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Os povos indígenas levantam a voz

Autor original: Maria Eduarda Mattar

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Manifestações populares ocorrendo na Bolívia, demandando a nacionalização da produção de hidrocarbonetos, podendo, inclusive, culminar com a destituição do presidente Carlos Mesa. Protestos no Equador questionando a falta de apoio do ex-presidente Lucio Gutiérrez. Convocação de um conjunto de manifestações no Brasil, intitulado Abril Indígena. Todos esses fatos aconteceram em menos de dois meses e têm algo em comum: a participação definitiva e fundamental de povos indígenas. A força da pressão conjunta e de articulação destes povos vem se fazendo mais presente, formando frentes de luta política que têm como base as demandas históricas dessas etnias.

É sobre isso que fala Roná dos Santos, membro da Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coica). A organização reúne povos indígenas amazônicos, fazendo um trabalho de influência em grandes fóruns internacionais – como o Fórum Permanente para as Questões Indígenas, da Organização dos Estados Americanos, e o Conselho Econômico e Social, das Nações Unidas – e apoio às organizações indígenas de base.

Brasileira, originária do povo Tapuia e atualmente morando no Equador, Roná analisa os recentes acontecimentos envolvendo povos indígenas na América do Sul e defende que eles próprios devem falar em seu nome – e não organizações que trabalham com a questão.

Rets - Os povos indígenas brasileiros estão em um momento de grande articulação e levantamento integrado de demandas. Você tem acompanhado a lutas dos povos brasileiros?

Roná dos Santos - As lutas dos povos indígenas no Brasil correspondem também a uma luta dos povos indígenas da América Latina, sobretudo da Bacia Amazônica. Têm muito a ver com a questão da política principal, que para nós é fundamental, em relação à demarcação e à segurança de nossas terras. No Brasil, além de outras políticas, como garantia de saúde, educação – que no caso do Brasil se chama de “educação diferenciada” – essa política é fundamental, garantida recentemente com a assinatura do decreto de demarcação de Raposa Serra do Sol.

Rets - Foi uma vitória grande.

Roná dos Santos - Foi uma vitória, mas ainda deixa muita dúvida de como vai ser administrada, porque ela foi demarcada de uma forma esquisita, extraindo de dentro dela tanto o município de Uiramutã como as estradas, e isso tudo não é considerado terra indígena. Nós temos muitas dúvidas sobre como vão administrar essas duas figuras jurídicas – terra indígena e não-indígena – dentro de um mesmo espaço geográfico. Em nível mais geral, nossa luta principal, além da demarcação, é com relação à garantia dos direitos.

Rets - Você identifica uma certa “fraqueza” dos movimentos indígenas no Brasil, comparados aos outros da América Latina? Em outras palavras, os povos indígenas brasileiros têm uma influência política menor do que os povos de outros países?

Roná dos Santos - Não. Eu analiso de acordo, digamos assim, com cada movimento. No caso dos povos indígenas, nós nos apresentamos de acordo com a conjuntura local e com os acontecimentos conjunturais, como é o caso, por exemplo, do Equador, como é o caso da Bolívia. Acho que hoje a Bolívia pode ser vista como um lugar onde os índios têm uma influência fundamental na apresentação de propostas estruturais, digamos assim, de reconstrução do país. Não adianta só você derrubar um presidente. Precisa apresentar políticas.

Rets - No Equador, a participação dos povos indígenas, tanto na ascensão do ex-presidente Lucio Gutiérrez, quanto na sua queda, parece ter sido muito grande. Houve inclusive especulações de que alguns grupos indígenas manipulados pelo governo estava sendo estimulados a fazer manifestações pró-Gutiérrez. Você viu isso lá? [Roná mora no Equador] Os povos indígenas realmente tiveram esta participação toda?

Roná dos Santos - Bom, na ascensão dele, sim. No 21 de janeiro de 2000, todo o apoio da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) para eleição dele... Eu participei na Conaie na aliança com Lucio Gutiérrez. Foi uma aliança um pouco complicada porque eles apoiaram o Lucio Gutiérrez e o Alfredo Palacios como vice-presidente, inclusive como independente. Isso repercutiu muito agora na ascensão do Alfredo Palacios à presidência. Ele faz o discurso, mas por trás do discurso ele impõe: “Eu sou independente, então eu não tenho nenhum compromisso com nenhuma força. Eu estou aqui por meus próprios méritos”.

Com relação à manipulação, na verdade os povos indígenas, sobretudo no Equador, perderam muito poder político quando se envolveram no governo do Lucio Gutierrez. Essa interferência da presença deles no governo abriu a brecha para que o governo também entrasse nas organizações indígenas. E, por dentro, viessem a manipular não os interesses dos povos indígenas, mas o interesse do governo que era exatamente dividir o movimento indígena - e acabou gerando exatamente isso. A queda de Gutiérrez não foi, como em 2000, com maior presença do movimento indígena. Mas sim com a presença da classe média que foi, de alguma forma, eliminada, e da oligarquia. Porque, digamos assim, o Lucio Gutiérrez estava tendo uma certa pressão para pagar as dívidas, esse tipo de coisa. E foram eles que derrubaram este governo. Não teve muito a presença do movimento social organizado na queda do Gutierrez. Foi muito menor do que em 2000.

Em 2000 foi de fato o movimento social quem tirou. Esse aqui não foi um movimento de massa como o dos “caras-pintadas” [movimento popular brasileiro ocorrido em 1992, que pedia o impeachment do então presidente Fernando Collor e culminou com sua renúncia]. Inclusive eles se denominaram agora “foragidos”. O grupo de pessoas que derrubou foi o Foragidos. Meio complicado esta palavra. Eles se denominam movimento foragidos que foi para rua com o lema “que se vayan todos” [que se vão todos]. Queriam que os membros do Congresso saíssem junto, porque todas as instituições estavam um pouco cúmplices. Do governo, no caso o Executivo e o Legislativo, só foi o Executivo com todo o seu aparato, e ficou o Legislativo. Agora, a discussão é exatamente essa: como é que vão todos?

Rets - E com relação à Bolívia? Você falou que a Bolívia seria um grande exemplo da capacidade de participação indígena nos dias de hoje.

Roná dos Santos - É porque na Bolívia derrubaram o presidente, colocaram outro, mas não descansaram do propósito principal, que era exatamente a declaração de uma constituinte como fundamental para mudanças estruturais na forma de organização do poder e do governo. O movimento indígena é exatamente aquele que tem a proposta, eles apresentaram agora recentemente uma proposta de constituinte.

Os principais pontos pelos quais os povos indígenas lutam é a questão dos recursos hidrocarbonetos. Esse foi o problema da derrubada do governo anterior e segue, porque na verdade o presidente boliviano Carlos Mesa acabou não assumindo muito, de uma forma política; seguiu com o mesmo intento de não regulamentar a produção de hidrocarbonetos. Eles lutam pela regulamentação do gás, sobretudo (o país é muito rico em gás), e pela nacionalização desse produto. Havia muita interferência, muita presença de empresas estrangeiras neste processo, sem um retorno para os povos indígenas de lá. Inclusive foi aprovada na semana passada a lei de hidrocarbonetos. Na verdade, o Mesa aprovou uma lei que não é exatamente a que a gente queria, mas ao menos foi aprovada uma lei de hidrocarbonetos. E a ministra da energia [a ministra de Minas e Energia, Dilma Roussef], no lançamento do programa de biodiesel, disse exatamente isso: que a Petrobras vai analisar agora a presença dela na Bolívia. Ela disse que a empresa vai diminuir o investimento na Bolívia, por causa da lei dos hidrocarbonetos. Isso já é não uma vitória, mas mostra exatamente que a lei era fundamental para regulamentar o que não estava regulamentado. A empresa chegava lá e fazia o que queria.

Rets - Qual é exatamente a participação dos povos indígenas na produção de gás?

Roná dos Santos - Não é a questão da produção. É que grande parte dos locais onde é explorado está em áreas indígenas. Nós, sobretudo os amazônicos, no caso da Bolívia em geral, fornecemos matéria-prima para tudo que é produzido. A Amazônia é a região que recebe, praticamente, menos apoio para saúde, educação, transporte, comunicação, para energia. Então a gente está, como diz o pessoal, no “sub do subdesenvolvido” e, ao mesmo tempo, fornecemos matéria-prima para o eixo industrial, no caso, aqui do Brasil.

Por exemplo, bauxita, ouro, cassiterita. Toda essa parte mineral e a maioria da madeira vêm da região Amazônica. Essa é a nossa grande discussão: essa exploração é feita, normalmente de maneira predatória, sem um retorno significativo para a região e para os povos indígenas. Se para região é pouco, imagina para nós. Já chega nula aquela porcentagem destinada a nós. No caso da Bolívia é a mesma coisa: querem garantir que a exploração de recursos naturais traga benefícios para os cidadãos.

Existe uma grande diferença entre os povos indígenas no Brasil e nos demais países da América Latina. Como essa é a região dos Andes, onde os incas, como império, já tinham dominado os povos, a Coroa espanhola veio e só dominou o império, subjugou os povos e seguiram subjugados. No nosso caso, aqui na Amazônia brasileira, e sobretudo na região do Brasil, a gente não tinha o império. Então tinha que matar povo por povo. Por isso que a gente é menos em quantidade e mais em povo. Lá eles são mais em quantidade e menos em povos. Eles são assim, milhares. Essa é a grande diferença entre nós e eles. Na Bolívia, a luta básica é para garantir que os recursos naturais – no caso deles, a exploração de recursos, do gás - tragam benefícios para a população.

Rets - Em algum outro país da América Latina você identifica força dos povos indígenas tão grande como na Bolívia?

Roná dos Santos - Aí no final que está a grande diferença. No caso do Brasil, por exemplo, tem muito mais visibilidade política para os povos indígenas do que em outros países. E nós somos apenas 0,02% da população. Não chegamos nem a um milhão perto dos 170 milhões de brasileiros. Então a gente nem chega a um milhão. Mas a presença dos povos indígenas, quando a gente vai para a rua, quando a gente sai em busca de direitos e começa a se mobilizar, tem uma repercussão maior que os povos indígenas de outros países, como, por exemplo, o Equador, onde eles são 60%, 70% da população, a Bolívia, o Peru. Eu sempre costumava dizer que a gente usava muito esse nosso ditado popular “se o boi soubesse a força que tem, ele não puxava carroça”. Sobretudo na área andina, a gente não vai ter a presença que deveria ter. Há gente, há população para puxar um movimento de massa muito grande, tem capacidade de liderança, mas não tem a consciência de que isso é poder. A Colômbia é uma dessas. Apesar de todo sofrimento, toda a invasão dos territórios seja pela guerrilha, seja pelos paramilitares, a Colômbia, em termos de direitos, é a que melhor tem no histórico indígena em geral, no caso dos resguardos e da representação direta no parlamento. A Venezuela também tem representação direta dos povos indígenas sem precisar de eleição geral: eles já têm direito a quatro deputados eleitos por uma assembléia. No caso da Colômbia é igual.

Rets - Aqui no Brasil não tem isso ainda...

Roná dos Santos - Exato. Por isso que a gente não tem deputado, senador: porque você tem que disputar em uma eleição geral. No caso da Colômbia e da Venezuela, eles fazem eleições gerais, mas têm uma assembléia só de indígenas. Aparecem mil delegados indígenas, mas é uma assembléia onde se elegem os quatro deputados, no caso da Venezuela, ou senadores, como na Colômbia. Isso no Brasil ainda é sonho para a gente.

Rets - Você comentou a respeito da falta de noção dos povos indígenas brasileiros sobre a possibilidade de articulação, que seria muito grande, ainda mais pela quantidade de pessoas que existe. Você acha que o Abril Indígena, convocado por um conjunto de organizações indígenas no mês de abril, pode ser considerado um progresso?

Roná dos Santos - Sim. Na verdade, o que aconteceu em abril, digamos assim, é fruto da organização dos povos indígenas. Mas primeiro, se de fato sair o famoso Conselho Indígena, com a estrutura com que foi apresentado, não será verdadeiramente indígena. Porque aqui no Brasil o que mais tem é gente representando nós, povos indígenas. O conselho, para mim, é um avanço fundamental que foi apresentado, pelo menos está começando a ser discutido: a Funai [Fundação Nacional do Índio] fazer um conselho indigenista dos povos indígenas. Mas a composição deste conselho, segundo a proposta, não é de povos indígenas. Participariam o Cimi [Conselho Indigenista Missionário], o Isa [Instituto Socioambiental], os antropólogos, não sei quem. Para que a gente precisa de um conselho desse? A gente precisa de um conselho que tenha o governo e nós, para pensar, tête-à-tête, políticas públicas que venham a atender o conjunto dos povos indígenas.

O segundo problema dos povos indígenas é que, por exemplo, cada vez que a gente tenta articular a nível nacional, vem alguém e acaba com a gente. É o caso de organizações indígenas que têm tanta gente, que costumo dizer que tem mais cacique do que índio. E, quando temos uma organização nossa a nível nacional, a interferência dessas organizações impossibilita que a gente siga com o nosso processo normal. Não é que nós sejamos lentos. É que a gente pensa mais antes de fazer qualquer “burrada”. Às vezes querem colocar a carroça na frente do boi, e não é exatamente assim. Então, por exemplo: o Abril Indígena foi bom, bem organizado etc. Mas, organizado por quem? Os povos indígenas estiveram presentes, participando; não estiveram pensando.

Rets - Ou seja, eles precisam pegar mais as coisas nas próprias mãos?

Roná dos Santos - Claro. O Movimento dos Sem Terra quem está organizando? É alguém que está organizando para representar? Não, são os que não tem terra que estão se organizando para ir agora lá ao Planalto e cobrar seus pontos. Não tem ninguém fazendo por alguém. Para nós, não. Como nós seguimos sendo relativamente incapazes para as ONGs que trabalham com a gente, elas tinham que fortalecer o movimento indígena, elas ficam sempre por trás, às vezes nem aparecem, mas fazendo com que a gente apareça.

Rets - Você acredita, então, que essa “tutela” pode ser prejudicial?

Roná dos Santos O Estado, na verdade, depois de 1988, assume que nós somos sujeitos de direitos. Tanto que em todos os conselhos existe a previsão da participação dos povos indígenas. Mas não é isso que acontece. Fica essa discussão de bota fulano, bota ciclano, bota tal organização. Não é uma coisa do governo, mas das ONGs que têm muito poder. Os antropólogos têm muito poder também.

A posição do Sebastião Manchineri, coordenador geral da Coica e um dos líderes aqui do Brasil, conversando com o próprio [presidente] Lula, era fazer uma secretaria com status de ministério, onde pudéssemos de fato ter poder. Porque o conselho não tem poder de ação. Nós não precisamos de alguém que discutindo as coisas, mas que alguém faça as coisas acontecer. A Funai não faz acontecer, tampouco essa descentralização das ações com os povos indígenas, com a Secretaria de Educação, a Secretaria de Segurança Pública assumindo algumas coisas relativas a nós. Isso não ajuda também. Precisa ter um órgão que possa estar organizando todas essas políticas, que hoje não é mais a Funai, ela já foi destituída deste poder.

A Funai, desde 1988, foi praticamente foi destituída de todo poder. Ela tem hoje, mal e porcamente, a função de organizar aqueles grupos de trabalho para fazer o processo de identificação das terras indígenas. Nem a demarcação está nas mãos dela, porque vai para o Ministério da Justiça. Digamos assim: a Funai não tem poder nenhum, nem de fiscalizar, nem de punir. Nada. É uma fundação dos povos indígenas, mas que não tem poder de decisão e de ação. Já teve. Na década de 70 ela era poderosa.

Rets - Com quem está agora este poder de decisão?

Roná dos Santos - Agora está descentralizado. A saúde é com a Funasa [Fundação Nacional de Saúde], a educação está com o Ministério da Educação. Agora o que a gente diz também é que aqui no Brasil a gente já está trabalhando com projetos já faz muito tempo. Têm que existir políticas públicas que vão além da definição de demarcação, que acaba ficando restrita a colocar marcos. A demarcação tem três pontos fundamentais: demarcação, depois o plano de desenvolvimento e o plano de segurança. A questão fica concentrada somente nos marcos, nas placas. Quando, na verdade, o processo de demarcação deve contemplar também aqueles outros dois pontos: como desenvolver essa terra indígena e garantir que ela permaneça e como dar segurança. Por isso que praticamente 70% das terras indígenas no Brasil estão invadidas. Porque não existe plano de proteção.

Rets - Como trabalha a Coica, como ela faz para tentar articular os povos indígenas na América Latina?

Roná dos Santos - A Coica é um organismo internacional, uma organização internacional dos povos indígenas da Bacia Amazônica. Ela atua dentro de fóruns internacionais, como é o caso do Fórum Permanente para as Questões Indígenas, da Organização dos Estados Americanos (OEA), e do Conselho Econômico e Social (Ecosoc), das Nações Unidas. Trabalhamos questões como a Declaração Americana dos Povos Indígenas, dentro da OEA, que já vem sendo discutida há dez anos, com vários avanços e retrocessos. A Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, na ONU, que já tem 20 anos, também é um instrumento jurídico internacional, assim como a declaração da OEA.

Participamos também diretamente na OTCA, que é a Organização do Tratado da Bacia Amazônica, um organismo que articula as políticas dos estados amazônicos, sobretudo para o desenvolvimento da Amazônia. Acompanhamos as discussões do Fundo para os Povos Indígenas do Caribe, que também é um instrumento de organização das políticas. A Coica procura conversar com as organizações-membro - a representante no Brasil é a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) - para aumentar sua participação política internacional. Temos grande preocupação com a garantia de direitos na área internacional. E a atuação local é feita pelas organizações de base, membros da Coica.

Rets - De que povo indígena você é?

Roná dos Santos - Sou Tapuia, povo que fica em Santarém, no Pará.

Rets - E como você foi parar no Equador?

Roná dos Santos - Eu fui para acompanhar meu marido, que assumiu um cargo na Coica.

Maria Eduarda Mattar.
Colaborou Italo Nogueira

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