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A (difícil) relação entre Estado e sociedade civil

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Artigos de opinião






A (difícil) relação entre Estado e sociedade civil

Agnaldo dos Santos*

Existe hoje a percepção de que o país estaria passando pelo grande desafio de definir o tipo de relação que o Estado brasileiro deve manter com a sociedade civil, tanto no âmbito da organizada quanto no da composta por cidadãos envolvidos com suas tarefas particulares diárias. A teoria política desde seu nascedouro procurou indicar quais os caminhos que o Estado moderno deveria seguir para manter “saudável” essa relação, onde o corpo administrativo do Estado deveria cuidar da execução das grandes decisões tomadas pela “casa do povo”, ou seja, pelo Poder Legislativo, com seus parlamentares representantes da população. O Judiciário seria o grande zelador da Constituição e o mantenedor do cumprimento do corpo legal. Nessa visão, caberia ao povo delegar aos eleitos para o Executivo e Legislativo os poderes de decidir em seu nome, e no caso de insatisfação, retirá-los por voto direto a cada quatro ou cinco anos.

Esse modelo, que prevalece no Ocidente pelo menos desde o século XIX, indica agora evidentes sinais de fraqueza. Não só pelo fato dos Estados nacionais encontrarem hoje grande dificuldade em promover suas tradicionais funções de gestor de políticas sociais e de indutor de desenvolvimento econômico, conseqüência do processo de globalização e desregulamentação reivindicada pelas grandes corporações transnacionais. Existe também um componente interno ao próprio modus operandi do Estado nas nações: seu limite de arregimentação voluntária dos cidadãos à participação nas coisas públicas. Quanto mais a sociedade avança na modernização, mais formais ficam as relações entre as pessoas, e mais “profissionalizadas” ficam as tarefas do político. Na verdade, há um estranhamento do cidadão para com o envolvimento político, visto como coisa da elite e para a elite. Quando o Estado não executa suas tarefas, ou ainda quando explodem denúncias de corrupção, aos olhos da população tais fenômenos seriam vistos como sendo apenas “defeitos de caráter” do governante de plantão, já que “todo mundo é igual mesmo” e que a participação individual pouco mudaria o estado de coisas. Esse desânimo cívico não é exclusividade de países com pouca experiência democrática, antes é um fenômeno vivo principalmente nas antigas democracias norte-americana e européia.

Essa falta de ânimo cívico não deveria ser encarada tão somente pela ótica do pessimismo, já que apenas consolidaria aquilo que o sociólogo português Boaventura de Souza Santos classifica como “fascismo social” – certa normalidade constitucional seguida de grandes desigualdades sociais e apatia política. Caminhos alternativos devem ser encontrados dentro da perspectiva democrática, onde a participação de todos ou da maioria dos cidadãos possa se transformar em antídoto contra as notórias injustiças sociais. Certamente definir quais papéis devem exercer o poder público e a sociedade civil nos destinos da nação ajude um pouco nessa empreitada.

O professor norte-americano Peter Evans vem propondo há alguns anos uma série de reflexões sobre a relação que o Estado e a sociedade devem apresentar para garantir não só o desenvolvimento econômico, mas, sobretudo, uma melhor distribuição de renda e melhores indicadores sociais. Em sua reflexão, propõe aquilo que ele designa como sendo sinais de uma verdadeira parceria entre a sociedade e o Estado, possibilitada exatamente porque ambos conseguem apresentar autonomia um em relação ao outro. Nesse sentido, o Estado consegue desenvolver a contento seu corpo burocrático, formado por pessoas selecionadas por suas competências profissionais, desenvolvendo, portanto, uma perspectiva de longo prazo que a rotatividade eleitoral não permitiria em determinados cargos preenchidos por cotas partidárias. Essa perspectiva de longo prazo não só dá confiança aos agentes econômicos, como inibe a captura do Estado por interesses privados. Contrariando o senso comum liberal, não seria o enfraquecimento do Estado a solução para os seus problemas, pelo contrário – um Estado atuante, com pessoal capacitado e com visão de longo prazo poderia criar condições para implementação de um verdadeiro projeto nacional.

Acontece que apenas um Estado “forte” não é garantia de chances reais de melhoria dos indicadores sociais. Pode até mesmo ocorrer o contrário - e a história do século XX é pródiga em exemplos. O medo que a participação popular gera em determinados setores de Estado, com ressonância mesmo em segmentos formadores de opinião, teria abortado diversas possibilidades de controle social, o que ficou evidenciado no processo da Assembléia Nacional Constituinte brasileira entre 1986/1988.

Faltaria nessa equação um outro pólo: a participação cidadã e os efetivos controles sociais de políticas públicas. Nações nas quais a sociedade civil organizada (com forte interface com o poder público) foi ao mesmo tempo agente de tensionamento político e “parceira” de projetos de consolidação de políticas sociais, houve melhorias em todos os indicadores das condições de vida da população. Significativos exemplos dessas experiências podem ser observados no período que vai do final da Segunda Guerra até meados dos anos 1960, quando o Estado de Bem-Estar interagia fortemente com sindicatos e movimentos sociais em alguns países europeus. Esse equilíbrio entre Estado e sociedade fortes poderia qualificar a relação entre ambos, rejeitando tanto o medo do “estatismo” quanto o do “corporativismo”. Um poder público constituído por normas claras e efetivas (incluso um corpo burocrático eficiente), junto à participação da sociedade em diversos canais de decisão pode tornar a democracia brasileira mais real e menos formal. É nesse registro que as tentativas de instituir conselhos de representantes nas subprefeituras do município de São Paulo ou o projeto da OAB defendido pelo jurista Fábio Konder Comparato (acerca da regulamentação dos referendos e plebiscitos) se inscrevem. Antes de representar perigo ao formato representativo, esse fortalecimento da participação da sociedade civil daria novo vigor à democracia brasileira.

*Agnaldo dos Santos é sociólogo e integrante da equipe do Observatório dos Direitos do Cidadão do Instituto Pólis.






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