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Assunto de família

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Artigos de opinião

Eleonora Ramos*






Assunto de família


O problema é grave, mas invisível. O hábito de bater nas crianças para “educá-las” faz parte da tradição familiar brasileira. Vem lá de trás, herança de nossos colonizadores portugueses e espanhóis, introduzida pela mão pesada dos jesuítas. Os índios não puniam com castigos físicos suas crianças e mulheres, pelo contrário. Registros históricos e textos da época estão repletos de referências à harmoniosa relação familiar dos povos nativos. “Não tem quem açoite o filho, e falar algo a alguém se sente mais do que bater”, como escreveu o padre Luís de Grã, por volta de 1550. Ou o jesuíta Fernão Cardim, quarenta anos mais tarde: “não há pai nem mãe que em toda vida castigue seu filho, e os pequenos são obedientíssimos e brincam com muito mais festa e alegria que os meninos portugueses”. Praticamente nada restou dessa interessante pedagogia. Adotamos a dor e o sofrimento como principais instrumentos de educação de crianças e jovens. Dito assim, hoje, parece exagero. Ora, nossos filhos têm tudo que precisam, o que tem demais em levar umas palmadas, chineladas de vez em quando, igualzinho aconteceu conosco?

No Brasil colônia crianças, jovens, mulheres, idosos, escravos, empregados, doentes mentais e agregados eram submetidos a punições violentas pelo chefe da família, provedor e senhor absoluto de seus domínios, incluindo a vida, a liberdade e a dignidade das pessoas.

Até os nossos dias, poucos discutem o direito de bater nas crianças, aparentemente legítimo, conferido a pais e responsáveis, leia-se avós, tios, padrastos, madrastas irmãos, tios, padrinhos, patrões, professores, babás, educadores sociais. Nos abrigos, quanta violência entre berços cor de rosa e pratinhos cheios de mingau, que encantam o visitante. O fato é que qualquer adulto incumbido de tomar conta de uma criança, ganha automaticamente a prerrogativa de castigá-la fisicamente.

Milhões de nossos antepassados sofreram tortura e opressão na infância e transmitiram o vírus da violência em família, geração após geração. Quantas crianças se tornaram adultos improdutivos e inseguros, agressores de mulheres, pais e mães impiedosos e intolerantes, maridos homicidas, maníacos sexuais, genocidas, serial killers? Em todos os casos, adultos infelizes.

O sistema patriarcal do Brasil colônia consolidou o poder absoluto do homem e a relação desigual nas relações familiares. Os castigos físicos, constantes e cruéis, aplicados indiscriminadamente em crianças brancas e negras, meninas e mulheres, eram tolerados e tratados como “assunto de família”. E assim permaneceu, mesmo quando a sociedade e a legislação repudiaram, uma a uma, as relações sociais violentas, a dominação de um homem sobre outro, o desrespeito à dignidade.

É surpreendente que os castigos físicos ainda façam parte da vida de tantas crianças – as maiores vítimas estão na faixa de zero a seis anos - apesar dos avanços das ciências que estudam o comportamento e o inconsciente do homem. É surpreendente e lamentável que, em pleno século XXI, a legislação e a sociedade admitam a violência física, desde que sem “exageros”.

Isso significa deixar milhões de crianças à mercê dos desejos, necessidades e psicopatias dos adultos. De suas paixões, fraquezas e fantasias. Das surras programadas com determinados objetos até pontapés, empurrões e socos ocasionais, tudo serve para alguns adultos aliviarem a dor, a revolta e a humilhação que carregam no mais profundo da alma.

O tema – bater ou não nas crianças – é geralmente discutido com reservas e superficialidade, como assunto de pouca ou nenhuma importância no contexto dos problemas relacionados às crianças. Só quando mostra sua face cruel, aterradora, inconcebível, é que ganha contornos concretos. Aí, a violência extrema de alguns pais e mães nos parece distante da palmadinha amorosa. Mas têm a mesma origem: a certeza de que o sofrimento físico corrige as crianças.

A prerrogativa que têm os pais de dar uma boa chinelada “quando não obedecem com palavras” é a mesma que levam mães a queimarem as mãos de seus filhos, por faltas mais graves: mexer na panela, abrir o pacote de biscoito, pegar o lápis do colega.

O Brasil que em dez anos tanto avançou em relação à prevenção e repressão à violência sexual contra crianças e adolescentes e no combate ao trabalho infantil, permanece indiferente à violação de seu direito à vida e integridade física e psicológica e a condições favoráveis ao pleno desenvolvimento. Direito a viver os preciosos anos da infância sem dor e sem medo.

*Eleonora Ramos é coordenadora do Projeto Proteger - Infância sem Dor e sem Medo, desenvolvido na Bahia.






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