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Lições da marcha

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Artigos de opinião

D. Demétrio Valentini*






Lições da marcha
Valter Campanato/ABr

Escrevo logo após a conclusão da marcha para a reforma agrária. Como em 1997, o MST fez questão de me convidar para testemunhar a audiência com o presidente da República. Daquela vez, com Fernando Henrique Cardoso; desta vez, com Lula.

Antes de mais nada, lastimo os lances de violência, acontecidos nos momentos finais da concentração na esplanada dos ministérios. O lamentável confronto com as forças policiais destoou completamente de todo o contexto da marcha, e acabou divulgando uma imagem distorcida do seu espírito e dos seus objetivos.

A marcha foi ordeira, pacífica, organizada, e sobretudo muito consciente. Foi um roteiro não só de quilômetros a percorrer, mas principalmente de debates e reflexões, que aconteciam todos os dias.

Como estive na chegada das duas marchas, a de 1997 e a deste ano, me permito ressaltar algumas diferenças.

Em 1997 a marcha surpreendeu o país, pelo inusitado da proposta e pelo desafio de vencer centenas de quilômetros, numa convergência para Brasília que ninguém acreditava pudesse ser levada a bom termo. Daí a aparência de proeza, que foi saudada pela população de Brasília, que saiu às ruas para receber festivamente os sem-terra.

Desta vez o povo de Brasília não largou seu trabalho para ver os sem-terra passar. Nem eles queriam aplausos. Tanto que fizeram questão de nem atrapalhar o trânsito, ocupando disciplinadamente só meia pista das ruas por onde passavam. O que eles queriam era o atendimento de suas reivindicações. Eles também pareciam estar executando o seu trabalho, com fadiga e suor.

Esta diferença de clima entre uma marcha e outra faz pensar na diferença real que os anos vão trazendo. Passou o tempo das utopias fáceis e generosas, que encantavam só pelo fato de serem explicitadas. O que se cobra agora é a realidade, o concreto, o possível, o viável.

O que ainda continua a surpreender nos sem-terra é a persistência em realizar uma utopia que teria tudo para ser viável, mas que enfrenta resistências históricas que precisam ser vencidas com tenacidade política, com organização popular e com firmeza governamental.

O contraste maior foi na audiência com o presidente. Em 1997 o governo foi encurralado, e teve que receber os sem-terra a contra gosto, enchendo-se de precauções. Resultou um clima de desconfiança e de prevenção.

Desta vez era evidente o clima de descontração, assegurando a disposição para o diálogo.

Mas a surpresa veio na própria audiência. Na sua fala ao presidente, os sem-terra demonstraram muita competência e conhecimento. Apresentaram suas reivindicações concretas sobre a reforma agrária, ao mesmo tempo em que demonstravam uma ampla visão da realidade brasileira, onde inseriam a importância de uma verdadeira reforma agrária.

Os ministros, e o próprio presidente, respondendo a eles, num primeiro momento ficaram nas fáceis explicações genéricas, capazes de prometer tudo e ao mesmo tempo não se comprometer com nada.

Aí os sem-terra reagiram. Com coragem e muita lucidez, retomaram a palavra, e deixaram muito claro que não tinham feito a marcha para agora ouvir vagas promessas. Eles queriam soluções concretas aos problemas bem específicos que tinham apresentado.

Concluída a audiência, o presidente assegurou que continuaria reunido com seus ministros para definir as ações do governo.

Penso que este é o recado maior da marcha. Ela não foi feita para espetáculo. A organização e pressão popular é componente indispensável no cenário da democracia. Sobretudo para fazer avançar situações complexas, que encontram resistências ideológicas e demandam propostas viáveis, sustentação política e ação governamental.

Os sem-terra demonstraram que estão preparados, e o governo percebeu que tem sua parte a fazer. Não se fará outra marcha como esta. Agora é para fazer reforma agrária.

*D. Demétrio Valentini é bispo de Jales (SP). Artigo originalmente publicado em www.alainet.org.



Recados da Marcha pela Reforma Agrária

Luis Bassegio e Luciana Udovic**

“Companheiro Lula, o povo te elegeu. Cadê a reforma agrária que você prometeu”

Este era o grito que mais se ouvia no último dia da Marcha Nacional pela Reforma Agrária, que partiu do Estádio Mané Garrincha e se dirigiu ao Congresso Nacional, passando pela embaixada dos Estados Unidos, Ministério da Agricultura, Praça dos Três Poderes, Palácio do Planalto e Ministério da Fazenda. Como ocorreu ao longo dos 230 quilômetros, percorridos em 16 dias, tudo foi muito organizado e pacífico. Aliás, durante toda a marcha, os 35 policiais que a acompanharam tiveram como única tarefa auxiliar o trânsito ao longo das rodovias. As palavras do comandante da operação foram de agradecimento à organização e colaboração dos manifestantes que, também, ele entende que estavam exercendo o legítimo direito de lutarem pelos seus direitos. Ao final de suas palavras além de agradecer aos marchantes, desejou-lhes boa sorte na empreitada. Infelizmente, esta não foi a postura dos policiais designados para fazer a guarda do Palácio Presidencial. Ao contrário dos rodoviários que estavam orientados para garantir bem estar e segurança aos cidadãos, parece que estes estavam orientados a dificultar a manifestação ordeira e legítima dos manifestantes, típicas de países democráticos.

Ao final da Marcha, uma provocação desnecessária dos policiais militares gerou uma animosidade com alguns marchantes que se assustaram com a demonstração de arrogância da polícia que fazia vôos rasantes de helicóptero com armas apontadas sobre os manifestantes, inclusive desconsiderando a presença das 133 crianças e 19 bebês que se somavam à Marcha. Quando a polícia não cumpre o seu papel de garantir tranqüilidade e segurança durante suas operações, o pior pode acontecer. Felizmente, a contragosto da grande imprensa que busca sangue para fazer notícia, os marchantes estavam tranqüilos o suficiente para não permitir que o fato desviasse o verdadeiro objetivo da Marcha que foi o de sensibilizar o presidente Lula para que mude a política econômica que vem sendo orientada pelo sr. Palocci, junto com o FMI.

Ao longo da marcha houve muitos aspectos positivos que merecem ser lembrados, já que alguns setores da imprensa não tiveram interesse em relatar. O processo de formação que todas as tardes era realizado foi um dos exemplos. Os 12 mil marchantes acompanhavam diariamente, através de uma estação de rádio montada no acampamento, palestras, debates e estudos de documentos. A organização e disciplina também eram notadas no cotidiano do acampamento: montagem e desmontagem das barracas, distribuição da alimentação, zelo com o meio ambiente e a limpeza do local por onde passava a marcha. Nem um simples papel era deixado no chão. Durante os percursos, jovens passavam entre as fileiras recolhendo toda espécie de lixo. Por onde passou a marcha, só ficou a admiração e o apoio da população que a acolhia. Aliás, o grande número de jovens marchantes mostra que o movimento cresce e se fortalece a cada dia.

A presença de religiosas e religiosos da CRB que acompanharam a marcha também emocionou: uma verdadeira demonstração de serviço, gratuidade e compromisso evangélico. Ao contrário de uma das principais Igrejas de Brasília que, equivocadamente, temendo a presença do povo marchante, fechou as portas da Casa de Jesus por dois dias, frustrando inclusive os turistas que por ali passavam. São as contradições de uma Igreja santa e pecadora.

Corporativismo

A marcha evidenciou ainda o grau de corporativismo de alguns setores que, outrora, mostravam-se mais organizados. Muitos sindicatos, centrais sindicais, entidades e outras organizações estiveram totalmente ausentes e, sequer seriam lembradas se não houvesse algumas faixas e bandeiras espalhadas ao longo do percurso da marcha. Faltou apoio político eficaz para uma luta que não é somente pela reforma agrária, mas, sobretudo pela mudança de uma política que continua gerando profundas desigualdades sociais, impossibilitando não só a reforma agrária, mas a garantia dos direitos fundamentais do cidadão como trabalho, moradia, educação, segurança e vida digna. É inexplicável que estas organizações ainda não compreendam que lutar pela reforma agrária é lutar pelo bem de todo o povo brasileiro, é lutar contra a fome, a migração forçada e o inchaço das cidades.

Os recados da Marcha

Ficou claro o recado que o movimento quis dar aos Estados Unidos e ao Ministro da Fazenda, Antonio Palocci. A simbologia utilizada na Marcha falou por si só: "Um passo à frente, nenhum passo atrás: a reforma agrária é o povo quem faz!" - gritavam os manifestantes.

A embaixada americana não foi poupada. Milhares de latas de coca-cola, embalagens de McDonalds e outros lixos impostos pela cultura americana foram despejadas defronte à embaixada. Foi um gesto simbólico para repudiar a imposição cultural e consumista estadunidesnse que despreza e destrói as coisas boas do nosso país. Também armas de plástico foram queimadas para dizer não à política militar de dominação dos EUA.

A Marcha não parou em frente ao Palácio do Planalto, e sim no Ministério da Fazenda, onde foi realizada uma mística. Uma grande águia foi colocada no meio de várias bandeiras dos EUA. Ao lado um cartaz dizia: Fazenda do FMI. Estava dado o recado. É preciso mudar a política econômica. É preciso que o Brasil seja uma nação soberana onde a economia não seja ditada segundo os interesses do FMI e das mega-empresas estadunidenses. Infelizmente está ficando evidente que quem vem decidindo os rumos do país é o senhor ministro da fazenda. É hora presidente tomar as rédeas do Brasil e cumprir as promessas que o fizeram chegar ao poder.

Enquanto os trabalhadores do campo precisam lutar incansavelmente para liberar crédito para a agricultura familiar ou linhas de crédito para os assentados, o agro-negócio tem facilmente todas as regalias. Um exemplo recente é a pressão que o governo federal vem sofrendo para liberar R$ 500 milhões para a realização do "Agri-Show". Uma grande festa dos fazendeiros e usineiros que acontecerá em Ribeirão Preto, neste ano. Alguns setores na imprensa ainda se detêm em fazer notícia com os R$ 400 mil liberados pelo governo de Goiás para dar suporte à caminhada dos Sem-Terra que luta por trabalho, justiça e vida para todos.

Desta vez os milhares de marchantes foram ao Ministério da Fazenda para sinalizar que as coisas precisam mudar. Caso nada ocorra, o palco das próximas mobilizações certamente será o Planalto, onde o presidente Lula deverá responder por que a reforma agrária continua sendo só uma promessa de campanha.

**Luis Bassegio e Luciana Udovic são membros da secretaria continental do Grito dos Excluídos. Artigo originalmente publicado em www.adital.com.br.




A Marcha dos Atrasados


Roberto Malvezzi***

"Atrasados, baderneiros, corruptos, violentos, assaltantes, invasores", que mais falta dizer dos sem terra? Nessa marcha - uma cidade mutante, vermelha, maior que milhares de municípios brasileiros - todo preconceito alimentado pelas elites contra os deserdados do país vieram à tona de forma absolutamente grotesca.

Estive na marcha a convite do movimento para falar da "água". Falei da rádio comunitária ambulante e cada pessoa ouvia de seu radinho de pilha. Fantástica imaginação dos organizadores da marcha! Impressionante também a atenção das pessoas e depois a formação dos grupos para debater o assunto! Tudo ali transpira a responsabilidade, o compromisso, o sentido profundo da justiça e a terrível caminhada do povo brasileiro em busca de um país melhor.

Pelo caminho fui lendo os jornais que falavam da marcha. Caiu-me nas mãos um artigo publicado no Jornal do Brasil, não me lembro o nome do articulista. Ele pegou sua crítica pelo viés do "atrasado". Entre outras palavras que não me lembro, citou a agricultura paulista como exemplo de "produtividade, modernidade, com uso de tecnologia de ponta", enquanto os "atrasados estão ainda no tempo da enxada e da charrete". Depois adicionou vários dos adjetivos acima citados.

Certamente ele terá razão o dia que a elite brasileira viver de "chupar cana, comer soja e pastar capim". Mas enquanto a maior parte do povo brasileiro precisar comer arroz, feijão, carne, hortaliças, leite, frutas, etc., então ainda vamos depender dos agricultores familiares, da reforma agrária, enfim, dos "atrasados".

Os últimos dados estatísticos mostram a importância da agricultura familiar na mesa do povo brasileiro. Pode-se acrescentar aí ainda toda comida nordestina, com seu feijão de corda, seu bode, seu mel, sua farinha de mandioca. Acrescente-se ainda para a região amazônica os peixes, o açaí, a farinha grossa. Podemos ir ao infinito na culinária brasileira. Aqui é que está a variedade, o sabor e a segurança alimentar. No "moderno" está a monocultura da cana, da soja, do boi, com sua exclusão social, trabalho escravo, agressão ao meio ambiente, assassinato de trabalhadores, invariabilidade alimentar e demais qualidades que julga ter. Claro, aqui estão os dólares das exportações.

Parafraseando mais uma vez Vandana Shiva, a "monocultura da elite brasileira é, antes de tudo, mental". Não se espere que dessa cabeça um dia surja a variedade, a justiça, a sustentabilidade e a diversidade. É a história, desde o primeiro pau brasil, até o último pé de soja.

Afinal, quem são mesmo os atrasados?

***Roberto Malvezzi é coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Artigo originalmente publicado em www.correiocidadania.com.br.






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