Autor original: Mariana Loiola
Seção original: Artigos de opinião
Paula Johns*
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O mundo ainda comemora a entrada em vigor do Protocolo de Quioto, que contribuiu para trazer para a agenda global o debate sobre um modelo de desenvolvimento menos excludente e mais sensível à responsabilidade sobre “nosso futuro comum”. Esse fato histórico marca o início de uma efetiva operacionalização do mote “pense global, aja local” e de questões referentes à sustentabilidade ambiental e social, que vêm sendo amplamente debatidas mundialmente, principalmente no âmbito das grandes conferências das Nações Unidas da década de 90.
Onze dias após a entrada em vigor do Protocolo de Quioto, comemoramos a entrada em vigor, em 27 de fevereiro de 2005, do primeiro tratado internacional de saúde, a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT). Negociada entre 1999 e 2003, sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde (OMS), tem uma abrangência que vai muito além da saúde. Seu objetivo é proteger as gerações presentes e futuras das devastadoras conseqüências sanitárias, sociais, ambientais e econômicas geradas pelo consumo e pela exposição à fumaça do tabaco.
À primeira vista, a idéia de um tratado internacional para controlar o tabagismo pode parecer um exagero. A partir de um olhar mais cuidadoso, observa-se que estamos diante de um tratado que envolve aspectos sociais, econômicos, ambientais, culturais, legais e de responsabilidade corporativa. Ele abre um precedente histórico para a regulamentação da forma de operar globalmente de outras indústrias, como a da alimentação, química e farmacêutica, entre outras. O que está em jogo e fascina, no caso do tabaco, é observar o comportamento de uma indústria cujas mentiras, manipulação de informações e fraudes não têm paralelos históricos na sociedade moderna. Em outras palavras, o comportamento da indústria do tabaco é a maior fraude já cometida contra a saúde pública e a humanidade.
Apesar da comemoração, temos motivos de sobra para lamentar o rumo que o processo da ratificação do tratado tomou no Brasil. O Brasil foi uma grande liderança mundial, inclusive presidindo as negociações do texto. Até aproximadamente 2003, a legislação avançada na área e o pioneirismo brasileiro surpreendiam positivamente outros países membros da OMS, principalmente considerando o fato do Brasil ser o segundo maior produtor e maior exportador de tabaco do mundo e da forte presença da indústria do fumo no país. Em maio de 2003, o Brasil foi o segundo país a assinar o tratado, logo após sua aprovação na 56ª Assembléia Mundial da Saúde.
A partir de então, a liderança brasileira começou lentamente a esmaecer e chegamos ao estágio em que o debate sobre a CQCT é pautado pela indústria do fumo. Hoje os argumentos contra a ratificação no Brasil não se sustentam. Em termos de legislação nacional, já adotamos a maior parte das medidas previstas. O grande argumento contrário à ratificação no país, que tem como principais expoentes, no governo, o governador e os senadores do Rio Grande do Sul, o ministro da Agricultura e alguns deputados federais, diz respeito aos chamados aspectos econômicos da produção do fumo, incluindo exportações, geração de emprego e arrecadação de impostos. O primeiro e mais importante ponto a ser esclarecido é que o tratado visa apenas controlar a expansão da produção e consumo do tabaco. O acordo prevê o estabelecimento de um financiamento para que os países possam ajudar seus produtores de fumo a transferir seu plantio para outros produtos. Sem fazer parte do acordo, o Brasil não poderia participar da primeira conferência das partes que debateria a criação desse mecanismo de apoio financeiro.
Alega-se que a indústria gera 2,4 milhões de empregos e que a ratificação levaria ao desemprego e ao êxodo rural. Esse número mágico, além de considerado superestimado por análises independentes, inclui os varejistas e todos os empregos indiretos na indústria de produtos associados, como papel, papelão etc. Dificilmente o jornaleiro, padeiro, dono de loja de conveniência ou do bar da esquina perderia sua receita se passasse a vender menos cigarros. O dinheiro em circulação não desaparecerá da economia caso a prevalência de fumantes se reduza ou deixe de crescer, mas continuará circulando alimentando outras indústrias e gerando emprego em outras áreas.
Estudos do Banco Mundial indicam que a produção e o consumo do tabaco são um fator que agrava a pobreza, a fome e a desnutrição. As perdas econômicas mundiais estão em torno de 200 bilhões de dólares.
Mesmo sobrando evidências de que a produção e o consumo do tabaco não são um bom negócio, a discussão nacional continua exaltando as maravilhas econômicas que o tabaco gera para o país. Bom negócio seria aumentar o preço e os impostos do cigarro no país, sexto mais barato do mundo, medida que comprovadamente reduz o consumo e gera mais receita para políticas de controle do tabagismo.
O tom do debate tem cheiro de propaganda enganosa. A indústria do tabaco diz que mudou e que não só pode, como deve ser socialmente responsável. Se autoproclama, é proclamada como tal e desenvolve vários programas sociais, ambientais e educacionais. Fica difícil acreditar em mudanças quando se conhece a “ética relativizada” das transnacionais do tabaco. Enquanto a indústria diz que não quer promover seus produtos letais para crianças e adolescentes, pois se diz uma empresa voltada para o consumidor adulto que, consciente e com informações, decidiu fumar, suas subsidiárias em países onde não há restrições publicitárias anunciam e distribuem amostras grátis em shows e eventos culturais sem nenhum drama de consciência.
Embora tenha mencionado vários temas e áreas, apenas pincelei superficialmente sobre o modus operandi do lobby da indústria do tabaco, que vem se utilizando da voz dos produtores para atender seus interesses de manutenção e crescimento da indústria da morte. Não é uma luta da saúde contra a economia e muito menos de não-fumantes contra fumantes. Trata-se de exigir integridade ética de uma indústria que, sem sombra de dúvida, provoca um grande ônus à sociedade.
Fica o desejo de que o Protocolo de Quioto seja um grande sucesso e que sirva como exemplo positivo para que o Brasil ratifique a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco e que possamos comemorar juntos.
*Paula Johns é socióloga, coordenadora do Programa de Controle do Tabaco da Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh) e coordenadora da Rede Tabaco Zero, aliança da sociedade civil que trabalha pelo controle do tabagismo e pela ratificação e implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco.
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