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"Falta ao movimento negro ser mais contundente"

Autor original: Italo Nogueira

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`Falta ao movimento negro ser mais contundente´


"No caso do Brasil, por mais que o governo se esforce na sua retórica discursiva, nossa avaliação é que esse relacionamento não tem sido sincero. As palavras, os pronunciamentos, as expressões de intenção, os gestos esvaziados, não são suficientes para construir esse relacionamento. O governo pode até utilizar-se de textos, informações e dados produzidos por nós, mas isto não basta, pois o que falta são ações concretas. As políticas públicas reivindicadas por nossa população estão na mesa, mas não saem do papel".

Foi no dia 11 de maio de 2001 que Abdias do Nascimento fez este pronunciamento, na 2ª Plenária Nacional de Entidades Negras Rumo à 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Correlatas de Intolerância, no Rio de Janeiro (RJ). De lá para cá, ele afirma, as reivindicações não foram atendidas e continuam atuais.

São reivindicações que atravessaram todo o último século e permearam as sete décadas de atuação de Abdias, hoje com 91 anos. Ao longo dessa jornada, ele se expressou das formas mais diversas: em poesias, quadros, teses e propostas constitucionais.

Economista por formação, Abdias do Nascimento atuou no movimento negro nos âmbitos político, acadêmico e artístico. Iniciou sua militância na Frente Negra Brasileira, na década de 30. Durante o Estado Novo, foi preso em 1937 e em 1941, pela militância contra o regime ditatorial e o racismo. Na segunda ocasião, criou, dentro da Penitenciária de Carandiru, o Teatro do Sentenciado, organizando um grupo de presos que escrevia, dirigia e interpretava peças dramáticas. A partir desta experiência – e com o objetivo de acabar com atitudes racistas que presenciou no teatro, como quando um ator branco pintou-se para interpretar um negro – decidiu fundar o Teatro Experimental Negro.

Em 1968, Abdias vai para os Estados Unidos, graças a uma bolsa de estudos da Fairfield Foundation, e passa a atuar nos debates internacionais sobre o racismo. Foi neste momento que abriu a discussão sobre o pan-africanismo (veja o box ao lado), retomando sua crítica à idéia de que a América Latina vivia uma democracia racial, feita em 1966, durante o 1º Festival Mundial das Artes e das Culturas Negras, em Dacar, no Senegal.

Ao retornar ao país, em 1978, Abdias do Nascimento participa da criação do Movimento Negro Unificado (MNU), do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Pelo mesmo partido, foi eleito deputado federal e senador. Ainda fundaria o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), sempre guiado pela vontade de chamar atenção para a questão racial. “O povo negro tem direitos históricos, e o Brasil tem que pagar”.

Com a palavra – e 91 anos de experiência –, Abdias do Nascimento.

Rets - Como o senhor vê o debate, hoje, sobre as questões raciais?

Abdias do Nascimento - O debate não está sendo do jeito que a gente esperava, porque com uma secretaria deste porte [Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial], era para haver uma efervescência maior da comunidade afro-descendente. Não está acontecendo. Tem havido alguma coisa, mas está fraco, comparando-se ao desejável.

Rets - Mas o senhor considera que isso pode ser também uma falha do movimento negro, que pode não estar aproveitando o momento?

Abdias do Nascimento - Eu acho que sim. Pode ser uma falha do movimento negro, mas também do governo em não implementar os meios necessários para a secretaria.

Rets - Qual a sua opinião sobre a atuação do governo em relação às questões raciais?

Abdias do Nascimento - Acho que ele começou, mas a coisa não está andando. Realmente foi uma coisa boa criar uma Secretaria Nacional para tratar disso. Foi um ato positivo para a relação do governo com o movimento negro e com as reivindicações pleiteadas pela comunidade negra.

Agora, isso, só, não basta. A Secretaria, pelo menos o que a gente sabe, não teve ainda a oportunidade, ou ainda não a criou, para uma ação mais efetiva em relação à comunidade afro-descendente.

Rets - Mas o senhor considera que ela não teve esta atuação por falta de prioridade do governo ou por falta de competência da Secretaria?

Abdias do Nascimento - O governo não deu condições para a Secretaria poder agir. Nós sabemos muito bem que a grande ausência é a falta de base financeira. Sem dinheiro não se faz nada. Pode-se fazer algo, mas não as coisas necessárias. A Secretaria é bem o retrato da comunidade negra, de pobreza e ausência de recursos.

Rets - O senhor começou no movimento negro com a Frente Negra Brasileira, durante a década de 40. Como era o movimento negro naquela época?

Abdias do Nascimento - A Frente Negra deu uma lição de organização para a gente. Ela passou a herança do movimento negro. Ela tinha curso para criança, debates com a comunidade negra, um programa grande de ação social. Falta um pouco deste tipo de ação no movimento negro atual.

Rets - A falta de recursos seria um motivo?

Abdias do Nascimento - Também é falta de recurso, mas não é só isso. A Frente Negra também não tinha recurso, mas conseguia arregimentar pessoas e também obter recursos da própria comunidade.

Rets - E naquela época o debate sobre as questões raciais era presente?

Abdias do Nascimento - Estava bem presente e aceso na sociedade, sobretudo na comunidade negra. Era bem mais amplo, pois a presença das organizações dentro da comunidade era maior. A comunidade participava mais da vida das organizações, e as organizações da vida da comunidade. Havia uma interação maior. A comunidade tinha um convívio com as organizações. A impressão que se tem daquele tempo é que as organizações eram mais vivas.

Rets - O senhor considera que falta um movimento de base maior?

Abdias do Nascimento - Tem que haver um trabalho maior das organizações para acontecer essa interação com a comunidade.

Rets - O senhor, em 1946, apresentou sua proposta de ações compensatórias. Como foi recebida na época?

Abdias do Nascimento - Não teve repercussão. O governo, naquela época, não estava preocupado em atender os reclamos da comunidade negra. E em 1988 a sorte foi a mesma que a de 1946. Havia até mesmo um desdém às demandas dos afro-descendentes. As questões raciais estão hoje muito mais presentes.

Rets - E o que fez as questões raciais ficarem mais presentes hoje em dia?

Abdias do Nascimento - O movimento negro cresceu, está espalhado por todo o país. Em qualquer cidadezinha tem uma pequena comunidade negra que está de boca aberta, está falando. É igual a uma panela de pressão, vai estourando daqui e dali. E isso chama a atenção das pessoas. Eu espero que disso saia alguma coisa, uma atuação mais intensa, mais presente. O povo negro tem direitos históricos, e o Brasil tem que pagar. Nós não estamos pedindo esmola.

Rets - O senhor acha que hoje, não só a comunidade negra, mas também a sociedade em geral tem participado mais dos debates do que naquela época?

Abdias do Nascimento - Agora está tendo uma preocupação maior, estão levando mais a sério as reivindicações da comunidade afro-descendente. Isso porque a luta está mais organizada, existem mais canais para reclamar, para reivindicar. O problema racial agora se tornou nacional, da sociedade como um todo.

Rets - O senhor foi para os Estados Unidos em 1968, justamente no ano da morte de Martin Luther King. Como foi o contato com o movimento negro naquele momento?

Abdias do Nascimento - Eles realmente tinham uma estrutura invejável. Tinha uma organização que tirava proveito de toda aquela força econômica, que permitia fazer o que eles faziam.

Rets - E qual foi a importância, ou mesmo influência, do movimento negro norte-americano no movimento brasileiro?

Abdias do Nascimento - Não acho que teve influência nenhuma. Nem mesmo na organização. O movimento negro brasileiro foi muito bem orientado, levando em consideração a realidade do país. A diferença é que os Estados Unidos são um país muito mais rico economicamente. Assim, até o movimento negro tinha mais recursos e possibilidades para fazer suas ações, viajar, organizar congressos, juntar pessoas.

Aqui essa possibilidade é muito limitada. Agora mesmo vai ter um encontro na Bahia [referia-se ao Fórum de Performance Negra, realizado de 30 de maio a 1º de junho], em que eu vou estar, das organizações teatrais negras. É um espaço de discussão importante, mas muitas entidades não poderão ir por falta de recursos.

Rets - O senhor sempre encontrou na arte uma forma de denunciar o racismo e estimular a discussão sobre a questão racial. Qual o poder da arte para essa função?

Abdias do Nascimento - O poder vem da comunidade. Mas faltam os recursos para que ela tenha acesso aos meios básicos para produzir a sua linguagem. E esses recursos só chegarão a partir dos reclamos da própria comunidade negra.

Rets: Durante a ditadura, a luta das então chamadas minorias ficou um pouco fora das atenções por causa da guerrilha contra os militares.

Abdias do Nascimento - Durante esse período a repressão era muito grande. O movimento não estava desfeito, mas as atividades ficaram, de certo modo, paralisadas. Mas durante este intervalo houve a meditação, a reflexão e a captação de outras idéias para acrescentar ao debate no movimento negro. Tanto que, após a anistia, em 1978, e o retorno dos exilados, o movimento negro retomou seus trabalhos. Ele não estava morto, mas paralisado. Deu a volta por cima e retomou o caminho das atividades.

Rets - Quando o senhor voltou os Estados Unidos, participou da criação do Movimento Negro Unificado (MNU). Naquele momento, o movimento negro estava unido de fato?

Abdias do Nascimento - Não estava, e vejo isso de forma positiva. As diferentes formas de pensar contribuíam para o debate, que girava em torno das questões raciais. Esta diversidade é uma forma de atender às diferentes visões no movimento. Não é, de forma nenhuma, algo prejudicial. Atendeu aos anseios democráticos e às várias crenças.

Rets - Em 1980 o senhor apresentou sua tese sobre o quilombismo. O senhor ainda vê a forma de organização dos quilombos como um bom modelo de desenvolvimento para o país?

Abdias do Nascimento - Ainda vejo. Mas acho que eu apresentei o quilombismo de forma um pouco antecipada. A sociedade precisa ter um pouco mais de experiência para poder perceber a significação do quilombo e a prática do quilombismo. Muitas pessoas interessadas no assunto concordaram com as minhas teses, mas nenhuma delas procurou implementar uma organização como a que propus com o quilombismo.

Rets - Em sua trajetória, alguns críticos consideravam suas teses radicais e até mesmo racistas. Esse comentário ainda é feito hoje em dia. Como o senhor responde a essas críticas?

Abdias do Nascimento - Incomoda um negro tendo um papel importante na sociedade. Eu não faço as minhas reivindicações para agradar àqueles que fazem essa crítica, mas sim para atender às demandas da comunidade negra. Se nós não defendermos nossa cultura, quem é que vai fazer por nós? Ela vai se degradando, deteriorando, e ninguém vai fazer nada por ela? Quem perde é o Brasil, desperdiçando a riqueza que tem.

Rets - O que falta ao movimento negro para que as reivindicações da comunidade afro-descendente prevaleçam?

Abdias do Nascimento - Falta ser mais contundente. Tratar com delicadeza esse assunto não tem resultado.

Italo Nogueira

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