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É de berço que se tem direitos

Autor original: Viviane Gomes

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A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) enviada ao Congresso Nacional, no dia 14 de junho, para a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos profissionais da Educação (Fundeb) exclui o financiamento de creches - ao contrário da expectativa dos movimentos e entidades que trabalham com o tema. Para a pedagoga Geisa Andrade, participante do grupo gestor do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib) e integrante da equipe de educação do Centro de Cultura Luiz Freire, ao não destinar recursos para a educação de crianças de zero a três anos, o texto [cuja íntegra pode ser obtida na área de Downloads, ao lado] fere a Constituição Federal que estabelece a educação como um direito de toda criança brasileira.


Diferente do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), em vigor até o final deste ano e que só destina recursos para a educação fundamental, o Fundeb teria como finalidade lançar um novo olhar sobre a educação infantil, o ensino médio, a educação de jovens e adultos, atendendo demandas específicas de acordo com a realidade dos alunos por série, idade e locais onde residem e estudam.


A proposta está no Congresso e a comissão que vai analisar o texto já foi definida. No entanto, Geisa Andrade afirma que há tempo para alterar o texto e que as organizações não-governamentais, movimentos, fóruns e redes estão preparando uma série de mobilizações para que o parlamento decida que a educação básica no Brasil tem que começar antes dos quatro anos.


Rets - O que é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos profissionais da Educação, o Fundeb? E qual é a importância desse instrumento?


Geisa Andrade - Esse fundo nasce em substituição ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), destinado a prover recursos apenas para o ensino fundamental - uma vez que no Brasil é obrigatório o financiamento da educação para crianças e adolescentes de seis a quatorze anos. A grande diferença do Fundeb é que ele abarca a educação básica, incorporando a educação infantil e considerando esta como a primeira etapa da educação básica. A questão é que, atualmente, no Brasil, o financiamento à educação é obrigatório apenas para o ensino fundamental - que começa aos seis anos e segue-se por nove anos - tempo recentemente ampliado por lei.


O tempo de financiamento público para a educação foi ampliado, mas contempla apenas crianças a partir de seis anos. A ampliação desse tempo é positiva e necessária; mas por que não podemos ampliá-lo ainda mais? Eu considero que a ampliação da obrigatoriedade é uma questão de inclusão; vejo como uma política inclusiva, mas precisamos avançar mais.


Outra questão que nos preocupa com essa ampliação do tempo de financiamento é saber como vamos trabalhar com as crianças de seis anos. É importante também pensar na qualidade do trabalho e das rotinas com essas crianças. Incorporar, incluir é bom, mas também é bom pensarmos na questão da qualidade dos conteúdos no dia-a-dia dessas crianças.


Rets - O país tem recursos para ampliar esse financiamento?


Geisa Andrade - Eu não considero que o país tenha muitos recursos voltados para a educação. Mas tratá-los bem é importante, seja a quantidade que for. Pouco ou muito, é preciso direcionar bem. O Brasil só destina 4% do PIB [Produto Interno Bruto] para a educação. Há três anos, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação puxou uma ação para aumentar o percentual do PIB para a educação de 4% para 7%. Seria um aumento considerável, mas a proposta foi vetada em função de políticas econômicas, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso. Até hoje convivemos com a dor de não conseguirmos aumentar os recursos para a educação.


Rets - E atualmente, o que está sendo colocado no Fundeb?


Geisa Andrade - O Fundeb do jeito que está não tem muitas perspectivas de melhoras. Durante a construção do texto do fundo, a sociedade civil foi ouvida apenas em parte. A construção teve muito mais participação de órgãos oficiais. A União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (Consed) participaram. Essas duas entidades e o MEC - do governo federal - contribuíram bastante para a elaboração do texto dessa emenda, da forma que está. Mas é também apropriado esclarecer sobre a relação de poder na negociação do texto final. O Consed, diferentemente da Undime, foi um conselho que se posicionou pela não inclusão das creches no Fundeb. A Undime, assim como o MEC, defendeu a inclusão da educação infantil no texto de criação do fundo. Esse jogo de poder, essa correlação de forças que se estabelece no momento são extremamente importantes para entendermos como se dá a destinação dos recursos, ou seja, o que acontece no país quando você tenta distribuir os recursos para as áreas sociais e não somente para a educação.


Rets - Mesmo com o MEC a favor, por que as creches não foram contempladas no Fundeb?


Geisa Andrade - No momento que isso vai para o Ministério da Fazenda, ou seja, no momento da distribuição de recursos molda-se a situação da educação de acordo com os recursos que se tem e não se destinam recursos para a educação via o CAQ (custo-aluno-qualidade). O CAQ é um estudo que mostra o custo do aluno baseado na qualidade do ensino. Esse deveria o mecanismo base para a elaboração e definição das políticas públicas de educação. No entanto, esse estudo não é considerado quando as políticas de educação são definidas.


A atual proposta do Fundeb considera que as receitas, centralizadas em cada estado e resultantes de transferências e impostos, serão redistribuídas para secretarias de educação estaduais e municipais proporcionalmente às matrículas de suas redes, com base em um investimento mínimo por aluno. Os estados que não conseguirem viabilizar esse investimento mínimo para todos os alunos matriculados na educação básica receberiam uma complementação da União. Desta forma, percebemos que o Fundeb vai continuar redistribuindo os recursos financeiros para a educação básica como o Fundef, ou seja, adotando como critério o número de alunos matriculados por nível de ensino em cada rede.

Rets - Pelo que você relatou, os governos estaduais empenharam muito esforço para não incluir as crianças de zero a três anos do Fundeb. Por quê?


Geisa Andrade - Os governos estaduais fizeram pressão para escapar da contrapartida estadual. Os estados recebem recursos da União e repassam aos municípios. O percentual do governo federal é baixo e, pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB), a educação infantil é uma responsabilidade dos municípios. Então, o que se lê com essa proposta do fundo é deixar toda educação básica cargo somente dos municípios. É verdade que a LDB diz que a educação infantil é de competência dos municípios, mas também deixa claro que essa competência deva acontecer através de uma ação compartilhada entre os governos federal e estadual. Isso, na maioria das vezes, não é feito. O governo estadual, na verdade, se ocupa do ensino médio, e os municípios se ocupam da educação infantil e do ensino fundamental. Caso as creches não sejam contempladas no Fundeb, muitos municípios não terão como mantê-las.


Rets - Você acredita que a questão orçamentária signifique uma alteração do posicionamento do governo para a definição de políticas públicas?


Geisa Andrade - Não é uma alteração. É uma repetição da forma de fazer políticas públicas voltadas para a educação. O Fernando Henrique Cardoso também não considerou os estudos do CAQ. Então a gente não crê que iremos ter grandes modificações com o Fundeb da forma como ele está.


Rets - E quais são os grandes entraves do Fundeb hoje?


Geisa Andrade - Há dois grandes pontos do Fundeb que são completamente prejudiciais para a vida da educação brasileira. Mesmo com as grandes mobilizações que fizemos no ano passado e no decorrer deste ano, nós não conseguimos incluir a educação infantil, como um todo, no texto que foi para o Congresso. Outra proposta que não conseguimos aprovar foi o aumento para 80%, retirados de uma parte do fundo, para o pagamento de professores e profissionais de educação. Esse percentual continuou em 60%.


Rets - O texto da PEC desvaloriza a educação infantil?


Geisa Andrade - No caso da educação infantil, a gente não compreende porque o governo entendeu - para o texto do Fundeb – que a educação infantil começa somente a partir dos quatro anos. Porque, no momento em que ele financia a educação a partir dos quatro anos, ele entende que a educação infantil começa aí. E quem vai financiar a educação das crianças de zero a três anos?


Rets - E quais são os reflexos sociais da exclusão desse financiamento para a educação das crianças dessa faixa etária? Creches podem ser fechadas?


Geisa Andrade - Evidentemente. Se os municípios não melhorarem sua situação financeira ou não encontrarem um outro meio para financiar a manutenção dessas creches, então, no nosso entendimento, haverá um retrocesso de extrema gravidade.


Rets - Quais são as desigualdades sociais que podem ser acentuadas com o texto do Fundeb, da maneira que está?


Geisa Andrade - A pobreza é a principal delas. As pessoas pobres já tinham dificuldades de colocar seus filhos pequenos nos espaços institucionais de educação. Nós vemos que essa dificuldade só vai se acentuar, caso não haja recursos para financiar a educação das crianças pequenas.


Além disso, a história das creches mostra que esse equipamento não é apenas um direito das crianças. Ele é também um direito das famílias, um direito da mulher - que tem onde deixar seus filhos para trabalhar. E aí nós também não concordamos com algumas propostas de políticas institucionais que o país oferece, como por exemplo, de mães-crecheiras (realizadas majoritariamente por mulheres donas-de-casa que se responsabilizam por ficar com crianças da vizinhança). Há investimento público nesse sentido. Nós não concordamos. Defendemos a inserção das crianças nos espaços institucionais de educação, com a participação das famílias nesses espaços, com qualidade, com a presença dos conselhos. Ambientes com espaços amplos, iluminados. Defendemos também a formação adequada de professores e uma orientação pedagógica.


Rets - Até 2011, o Plano Nacional de Educação prevê aumento de 50% no atendimento educacional de crianças de zero a três anos. Isso será possível?


Geisa Andrade - Com o Fundeb, e de acordo com o Plano Nacional de Educação, nossa avaliação é que vamos atingir a meta de atendimento em educação das crianças de quatro e cinco anos. No entanto, para crianças de zero a três anos, será impossível chegar até a meta. Com a perspectiva de ter esse texto aprovado, nós acreditamos que a situação das crianças de zero a três vai piorar - e muito. E isso poderá ser visto quando essas medidas forem avaliadas em 2011, quando essas crianças que tiverem de zero a três anos em 2006 já estiverem maiores.


Precisamos fazer mais uma grande mobilização nesta última etapa de tramitação, antes que o texto seja aprovado pelo Congresso. A gente tem que conseguir sensibilizar os parlamentares e contar o amplo apoio e participação da sociedade civil. Caso contrário, a gente vai perder essa batalha.


Rets - O que ainda pode ser feito?


Geisa Andrade - Desde o dia 14 de junho - quando o texto foi enviado para o Congresso - nós tínhamos entregado um abaixo-assinado com quase trinta mil assinaturas ao MEC. E a gente conseguiu sensibilizar o ministério. Mas agora é a reta final. Temos que mostrar aos parlamentares as conseqüências gravíssimas que este texto vai trazer para as crianças de zero a três anos e para as políticas de educação infantil em geral.


Rets - Quais são as conseqüências mais graves?


Geisa Andrade - As mais graves é que as crianças de zero a três vão continuar sem atendimento, especialmente as crianças pobres. Elas vão ficar sem espaços e sem alternativas de qualificar um pouco mais as suas vidas. O que o governo está negando a essas crianças são espaços onde elas possam conviver com qualidade com outras crianças e com outros adultos, através de um trabalho bem dirigido. Isso não tem conseqüência para as classes média ou média-alta - que colocam seus filhos em creches privadas, particulares. Mas em relação às políticas voltadas para a diminuição da pobreza, das desigualdades, essa medida vai aumentar muito o nível das desigualdades sociais. E vai, na verdade, tirar da população pobre um direito que ela tem de dar aos seus filhos pequenos uma infância bem assistida, bem monitorada. Evidentemente, que a participação das famílias conta muito na qualidade do espaço. Espaços que não têm a família como co-participante nos seus processos de gestão não são bons.


Rets - Você pode explicar o o papel da educação infantil, incluindo as crianças de zero a três anos, na educação de maneira geral?


Geisa Andrade - Nós não entendemos que a educação infantil é uma preparação para o ensino fundamental. A educação infantil tem especificidades próprias, como o direito que a criança tem de ser tratada como cidadã na idade em que ela está. E não simplesmente ser preparada para viver um ciclo educacional. A criança de zero a três tem cidadania. Ela tem que brincar. Tem que ter acesso a um espaço estimulante, ao espaço leitor e salutar para o desenvolvimento de sua imaginação, da arte, da cultura, da auto-estima, da autonomia. A educação infantil prepara a criança, que é cidadã a partir do momento que nasce, para ser participativa no momento atual da vida dela. Não é um vir a ser. Ela é. Mesmo assim, entendemos que a educação infantil, com todos esses instrumentos, contribui para aumentar a qualidade da participação desse indivíduo. É de berço que se tem direitos. E não somente a partir dos quatro anos.


Rets - Há alguma mobilização sendo preparada?


Geisa Andrade - Pretendemos fazer uma outra Proposta de Emenda Constitucional. A comissão que fará a análise do texto do fundo já está instalada e, agora, vamos percorrer dez sessões no Congresso, a contar da instalação da primeira sessão. Nesse tempo, nós podemos encaminhar emendas para que o texto mencione, por exemplo, a expressão "educação infantil como um todo". Assim, estaremos incluindo o financiamento para a educação das crianças de zero a três, juntamente com as outras idades que já estão contempladas. Ou podemos sugerir a inclusão de creche e pré-escola, não apenas de pré-escola. Então nós podemos - e vamos tentar - mexer com as palavras do texto para que possamos mudar o teor da PEC. E se a gente consegue mudar o teor do texto, a gente consegue mudar a destinação dos recursos. Nossa batalha agora é essa.


Rets - O Movimento está articulando outras mobilizações?


Geisa Andrade - A gente tem que sensibilizar os parlamentares. Sabemos que eles são influenciados por outros setores e, por isso, temos que mobilizar e sensibilizar a sociedade toda para a causa da educação infantil - entendida como primeira etapa da educação básica. A gente tem que mostrar que educação básica não começa aos quatro anos. Com esse texto, o conceito de educação básica foi ferido.

Além dessa frente, na primeira semana de julho haverá uma grande movimentação, articulada com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e o Mieib, em Brasília. Também em julho, estaremos no Seminário Nacional de Educação Infantil, promovido pelo MEC. Além disso, faremos um encontro com todos os fóruns do Mieib no qual vamos tirar uma proposta de emenda para apresentar aos congressistas. O que temos feito, atualmente, é pensar na construção dessas propostas de emendas - já começamos a fazer isso eletronicamente - com os fóruns do Mieib e articulação direta com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Então, o que precisamos é engrossar o cordão da militância para sensibilizar parlamentares para que eles não aprovem a proposta do jeito que está, para que eles façam a revisão do texto e possam garantir a qualidade da educação dessas crianças.



Rets - E qual é o papel do Congresso Nacional com relação à PEC?


Geisa Andrade - O papel do Congresso, no caso do Fundeb, é votar. E a gente espera que ele vote o Fundeb, assegurando a inclusão de todos e garantindo a perspectiva da qualidade na educação. Esperamos que os parlamentares reflitam sobre o estado da educação e sobre a responsabilidade que eles têm neste momento. Eles vão votar um fundo que está desqualificando a educação no momento em que ele não destina recursos para as crianças pequenas, que têm que ser educadas na mesma proporção das crianças maiores. Educação fundamental também é criança. Então por que as crianças maiores teriam mais direitos do que as crianças pequenas? Não tem justificativa, não há argumentos sólidos para este tipo de reflexão.


Viviane Gomes

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