 14 anos.
Outros dados são encontrados no Relatório de Saúde Mundial de 2004, da OMS. Segundo este estudo, a vítima em geral é menina, adotada ou aparentada, já possui um histórico de abuso e tem problemas no lar, como pais separados e em litígio ou ainda abuso de drogas ou álcool. O abuso sexual, em geral, não é feito apenas uma vez, mas durante semanas ou mesmo anos. A violência física raramente é utilizada, pois os abusadores convencem a vítima de que ela não está fazendo nada de errado ao mesmo tempo em que as violações aos direitos humanos da criança se tornam cada vez mais graves.
“Por causa dessas características, é difícil alguém denunciar”, diz Neide Castanha, coordenadora do Cecria. Na maior parte das vezes, o denunciante também faz parte da família e toma atitude quando percebe que o problema tende a não ter fim. Apesar da demora, ressalta Castanha, a quantidade de casos que chegam à polícia e ao Ministério Público é cada vez maior.
De acordo com o médico Lauro Monteiro, diretor da Abrapia, que há 17 anos trabalhando com o assunto, durante esse tempo muito mudou. “Isso, porém, não quer dizer que estejam acontecendo mais abusos”, faz questão de esclarecer Nelma Pereira, coordenadora do grupo de trabalho sobre violência sexual da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced). “Quer dizer que as pessoas estão tendo mais coragem para denunciar o que presenciam. E isso acontece por uma série de motivos”, explica.
Disque-denúncia
A década de 90 representou um marco para a divulgação do problema. Foi durante esse período, segundo a maioria dos entrevistados, que, por intermédio do trabalho de ONGs de todo o país, o assunto passou a ser abordado nos principais meios de comunicação, assim como a ganhar mais atenção dos governos. Em 1997, por exemplo, foi criado o “Disque-denúncia” (0800-00-90-55), serviço telefônico gratuito que encaminhava reclamações e acusações às autoridades responsáveis.
Ele foi criado pela Abrapia e contava com apoio do governo federal. “Isso facilitou a formação de uma rede de ONGs e profissionais para alertar e monitorar a investigação”, lembra Monteiro. O médico afirma que o telefone foi útil para unificar os diversos serviços antes existentes nos estados e cidades e a encarar o problema de forma nacional.
A quantidade de ligações cresceu rapidamente ao longo dos anos. Em seis anos, entre janeiro de 1997 e janeiro de 2003, foram recebidas 50.412 chamadas. Os casos de abuso e exploração, categorias que englobam casos de prostituição de menores, turismo sexual, tráfico de crianças e veiculação de material pornográfico, corresponderam a quase 10% do total, com 4.893 denúncias no mesmo período. As demais ligações, apesar de feitas para um serviço específico, não se encaixavam nesse perfil.
Houve queda no número de ligações apenas nos segundo e terceiro anos de funcionamento. A partir de 2000, a quantidade de chamadas atendidas cresceu rapidamente. Em 1997, primeiro ano do serviço, foram recebidas 915 denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes. Esse número caiu para 217 em 1998 e 134 em 1999. No ano seguinte, a quantidade vai para 480, saltando para 1.793 em 2002, último ano em que a Abrapia foi responsável pelo serviço.
As chamadas relacionadas a abuso sexual cresceram bastante a partir de 2000, quando foram registradas 152 ligações, contra nenhuma no ano anterior. Somente a partir daquele ano elas passaram a ser registradas separadamente. Acompanhando o crescimento do número de atendimentos do serviço, as denúncias de abuso sexual chegaram a 994 em 2002. As ocorrências intra-familiares são maioria sempre: 81,6% das denúncias eram relacionadas a eventos ocorridos dentro da casa do denunciante. O estado recordista foi o Rio de Janeiro, com 25% das ligações. Roraima foi o que menos ligou, com apenas uma chamada ao longo dos seis anos. Os especialistas alertam, porém, que a quantidade de denúncias não está diretamente relacionada à existência de casos. “Liga mais quem tem mais informação e confiança em relação ao serviço”, reforça Lauro Monteiro.
Os dados da Abrapia vão apenas até janeiro de 2003, mês em que o acordo de prestação de serviço com o governo federal foi interrompido. Desde então, o telefone está sob inteira responsabilidade da Secretaria Especial de Direitos Humanos, o que gerou críticas da ex-executora. “O serviço continua funcionando”, diz Monteiro, “mas está capenga. Há pouca divulgação”.
A Secretaria afirmou, por meio de sua assessoria de comunicação, que o número de ligações não pára de crescer e que em dois anos recebeu 120 mil ligações. Dessas, 9.490 se tornaram denúncias, que foram encaminhadas, em menos de 24 horas, para as autoridades competentes. A Secretaria afirma ainda não ter dados sobre quantas dessas acusações foram julgadas, mas que está trabalhando para ter essa informação em breve. A Anced promete ter esse dado até o fim do ano.
Para Monteiro, é necessário intensificar as campanhas de conscientização feitas pelo governo assim como as dos meios de comunicação para que esse tipo de crime não permaneça impune. Segundo ele, diagnosticar o problema é difícil, e deve-se tomar muito cuidado com a investigação. Pede ainda que as campanhas incluam a classe média em seu público-alvo, pois ela é formadora de opinião. O diretor da Abrapia alega que, em geral, as campanhas são voltadas para pessoas de baixa renda, classe que, na verdade, apresenta a mesma incidência de abuso sexual que as de rendimentos mais altos.
Notificações
Se por um lado as denúncias começam a ser feitas e o assunto, discutido, por outro o julgamento dos acusados ainda é raro de ser verificado. “Já rompemos o muro de silêncio que existia, mas ainda faltam pesquisas para avaliar quantos casos são notificados e que rumo eles tomam”, diz Neide Castanha.
Ela defende a idéia de que as políticas públicas de combate ao abuso sexual de crianças e adolescentes não fiquem restritas apenas à captação de denúncias. “O perigo é não termos um processo completo. Precisamos acionar toda a rede de proteção”, acredita. Após registrada e confirmada, a denúncia é enviada para a polícia local ou encaminhada ao Ministério Público para que façam as investigações. Um boletim de ocorrência é registrado na delegacia e, então, a vítima deve ser encaminhada ao Instituto Médico Legal (IML) para exames de corpo de delito.
Em seguida deve ter acompanhamento psicológico, para que o abuso não deixe seqüelas. Segundo a OMS, 11% dos casos de síndrome do pânico em adultos são conseqüência de traumas deixados por abusos na infância. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) recomenda o afastamento do abusado e do abusador durante o julgamento do caso e durante o período necessário para cuidar de eventuais traumas.
Cumprir todas essas etapas, porém, é raro, pois faltam profissionais qualificados e especializados. De acordo com Nelma Pereira, da Anced, a Justiça e o serviço público de saúde atualmente são insuficientes e despreparados. “Faltam profissionais especializados no atendimento a crianças e adolescentes”, reclama. Em relação à Justiça, ela afirma que muitos juízes ainda absolvem abusadores baseados na crença de que a criança estaria fantasiando acontecimentos ou mesmo provocando o acusado.
A pesquisa feita por Eva Faleiros mostra que, de 47 acusados, apenas três foram condenados e cinco, absolvidos. Os demais casos nem foram julgados ou ainda estavam tramitando. Em todo o país, existem apenas três varas criminais específicas para o julgamento de casos onde crianças e adolescentes estejam envolvidos. São poucos também os estados com divisões policiais especializadas nesse tipo de ocorrência. Pernambuco é um deles.
Outro problema é a exigência de provas físicas para um crime que nem sempre envolve conjunção carnal. “Toda violência também é psicológica”, afirma a pesquisadora. Daí a necessidade, diz, de se ampliar o conceito de perícia para exames psicológicos. Alguns estados aliam o exame feito pelo IML ao de psicólogos. No Rio de Janeiro, a Abrapia presta esse serviço quando solicitada por juiz. Já em Brasília, ele é feito no próprio IML, enquanto São Luís possui um centro de perícias especializado em crianças e adolescentes desde o ano passado. Não existe, contudo, uma lei que obrigue o oferecimento de acompanhamento psicológico às vítimas.
O governo federal possui o programa Sentinela, o qual atende 310 mil crianças e adolescentes vítimas de exploração ou abuso sexual em Centros de Referência de Tratamento. Ele oferece o atendimento de diferentes profissionais, apoio psicológico e jurídico, além de acompanhamento permanente e abrigamento por um dia. Mas eles só são instalados em municípios com Conselhos Tutelares, o que ainda não existe em boa parte das cidades.
Essas ações são dificultadas ainda mais pela falta de recursos para os programas de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes. Levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) mostra redução de 9% no orçamento do Plano Plurianual (PPA) para o Programa de Combate ao Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes do Ministério do Desenvolvimento Social. Agora, serão destinados R$ 133,9 milhões ao invés de R$ 147,1 milhões. A diminuição também aconteceu na Secretaria de Direitos Humanos, onde o programa de combate à exploração sexual teve seu orçamento anual reduzido de R$ 3,49 milhões para R$ 2,97 milhões. O órgão afirma que a diminuição se deve à queda do número de emendas parlamentares ao orçamento indicando mais verbas para o programa.
Mesmo assim, dizem os diretores e coordenadores de entidades de defesa dos direitos das crianças e adolescentes, a denúncia ainda é a melhor forma de se acabar com esse problema.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer