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Comércio de armas no fogo cruzado

Autor original: Mariana Loiola

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Comércio de armas no fogo cruzado


No próximo dia 23 de outubro, a população brasileira deverá ir às urnas para se manifestar, em um referendo popular, a favor ou contra a proibição da comercialização de armas de fogo no país. Os cidadãos responderão à seguinte pergunta: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?". Caso o “sim” seja a resposta da maioria da população, a venda de armas de fogo será proibida, tornando-se crime passível de prisão.

A consulta popular está prevista no Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03) e foi aprovada pelo Congresso Nacional no dia 6 de julho. A lei já proíbe a comercialização de armas e munições no país. No entanto, para que esta decisão passe a valer, a população precisa referendá-la (ou seja, dizer se concorda ou não com ela). Será a primeira vez que acontecerá um referendo no país e a primeira vez, também, que se faz um referendo sobre esse tema no mundo. O voto é obrigatório para cidadãos brasileiros maiores de 18 anos e menores de 70 anos.

“O voto será obrigatório, mas a maioria das pessoas ainda não sabe disso. É preciso entender a importância desse momento e ter coragem para mudar o futuro. Estamos sendo chamados para uma votação a respeito de um tema considerado um dos mais importantes pela população: a segurança pública. O referendo é também uma oportunidade de discutir o Estatuto do Desarmamento em âmbito nacional”, enfatiza Ilona Szabó de Carvalho, coordenadora da Campanha de Desarmamento do Viva Rio. “Este é o momento de tentarmos reverter o atual quadro de violência”, defende.

Se o cidadão disser “sim” vai abrir mão de um direito: o de ter ou não uma arma de fogo para sua defesa. É a opinião de Bene Barbosa, presidente do Movimento Viva Brasil. Além disso, para ele, a posse de arma não tem relação direta com a violência e desarmar o cidadão não é a solução para o problema. O Movimento Viva Brasil fornecerá dados e informações à Frente Parlamentar pelo Direito à Legítima Defesa, para a campanha eleitoral pelo “não”.

Embate nacional

Levantamento feito pelo Ibope neste mês mostra que, se o referendo fosse realizado hoje, a maioria da população votaria a favor da proibição do comércio de armas (81%). Até lá, no entanto, campanhas contra e a favor do desarmamento tentarão convencer a população.

Mariana Montoro, gerente de Mobilização do Instituto Sou da Paz, declara que ficou positivamente surpresa com o alto percentual a favor do “sim” apontado nos resultados da pesquisa do Ibope, mas reconhece que é cedo para cantar vitória. “Tudo o que é relativo à segurança pública tende a fazer com que a população seja levada pela emoção e perca a racionalidade na hora de pactuar com políticas públicas. Se houver um crime bárbaro uma semana antes do referendo, por exemplo, a opinião da maioria pode mudar”, diz. As políticas públicas, enfatiza Mariana, devem ser pensadas com base em fatos e dados, não na emoção.

Ilona Szabó concorda e reforça que é necessário evitar que o voto seja decidido pela emoção: “Os argumentos utilizados pelos grupos contra o desarmamento são emocionais, baseados em casos isolados, e não racionais. A política pública não pode olhar para a exceção, mas sim para a regra”.

Preocupada com o impacto do referendo sobre outros países, a indústria de armas também vai fazer uma forte pressão a favor do “não”, prevê Ilona. “O lobby das armas é poderosíssimo e está preocupado com o Brasil, que pode provocar um efeito dominó, dando exemplo a outros países”.

A propaganda eleitoral sobre o referendo ficará liberada a partir de 1º de agosto. As campanhas gratuitas em TV e rádio começarão no dia 23 de setembro. De acordo com a norma do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), entidades civis poderão se vincular às frentes parlamentares para representar as correntes favoráveis e contrárias à proibição do comércio de armas no país. Nesse embate, o aumento da sensação de insegurança nas grandes cidades deverá ser um dos principais argumentos utilizados por grupos e setores pró-armamento.

Estatísticas

Essa sensação de insegurança não existe à toa: estudo realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS) revela que o homicídio ocupa o primeiro lugar entre as causas de morte precoce no Brasil. Dados fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) mostram que as mortes por homicídio passaram de cerca de 14 mil, em 1980, para mais de 50 mil em 2003, sendo que o maior número de vítimas está na faixa etária de 15 a 24 anos.

O mesmo estudo, no entanto, destaca a contribuição das armas de fogo para o aumento dos índices de violência. Também de acordo com dados do SUS, sete em cada dez homicídios registrados nos hospitais do sistema em 2003 foram provocados por arma de fogo.

Diversos outros estudos e estatísticas reforçam o argumento da Campanha do Desarmamento de que a posse de arma por civis é perigosa, como o estudo "Brasil: as armas e as vítimas", feito pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser), com apoio do Viva Rio. Segundo a pesquisa do Iser, mais de 38 mil pessoas morreram por tiros em 2002 (incluindo homicídios, suicídios e acidentes). As armas de fogo são responsáveis por 64% dos homicídios no país. “A arma de fogo”, afirma o estudo, “não é a causa da violência, mas é o seu vetor mais perigoso”. Ilona alerta: “É uma epidemia. Não estamos em guerra, mas somos o país que mais mata por armas de fogo”.

A conclusão de que as armas de fogo no Brasil matam mais do que as guerras no mundo é de um levantamento feito pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e publicado no livro "Mortes matadas por armas de fogo no Brasil de 1979 a 2003”, lançado em junho. De acordo com a pesquisa, em 24 anos, o número de vítimas de armas de fogo cresceu 461,8%. Esse crescimento foi puxado pelos homicídios, que aumentaram 542,7%. No Brasil, as mortes provocadas pelas armas de fogo estão em terceiro lugar entre as causas de óbito em geral. Em primeiro lugar estão as doenças do coração. Em segundo, as cérebro-vasculares. Entre os jovens, as armas de fogo são a principal causa de mortalidade.

Recolhimento de armas

A Campanha Nacional do Desarmamento, iniciada pelo Ministério da Justiça em agosto de 2004, já recolheu mais de 390 mil armas em todo o país. Através da campanha, a população tem sido incentivada a entregar armas voluntariamente mediante o pagamento de indenizações de até R$ 300. O objetivo é reduzir o estoque de armas espalhadas pela sociedade, fora do controle legal. Assim espera-se reduzir as chances de tragédias inesperadas, que podem acontecer com qualquer pessoa que tiver uma arma por perto. A coordenadora da Campanha de Desarmamento do Viva Rio destaca que o desarmamento da população pode diminuir muito a incidência de homicídios em conflitos banais – briga de bar, de trânsito, entre vizinhos etc. – e também de acidentes com armas de fogo, cujas principais vítimas são as crianças.

Acredita-se também que tirar armas de circulação pode ajudar a desarmar os bandidos. O estudo do Iser aponta que um terço (33%) das armas do crime foi comprado legalmente e acabou caindo nas mãos erradas.

Prevista para ser encerrada em junho, a campanha foi prorrogada por mais quatro meses, até a data do referendo, 23 de outubro. Após a última data do recolhimento, serão punidos com prisão aqueles que tiverem arma sem registro.

Levantamento feito pelos Ministérios da Justiça e da Saúde mostra redução no número de internações hospitalares causadas por arma de fogo nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro após o início da campanha. De acordo com a pesquisa, o índice de redução de internações no Rio de Janeiro foi de 10,5% e, em São Paulo, de 7%.

Segurança e risco

“Campanhas de desarmamento feitas em outros países, como Inglaterra, Canadá e Austrália, semelhantes à do Brasil, fracassaram. Houve aumento dos índices de criminalidade, em vez de redução”. Bene se refere aos dados do estudo “A experiência mal-sucedida”, feito pela organização canadense Fraser Institute. Quanto aos diversos dados e pesquisas de instituições governamentais e não-governamentais que mostram a contribuição das armas de fogo para o aumento da violência no Brasil e no exterior, Bene pondera: “Não estou dizendo que esses dados estão errados, mas que é feita uma interpretação errônea deles”.

Ilona discorda do argumento de que o uso da arma de fogo pode servir para defesa pessoal. “Um dos argumentos utilizados pelos opositores do desarmamento é que ao entregar a sua arma o cidadão se torna escravo. Mas a verdade é que somos todos escravos da arma. Quem reage morre”, ressalta. Pesquisa realizada em São Paulo pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) conclui que as pessoas que portam armas de fogo têm 56% mais chances de serem assassinadas em uma situação de roubo, se comparadas com as vítimas sem armas.

Nesses casos, a posse de uma arma aumenta o risco, em vez de diminuí-lo. “Quando alguém usa uma arma de fogo para tentar se defender, a vítima é quase sempre quem tenta se defender. Isso ocorre pelo despreparo no uso da arma, pela falta de treino. Existe uma falsa de idéia de proteção em relação à arma. Ela oferece muito mais risco do que proteção”, defende Ilona.

Valéria Velasco, presidente do Comitê Nacional de Vítimas da Violência (Convive), ressalta que proteger e defender a população são obrigações do Estado, não do cidadão. “São atribuições dos órgãos de segurança pública, que precisam ser bem equipados e preparados para fazer face ao aumento da criminalidade. Está na Constituição brasileira, e para isso pagamos impostos. É isso o que temos de exigir. O brasileiro quer paz, não quer continuar perdendo seus filhos para a violência. E a paz é incompatível com as armas, que são feitas exclusivamente para matar”.

O presidente do Movimento Viva Brasil, por sua vez, cita outras medidas a serem tomadas pelo governo contra a violência. “Pouco tem sido feito em relação às armas ilegais e em prol da segurança pública pelo governo federal. Também é preciso combater a impunidade. Hoje, no Brasil, a cada cem homicídios, dois acabam em prisão. Além disso, o Estado deve investir em longo prazo em inclusão social e oferecer condições dignas para comunidades pobres”, enfatiza.

O combate à violência vai além do recolhimento e da proibição do comércio de armas, previstos no Estatuto do Desarmamento. Entretanto a sociedade civil quer mostrar que está buscando meios práticos de combater a violência. “Participando dessa campanha, também estamos contribuindo para reduzir os índices de homicídios. Nossa proposta é mobilizar a sociedade, todos os grupos sociais e organizações que defendem a vida”, afirma Ilona. A mobilização será nacional, por meio da Frente Parlamentar Brasil sem Armas. A frente é suprapartidária e terá a participação das ONGs e instituições que trabalham pelo desarmamento no país.

Mariana Montoro destaca o papel da Rede pelo Desarmamento, formado por comitês e organizações que difundem a campanha da entrega voluntária de armas em quase todos os estados. A partir de agosto, a Rede impulsionará a campanha pelo “sim” para o referendo.

Para Valéria Velasco, a vitória do “não” seria um retrocesso inaceitável. “Admitir o uso de arma de fogo em pleno século XXI é reconhecer que ainda estamos longe da civilização. Se a palavra, o bom-senso e o sentimento de solidariedade não conseguem se sobrepor à prática da violência, é sinal de que somos tão bárbaros como os antigos homens das cavernas, que resolviam seus conflitos a socos e pontapés”.

Por outro lado, a vitória do “sim”, para as organizações que militam pelo desarmamento, pode representar um passo concreto na busca da cultura de paz. “A vitória do ‘sim’ vai mostrar que a população acredita num outro país”, espera Mariana Montoro.

Mariana Loiola

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