Autor original: Italo Nogueira
Seção original:
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Durante uma entrevista interrompida algumas vezes por telefonemas e compromissos, Joênia Batista de Carvalho – ou, simplesmente, Joênia Wapichana, sobrenome que se refere ao povo do qual é originária – define seu trabalho no Conselho Indígena de Roraima (CIR) como uma grande correria, devido em parte pela falta de pessoas engajadas na causa. Indicada pelo Comitê do Movimento Mil Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz, Joênia já ganhou, no ano passado, o Prêmio Reebok de Direitos Humanos. Para ela, a importância desses prêmios é a divulgação das reivindicações dos povos indígenas, o que pode solucionar o problema de falta de pessoas envolvidas com a causa.
Em entrevista exclusiva à Rets, Joênia Wapichana fala sobre a indicação e o dia-a-dia de seu trabalho no CIR.
Rets - Qual a importância da sua indicação ao Nobel da Paz para as lutas indígenas?
Joênia Wapichana - O primeiro ponto é tornar visível a própria questão indígena no cenário mundial, em relação aos direitos humanos, sensibilizar um pouco o mundo para os índios.
Rets - A senhora acha que ainda não existe essa sensibilização?
Joênia Wapichana - Não, ainda falta muito para sensibilizar. Ainda existe muita discriminação quanto aos indígenas e aos direitos deles, principalmente em relação ao que já foi garantido pelas leis do país. Hoje nós vemos toda uma questão, no Brasil, de conflitos em relação às terras. Há uma demora muito grande na demarcação das terras indígenas, atos de violência, crianças morrendo de fome. Há terras indígenas já reconhecidas, mas não existem políticas públicas para o desenvolvimento de projetos nas comunidades, como é o caso de Mato Grosso.
Aqui em Roraima, a Raposa Serra do Sol demorou 30 anos para ser reconhecida. E ainda tem a questão de vários intrusos, várias terras indígenas degradadas. Ainda existe muito trabalho a ser feito, e isso é colocado em último plano na questão de políticas públicas.
A própria sociedade não-índia às vezes não conhece os índios, o que eles fazem. Ainda têm uma imagem preconceituosa de que índio é aquele que está com a peninha. Enfim, uma visão um pouco exótica do índígena, aquele que é selvagem, incapaz, que não pode falar por si. Lógico que existem grupos que têm menos contato do que outros, mas é essa realidade que precisa ser passada. Há muita discriminação, principalmente em relação aos índios que moram na cidade, que buscam emprego, educação.
Rets - A senhora já ganhou um prêmio anteriormente. Essa premiação mudou em alguma coisa a sua atuação? Aumentou a dificuldade?
Joênia Wapichana - Roraima tem algumas peculiaridades. Aqui é o lugar em que mais discriminam os indígenas. Nossa briga contra a discriminação racial é constante. Até mesmo conversando com os repórteres vêm perguntinhas como: “Você ainda é indígena? Porque você é advogada, mora na cidade, exerce uma profissão... então você não é mais indígena”. Então a gente tem que fazer, ainda, esse processo de educação, um trabalho diário. Se você tem um emprego, usa tênis, usa um relógio... para eles, não é mais índio. Esse processo de reconhecimento ajuda a dar mais visibilidade.
Esse processo [de nomeação] foi muito bom, porque quando a gente leva o nome indígena dá um peso, chama a atenção do Brasil para esse tipo de liderança, dá reconhecimento nacional.
Não somos tão reconhecidos assim aqui no Brasil. A gente pouco vê indígenas ganhando prêmios. Em 2002, o Conselho Indígena de Roraima ganhou o Prêmio Nacional de Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos, na categoria ONG. Mas é muito raro algo desse tipo.
Então, quando eu fui reconhecida, levei o nome dos indígenas. Naquela época era essencial divulgar as reivindicações indígenas, porque a gente estava no processo de reconhecimento da Raposa Serra do Sol. Fiz um discurso cobrando o governo Lula, foi uma oportunidade para divulgar nosso trabalho, nossa causa. Não foi só porque “ah, vai ter uma graninha”. O pessoal nem sabe, mas [o dinheiro do prêmio] foi doado para a própria organização indígena.
Rets - E hoje? Qual seria a maior reivindicação do CIR?
Joênia Wapichana - Apesar de a Raposa já ter sido homologada, ainda há muitos invasores. Os arrozeiros são os maiores causadores de problemas. Eles ingressaram de novo com uma ação para tentar continuar lá dentro. Enquanto não tirarem essas pessoas que causam violência lá dentro, vai sempre existir um clima de intranqüilidade. A principal reivindicação, hoje, é retirar os invasores das terras indígenas. Não só da Raposa Serra do Sol, mas também de áreas que estão com processo de homologação há mais de 20 anos e ainda têm invasores.
É preciso um mecanismo de fiscalização da União que seja de fato eficiente. É preciso tentar encontrar algum meio de defender as comunidades indígenas desse tipo de ameaça. A nossa maior preocupação é a violência.
Além disso, há também a necessidade de apoio para o desenvolvimento de projetos de auto-sustentação. Não basta dar terra para o indígena e deixá-lo largado, como no caso do Mato Grosso do Sul. Entregaram a terra depois de ter sido totalmente explorada pelas fábricas, que esgotaram todos os recursos do local. Como eles vão viver de um modo tradicional sem esses recursos naturais? É necessário um projeto para que aquela comunidade possa viver com dignidade.
Os indígenas não querem depender de ninguém. Muitas vezes falam que as terras indígenas trazem prejuízos. Não! A partir do desenvolvimento de projetos, pode-se comprovar que eles têm condições de contribuir para o desenvolvimento do estado. E isto está ligado à invasão também, porque se há um invasor você não vai conseguir fazer esses projetos.
Rets - A senhora tem contato com esses invasores?
Joênia Wapichana - Só em audiência. Eles morrem de raiva da gente. A gente tem até medo de chegar perto deles.
Rets - A senhora já sofreu alguma ameaça?
Joênia Wapichana - Já me perseguiram duas vezes na rua, mas sequer sei quem é. A gente anda "com um pé atrás", porque quem tem coragem de queimar uma comunidade inteira pode fazer qualquer coisa. Eles já seqüestraram até agentes da polícia federal. Já deixaram um jornalista e um fotógrafo franceses amarrados em um poste, só porque vieram fazer matéria sobre os índios.
Rets - Quais são as maiores dificuldades no trabalho diário no CIR?
Joênia Wapichana - Realmente é a correria. Estou falando contigo agora e daqui a pouco tenho de ir à Polícia Federal. São poucas pessoas para trabalhar pelos direitos indígenas. Falta engajar, capacitar, faltam instrumentos também. Nós sabemos que hoje temos uma Constituição muito bonita, que tem os direitos fundamentais. Foi um avanço histórico, em termos de lei, ao garantir, num capítulo exclusivo, os direitos dos indígenas. O Brasil inovou nisso, mas na prática os direitos são pouco vistos. Existe um tratamento muito político na hora de aplicar esses direitos. Você tenta convencer a Justiça de que eles são invioláveis, que existe toda uma Constituição, mas na hora outras questões acabam passando por cima. Existem interesses particulares que acabam se sobrepondo aos direitos indígenas.
Existe tudo isso no dia-a-dia no CIR. O nosso grande desafio é tentar fazer valer nossos direitos. E até mesmo conciliar com outras realidades hoje, porque nós temos a Constituição, mas, por outro lado, tem a lei 6001 [de 1973], que ainda precisa ser adaptada às novas regras constitucionais. É acompanhar toda essa problemática, não só no papel, mas viver isso também. Nosso desafio é mostrar isso tudo para as autoridades, para que façam algo, não fiquem só no discurso.
Rets - Essa dificuldade existe fora do Brasil também?
Joênia Wapichana - Com certeza. Hoje existem várias organizações indígenas trabalhando para duas declarações que estão sendo formuladas: a declaração interamericana, da OEA [Organização dos Estados Americanos], a Declaração dos Povos Indígenas, que já está bem avançada, e também o projeto de Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, na ONU. Existe uma briga muito grande com os Estados, principalmente em alguns países de primeiro mundo, porque eles têm um olhar muito capitalista, voltado para a exploração. Quem estiver naquela área que se dane. Alguns países ainda não têm legislação interna [que garanta os direitos indígenas]. Apesar de o Brasil ainda precisar colocar em prática seus direitos constitucionais, alguns direitos já estão bem avançados. Mas em outros países não há direito nem na Constituição.
São poucos, mas ainda assim é muito duro quando se fala em preservar os recursos naturais que estão em terras indígenas. Os EUA, por exemplo, são sempre contra.
Por isso é importante trabalhar na defesa do que nós temos e também começar a sensibilizar as autoridades agora. Temos, por exemplo, conflitos por água. Imagine aqui, onde as terras indígenas têm um imenso patrimônio ambiental, que os indígenas vêm conservando durante todo esse tempo, graças aos conhecimentos tradicionais. O Brasil já começou a fazer mobilizações em relação à água. A gente começa a trabalhar hoje, porque depois vão querer passar por cima dos indígenas, da mesma forma que aconteceu há 500 anos.
Rets - A questão indígena está ligada a muitas outras questões, como a ambiental, a econômica também...
Joênia Wapichana - Tem muitas relações. É uma questão social também, pois os indígenas são seres humanos, têm as mesmas necessidades. Precisamos tornar visível essa questão, mas não afastada dos direitos humanos. O próprio indígena tem direito a viver, direito à justiça, à liberdade, à educação, direitos econômicos, sociais, ambientais. É uma coisa bem maior do que só as questões ambientais.
Rets - O fato de ser mulher interfere de alguma forma no seu trabalho?
Joênia Wapichana - Talvez para as outras pessoas, mas não para mim. A mulher tem que participar cada vez mais. Nada pode impedir o exercício da sua profissão, inclusive nas comunidades indígenas. Nós temos organizações de mulheres indígenas, como, aqui em Roraima, a Omir [Organização das Mulheres Indígenas de Roraima], que tem tomado a frente em algumas posições. Aí está a grande diferença. Talvez as pessoas possam ter uma visão preconceituosa pelo fato de ser mulher, mas pesa mais o fato de ser mulher indígena, que na cidade é muito vista como aquela que só tem capacidade para ser empregada doméstica, que não entende nada do que se está falando.
Pesa muito, por exemplo, quando vou à delegacia e tento conversar com algum preso. Me ligam logo àquela pessoa que jamais poderia ser advogada, mas sim a uma outra parte ligada ao réu. A esposa, a irmã, ou alguma coisa ligada à pessoa que está sendo punida, e não a uma pessoa que está ali como profissional, exercendo sua profissão e que algumas vezes pode estar até se impondo frente a um agente policial.
Rets - Como começou o seu envolvimento com o CIR?
Joênia Wapichana - Quando eu era mais nova, conheci o CIR pedindo carona para ir para a comunidade indígena. Eu o conheci logo que nasceu, pois a maior parte dos integrantes era de parentes meus – wapichanas, lógico. Eu participava algumas vezes, mas mais naquele embalo de “aborrecente”. Em 96 eu comecei a fazer assessoria para o CIR – não era nem formada em Direito – e dava cursos para a Coiab, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, falando sobre a questão de direitos constitucionais. Comecei a trabalhar de fato como advogada no ano 2000. Já tinha um advogado aqui, mas antes eu sempre estava ajudando. Fui a primeira advogada indígena no país.
Rets - Como foi sua entrada na universidade?
Joênia Wapichana - Complicada. Entrei na Universidade Federal de Roraima em 96, minha família não tinha a menor condição de me sustentar. Ralei mesmo, porque aqui na cidade você tem que pagar coisas que normalmente não se paga numa comunidade indígena, como água, luz, roupa.
Muitos indígenas vinham para a cidade em busca de condições melhores. Meu pai andava muito também a procura de trabalho, e foi muito explorado. Os pais dele morreram muito cedo, e ele ficou nas fazendas, quase como trabalho escravo mesmo, para poder sustentar a família. Minha mãe, numa dessas viagens do meu pai, acabou ficando aqui na cidade na época de nossa idade escolar. Ela colocou a gente na escola. Como eu era mais nova, tive mais facilidade do que meus irmãos.
Ao acabar o segundo grau, não queria ser professora. Embora eu achasse uma boa profissão, eu queria mais. Acabei fazendo vestibular, mas sem o critério diferenciado. Mais por uma questão de desafio para mim. Consegui entrar na área de Direito, que era o que eu queria mesmo. O maior problema não foi entrar, mas me manter. Não tem ninguém na cidade para te apoiar, então tem que trabalhar. E arrumar emprego na cidade é difícil, não gostam de dar emprego para índio.
Hoje algumas fundações dão apoio, tem o ProUni [Programa Universidade para Todos] que também ajuda um pouco. Atualmente tem gente mais preocupada, trabalhando para dar o reconhecimento. A gente mesmo, fazendo nossa articulação com a universidade, mostrando que é difícil o indígena quebrar a barreira. Tem gente que não entende, acha que o índio tem que enfrentar o vestibular igual aos outros. Nós não estamos em pé de igualdade com outros, que têm tudo na mão. Quando era pequena, muitos iam para a cidade estudar, porque não existia escola indígena.
Hoje houve todo um processo de organização, articulação e mobilização por parte das organizações indígenas, que a questão do ensino fundamental já está mais fundamentada, já há escolas de nível médio. Nossa discussão em relação à educação é o nível superior, muito diferente da situação em outros estados, em que crianças estão fora da escola. Na historia de educação indígena, Roraima sempre esteve à frente, assim como em relação à saúde.
Pessoas que não conhecem os índios às vezes falam que os indígenas fazem muitas reuniões, se reúnem muito. Mas nessas reuniões são decididas muitas coisas. É ali que refletimos sobre nossos passos.
Rets - Que tipos de problemas práticos a senhora resolve diariamente no CIR?
Joênia Wapichana - Constantemente temos casos de violação de direitos humanos. A questão da Raposa Serra do Sol foi à qual fiquei mais tempo ligada. Eu diria que 90% dos casos são relacionados com esse território.
Embora seja advogada, também tenho minha assessoria política em relação às terras indígenas. A gente se envolveu em diversos casos. Tenho vários pelas comunidades indígenas, principalmente relacionados à Raposa Serra do Sol. Problemas como retirada de famílias, fogo em algumas comunidades. Faço assessoria para o CIR e para outras organizações indígenas.
Por exemplo, fui à Polícia Federal para falar sobre um balcão de direitos que a gente pretende realizar aqui no estado, em outubro, para que as pessoas tenham acesso à documentação civil básica. Durante esses anos todos tinha um clima de muita intranqüilidade por conta da disputa da terra. As lideranças estavam preocupadas com o processo da da Raposa Serra do Sol, e acabou ficando muito de lado a questão de cidadania, acesso à documentação. Hoje já se pensa diferente. E para esse mutirão é necessária a presença da Polícia Federal, da Justiça Federal, Defensoria Publica, do INSS [Instituto Nacional de Seguridade Social], do Tribunal Regional Eleitoral, do próprio Exército.
Também fazemos cursos relacionados à conscientização sobre direitos. Porque a partir da denúncia você diminui – ou aumenta – os casos.
Rets - Quais são os tipos de violação de direitos mais usuais?
Joênia Wapichana - São os relacionados à questão da terra. Há casos de queima de comunidade, destruição de roças, tentativas de homicídios.
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