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Radar Social

Autor original: Fausto Rêgo

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Para entender as condições de vida dos brasileiros: o Estado e as políticas públicas

Os Estados contemporâneos, independentemente do regime político vigente e da condição econômica, têm tido um papel relevante no campo social.No entanto, o alcance e a intensidade das ações estatais oscilam conforme as características de cada sociedade e podem variar desde a adoção de políticas públicas focalizadas nos grupos mais vulneráveis até os modelos muito mais amplos de ações universalistas de bem-estar social.

Grosso modo, a implementação das políticas envolve ação estatal direta e indireta.A primeira ocorre mediante o exercício de prerrogativas regulatórias, por meio de políticas públicas de transferências de renda, de incentivos fiscais e de provisão de bens e serviços (como os de saúde, educação e assistência social). A atuação indireta, por sua vez, se dá por meio de parcerias com instituições privadas, com ou sem finalidade lucrativa.

Mas, no Brasil, nem sempre foi assim. Até o final do século 19, o papel das instituições governamentais era pouco mais que residual em dimensões como saúde e educação, assim como era inexistente em outras como habitação e previdência. A caridade, individual ou coletiva (por intermédio de entidades filantrópicas), constituía-se na principal maneira de a sociedade socorrer os pobres. Nem mesmo o início do processo de industrialização, nas duas últimas décadas do século 19, alterou essa característica.

Apesar da existência de algumas iniciativas isoladas, com destaque para o surgimento da previdência social em 1923, somente a partir da década de 1930 começa a se esboçar um projeto mais amplo de proteção social. Isso significa que boa parte desse sistema foi construída sob regimes autoritários de diferentes características: entre 1937-1945, no Estado Novo de Getúlio Vargas, e entre 1964-1985, sob tutela militar.

É do período do Estado Novo a consolidação da legislação trabalhista, que garantiu direitos até então desconhecidos da quase totalidade dos trabalhadores, como férias, estabilidade no emprego, jornada limitada e salário mínimo,bem como a ampliação da previdência social, ainda que de forma segmentada por categoria profissional e restrita ao trabalhador urbano do mercado formal e à burocracia estatal.

Após esse período seguiram-se duas décadas de uma frágil democracia, mas com crescimento econômico impulsionado pelo Estado e pelas iniciativas de planejamento governamental, como o Plano Salte (saúde, alimentação, transporte, energia) no governo Dutra (1946-1951), o Plano de Metas do período Juscelino Kubitschek (1956-1961) e as Reformas de Base do governo João Goulart (1961-1964), reformas interrompidas abruptamente em 1964. No campo social, destacam-se nessas décadas o início da consolidação dos sistemas de pensões e aposentadorias e de atenção médico-hospitalar sob a égide da previdência social, a primeira tentativa de criação da previdência rural e a expansão dos sistemas estaduais de educação básica.

Já no período militar, a proteção social passa a incorporar novos grupos, como os trabalhadores rurais.A segmentação do sistema previdenciário se reduz com a fusão dos institutos de seguro social, até então organizados por categoria profissional.A estabilidade no emprego no setor privado é eliminada e, em contrapartida, é criado o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS),uma compensação aos trabalhadores.

Os traços da política social desse período incluem mecanismos injustos de financiamento e processo decisório centralizador e autoritário, apesar da expansão observada na cobertura dos serviços.A marca mais forte desses anos foi o chamado “milagre econômico”, não alcançado sem danos colaterais. Como disse então um dos presidentes escolhidos pelo regime,“a economia vai bem,mas o povo vai mal”.O efeito mais perverso desse momento foi a piora da concentração de renda, nem de longe compensada por políticas assistenciais, cujo objetivo implícito era a legitimação do regime e a garantia da estabilidade política necessária ao crescimento econômico.

Após o período militar, há o retorno do país à democracia e a conseqüente abertura de espaço para o debate que alimentou a Assembléia Nacional Constituinte (1986- 1988).É nesse período que nascem propostas que, incorporadas à nova Constituição Federal, viriam a mudar substancialmente a concepção, a execução e o financiamento das políticas sociais.

A partir da nova Constituição, promulgada em outubro de 1988, o país inicia uma grande virada política e social. Política,porque restabelece o Estado de direito e fortalece a Federação,ao redefinir a arrecadação de tributos em favor de estados e municípios (em detrimento da União). E social, porque expande a responsabilidade do Estado como decorrência da ampliação dos direitos de cidadania.Nesse sentido,devem ser destacadas algumas inovações constitucionais, que incluem:

1.Criação da seguridade social, conceituada como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”1.

2.Definição das bases para a institucionalização do controle da sociedade sobre a ação social do governo, por meio de colegiados específicos em cada instância de governo, principalmente na seguridade social e na proteção da criança e do adolescente2.

3. Fortalecimento do financiamento das políticas sociais com a criação das contribuições sociais vinculadas à seguridade e a ampliação,nas três instâncias de governo, do percentual da receita de impostos vinculado à educação3 – vinculação mais tarde estendida à saúde4.

Não obstante esses avanços, um problema que dificultou a consolidação da virada política e social do país – a inflação – só foi minimamente resolvido na metade dos anos 1990, após mais de uma década de instabilidade resistente a vários planos econômicos. É importante destacar, entretanto, que ainda que persistam diversos resultados positivos do Plano Real, implementado em 1994, a sociedade pagou um preço por eles, como o aumento da carga tributária e da taxa de juros. Isso inibiu o investimento na produção de bens e serviços, resultando em baixas taxas de crescimento econômico e em altos níveis de desemprego. E, ao mesmo tempo, implicando restrições fiscais que trouxeram dificuldades para o financiamento de políticas públicas capazes de enfrentar a dívida social acumulada ao longo dos anos. O enfrentamento dessa dívida social pelo Estado brasileiro não é tarefa fácil, tendo em vista sua magnitude e complexidade.Com efeito, como será visto no decorrer do Radar, os problemas sociais, além de expressivos, estão intimamente interligados,provocando um círculo vicioso que contribui para seu agravamento.Um exemplo dessa imbricação pode ser observado a partir do impacto dos baixos níveis de educação nas demais dimensões sociais.

Por exemplo, no que tange à demografia, a fecundidade no Brasil é mais alta entre as mulheres de menor escolaridade, e a mortalidade infantil é mais alta nas famílias em que predominam pessoas com menos de quatro anos de estudo.Quanto à saúde, o diagnóstico tardio de diversas doenças, que influi decisivamente na diminuição das possibilidades de cura de vários tipos de câncer, é mais comum nos indivíduos com até oito anos de instrução. Em paralelo, no que diz respeito à renda, cada ano a mais de estudo aumenta a remuneração dos trabalhadores em aproximadamente 11%. E, por último, no que concerne à pobreza, de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef),“os filhos de mães com pouca escolaridade,quando comparados com crianças cujas mães tenham bom nível educacional, terão sete vezes mais possibilidade de ser pobres, 11 vezes mais possibilidade de não freqüentar a escola e 23 vezes mais chances de não ser alfabetizados”5.

Vê-se,pois,que as soluções para os problemas sociais devem necessariamente estar articuladas entre si.E mais:devem avançar para dentro do campo econômico.Em outras palavras, é preciso conjugar o crescimento da economia com o desenvolvimento da sociedade, conjugação nem sempre encontrada ao longo da história brasileira e para a qual o Estado certamente desempenha um papel-chave.

É necessário acrescentar que essa função só será cumprida de maneira satisfatória se as políticas públicas forem menos de governo e mais de Estado. Isto é, o enfrentamento da dívida social no Brasil requer que a intervenção do Estado seja mais ampla, estruturada e duradoura, contando com recursos (financeiros, humanos e institucionais, entre outros) que possibilitem transcender os governos em exercício. Esse é o caso das atuais políticas de previdência social, de saúde, de assistência social (em particular, os Benefícios de Prestação Continuada) e de educação.

E, para tanto, a participação da sociedade é crucial. A transformação das políticas públicas em políticas de Estado (ou a manutenção delas como tais na atualidade brasileira) depende de entidades civis numerosas, organizadas, mobilizadas e demandantes de soluções efetivas para os problemas sociais.

Notas

1. Conferir a Constituição Federal, artigo 194, caput.

2. Verificar a Constituição Federal, artigo 194,parágrafo único, inciso VII; artigo 198, inciso III; artigo 204, inciso II; e artigo 227, parágrafo 7º.

3. Conferir a Constituição Federal, artigo 195 e artigo 212.

4. Verificar a Emenda à Constituição Federal Nº 29/2000.

5. A esse respeito, conferir o relatório “Situação da Infância e Adolescência Brasileiras”no endereço http://www.unicef.org

Este é um texto introdutório do Radar Social 2005, documento que está disponível na íntegra na área de Downloads desta página.





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