Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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A data de nascimento foi 13 de julho de 1990. Como todo recém-nascido, foi festejado e comemorado. Nos primeiros anos de vida, seu maior desafio era ensinar. E continuou assim durante a infância. À medida que o tempo passou, sofreu algumas alterações, atualizou-se. Hoje, em plena adolescência, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) está completando 15 anos - e é bom saber ao certo o que há para celebrar.
O período no qual o ECA foi gestado incluía a redemocratização do país e a Assembléia Constituinte, processos que foram determinantes na articulação dos movimentos ligados ao tema da infância e da adolescência. A então nova lei foi um pouco fruto desse clima que vigorava no Brasil. A mobilização já existente para sugerir pontos para a Constituição foi aproveitada e influenciou na discussão do Estatuto.
"O ECA acompanha esse contexto. A mesma sociedade civil que colocou o artigo 227 [veja a íntegra no box ao lado] na Constituição, em uma emenda popular que recebeu 1,5 milhão de assinaturas, é a que se mobiliza e cria uma série de novas coisas. O estatuto é também expressão desse processo", analisa Renato Roseno, coordenador do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará e ex-coordenador da Associação Nacional de Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced).
E dessa forma ganhou vida uma legislação tida como avançada e progressista, bem diferente do Código de Menores que vigorava até então, datado de 1979. A principal mudança conceitual era encarar crianças e adolescentes como dignos de direitos, independentemente de suas idades, etnias, condições sociais etc. Eram sujeitos plenos e, assim, deveriam ter seus direitos respeitados e preservados. Em outras palavras, não é preciso crescer para gozar de todos os direitos. Tratava-se de uma visão mais ampliada, especialmente se comparada à atuação de muitas das organizações que lidavam com crianças e adolescentes na época, marcadas por práticas assistencialistas. Mais do que dar comida a crianças com fome, a preocupação deveria ser garantir alimentação de qualidade, educação, saúde, ambiente familiar sadio e tratamento, quando necessário. Em resumo: condições completas para o bom desenvolvimento de crianças e adolescentes - que hoje são 37,5% da população, segundo o IBGE.
Por representar e estabelecer diretrizes ideais no trato com a infância e a adolescência, o ECA passou a ser marco referencial para organizações. E, como lei que é, deveria ser devidamente respeitado e implementado não só por ONGs e educadores - entusiastas do estatuto -, mas principalmente pelo Estado e por todos os segmentos que de alguma forma se relacionam com o tema. Infelizmente, essa assimilação ainda não é completa. Mas é inegável que houve avanços nesses 15 anos de vigência do ECA.
"Algumas conquistas ainda estão por se consolidar", aponta o presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), José Fernando da Silva. "Mas já temos percebido progressos", completa. Ele cita o esforço no combate ao trabalho infantil como um desses avanços, inclusive com o lançamento do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, operado pelo Ministério do Desenvolvimento Social. E as melhorias nessa área já se traduzem em números: em 1995, eram 5.147.964 crianças de 5 a 15 anos trabalhando; em 2003, caiu para 2.703.301, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD). O Brasil é considerado referência mundial no combate à exploração de crianças, sendo o único país a adotar política específica na área.
Para Roseno, do Cedeca-CE, é também nítido que, por mais que ainda seja preciso melhorar, o ECA tem conseguido aos poucos provocar as modificações necessárias para o pleno respeito aos direitos de meninos e meninas. "O ECA nasceu para pautar a sociedade, para ser referência. E diversos marcos legais existentes não conseguiram fazer 10% do que o ECA fez", acredita.
Uma das principais inovações do estatuto, no que tange a políticas públicas, é a criação da figura dos conselhos de direitos da criança e do adolescente e dos conselhos tutelares, através do artigo 88. Os primeiros existem nas três esferas - municipal, estadual e nacional - e têm caráter deliberativo, de controle e formulação de políticas públicas. Os segundos são o braço operacional, sendo sua função cuidar da implementação de tais políticas, acompanhar para ver se estão sendo devidamente executadas e os direitos, respeitados. Os conselhos são, inclusive, um dos motivos pelos quais o ECA é considerado uma lei avançada. "Os conselhos municipais e tutelares são uma inovação brasileira", aponta Roseno.
E se a criação dos conselhos é um dos avanços no âmbito das leis, a implementação desses órgãos é um dos principais avanços observados no processo de implementação do ECA, ou seja, na parte prática. Atualmente, existem 4.561 conselhos municipais de direitos e 4.260 conselhos tutelares. Porém a simples criação dos conselhos não significa necessariamente que ele está desempenhando sua função. "Muitas vezes os conselhos municipais e estaduais não estão cumprindo seu papel de controle de políticas públicas, formulação, deliberação", alerta Silva, representante da Associação Brasileira de ONGs (Abong) no Conanda.
Para Eliana Athayde, coordenadora da Anced, "teoricamente" o ECA foi bem incorporado pela sociedade. "Porém um número grande de pessoas ainda o desconhece, mas faz críticas mesmo assim". Além disso, ela acredita que, na prática, as políticas públicas - principal objetivo do ECA - não estão sendo bem assimiladas. "A própria criação de conselhos veio para implementar isso - as políticas públicas -, criou mecanismos para tanto. Mas a maior parte dos conselhos está engessada; na maioria das vezes, ainda em compasso de espera. Eles têm que fortalecer seu caráter deliberativo, ou seja, de decidirem sobre políticas públicas", diz. "E, para que isso realmente aconteça, é uma questão de comprometimento – por parte de todos - e de vontade política", completa a advogada e pedagoga, que também trabalha na Fundação Bento Rubião.
O presidente do Conanda lembra outro progresso que o ECA conseguiu estimular. "Em 1990, morriam 48,36 crianças antes de completarem um ano, em cada mil nascidas vivas. Em 2000, esse número tinha caído para 29,7". Mas recomenda: "é preciso fazer os recortes por região, etnia etc., pois essa melhora não está se dando de forma homogênea".
Outra grande contribuição do ECA está no que diz respeito ao tratamento a ser dado aos adolescentes em conflito com a lei. Foram criadas as medidas socioeducativas, para serem aplicadas a quem cometesse infração. Essas medidas levam em conta a perspectiva dos direitos humanos, preocupando-se, como o próprio nome diz, em socializar e educar.
No entanto esse é mais um ponto em que a legislação é exemplar e a prática não segue o mesmo caminho. Não são as raras as vezes em que se escuta falar em rebeliões nas instituições para adolescentes em conflitos com a lei. As unidades da Febem são a maior prova disso. As medidas socioeducativas de advertência, reparação do dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida e inserção em regime de semiliberdade são quase sempre preteridas, prevalecendo a de internação em estabelecimentos que deveriam ser educacionais - e que geralmente são marcados pela violência.
"O que acontece é que 71% das unidades de internação no Brasil são, na verdade, prisionais. Porque os governos insistem em construir unidades para 300, 400 jovens (que caracterizam um modelo prisional), ao invés de seguirem o que diz a resolução 46 do Conanda, que determina que cada unidade deve ter no máximo 40 adolescentes", analisa o presidente do órgão. Além disso, agentes e funcionários dessas unidades não são tecnicamente capacitados em noções de direitos humanos e outras mais que garantam o respeito aos direitos dos jovens privados de liberdade. Reflexo do próprio sistema prisional de adultos. "Na sociedade brasileira, há o pensamento conservador de que violência se resolve punindo mais. As medidas socioeducativas não foram incorporadas pela sociedade, e o nosso trabalho é exatamente lutar para que isso aconteça", diz Roseno.
Essa distância entre lei - boa - e prática - ainda a desejar - é objeto de reflexão da coordenadora da Anced, Eliana Athayde. "As leis costumam vir depois que já existe a prática, para consolidá-la. Nós, os brasileiros, preferimos primeiro conquistar a lei - muito por causa do momento sociopolítico que vivíamos, de construção da Constituição. Dessa forma, criamos a legislação que retrata a realidade que queremos que exista. Nessa perspectiva, é utópica", pondera. Mas justamente por representar uma realidade ideal de tratamento de crianças e adolescentes é que o ECA é importante e deve ser seguido.
Celebrado como avançado 15 anos atrás, ainda hoje o ECA inova. Os conselhos continuam sendo uma forma inovadora de promover a participação da comunidade no controle de políticas públicas, especialmente se comparados às legislações de outros países. Algumas alterações permitem que ele vá sendo atualizado. Foi o caso da atualização feita em 2003 para melhorar o artigo 241, que trata de pornografia infantil. Assim, o ECA é hoje a única lei que prevê o crime de pornografia infantil na internet, especificando ser crime a veiculação de imagens pornográficas com menores de 18 anos na rede mundial de computadores. A pena para quem cometer esse crime é de dois a oito anos de cadeia.
Também em 2003 o rigor do artigo 143, que preserva a identidade e a imagem da criança ou do adolescente que comete ato infracional, foi aumentado. Além de divulgar ou publicar fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco e residência, também se tornou proibido citar as iniciais dos jovens infratores. A pena para quem não obedecer ao artigo passou para seis anos. As mudanças que dizem respeito à idade mínima para trabalho na condição de aprendiz também ajudaram a atualizar o ECA. Antes, podiam trabalhar nessa condição as crianças com menos de 14 anos. Atualmente, apenas aquelas de 14 a 16 anos.
Com atualizações como essas e por sua própria característica progressista, o estatuto permanece sendo uma legislação avançada. “É sintonizado com os anseios da sociedade brasileira na luta histórica por justiça. E não já justiça nem democracia se não incluir crianças e adolescentes”, avalia Roseno. Silva tem opinião semelhante. Para o presidente do Conanda, “se compararmos o ECA com várias legislações internacionais, é avançado. E se pensarmos na realidade brasileira, vemos que, além de avançada, é imprescindível”. Eliana faz coro: “Por todos os motivos que já mencionei, além de utópico, é necessário”.
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