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Condições perigosas

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Novidades do Terceiro Setor

No dia 12 de julho, o Banco Mundial (BM) aprovou um empréstimo ao Governo do Estado do Ceará, no valor de US$ 149,75 milhões. A operação chama-se “Projeto de Desenvolvimento APL Multi-Setorial do Ceará”. O empréstimo é de ajuste econômico, com várias etapas de desembolso. O BM só avança para a próxima etapa se o o governo cearense atingir as metas em diversas áreas de políticas públicas. Além disso, o projeto estabelece critérios e montantes de despesas a serem realizadas com dinheiro do orçamento público do Ceará. Se tais regras não forem seguidas, o banco não termina de desembolsar o empréstimo. Ou seja, pelo acordo, revela interferência e ingerência nos processos internos do governo cearense.

Essa é a lógica que vem regendo os empréstimos concedidos pelo Banco Mundial. E é justamente para torná-la mais clara e mais compreensível para o maior número de pessoas que a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais – que reúne 80 organizações da sociedade civil – lançou a Carteira de Projetos do Banco Mundial no Brasil.

As dificuldades de acesso a informações sobre os financiamentos do BM decorrem de diversos fatores. Primeiro, pela pouca transparência que sempre caracterizou o banco no que diz respeito a seus processos internos. Esse aspecto vem mudando ao longo dos últimos anos, em decorrência da pressão da sociedade civil mundial e de grupos de direita dos Estados Unidos que defendiam que o Banco Mundial não mereceria mais o apoio do governo norte-americano. Hoje, há progressos quando o assunto é publicidade e transparência nos procedimentos.

No entanto obstáculos ainda existem quanto ao idioma - algumas informações só são encontradas em inglês -, ao "local" onde as informações estão disponíveis - a fonte principal é a internet, ainda uma tecnologia usada por uma minoria - e aos jargões utilizados, com códigos internos e técnicos de difícil compreensão. Assim, a intenção da Carteira de Projetos é, como se explica na introdução do documento [disponível ao lado para download], "ser uma fonte de informações sobre destino, objetivo e valor dos financiamentos do banco", não uma análise de suas políticas ou desses projetos". E, nesse esforço, um perfil dos objetivos pode ser identificado.

Segundo Carlos Tautz, pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), uma das oito organizações da coordenação da Rede Brasil, os financiamentos do Banco Mundial têm duas características fortes: a primeira é que qualquer desembolso para governos (municipais, estaduais ou federal) vem acompanhado de exigências que afetam a soberania do tomador do empréstimo. "Na prática, é como se o banco dissesse assim: 'Empresto, se você abrir as portas da administração pública para que eu defina os critérios de gestão'. E isso é um absurdo", diz. Para Tautz, isso acontece porque os organismos financeiros multilaterais se transformaram em meio de exercício da hegemonia dos países com poder maior dentro desses organismos. "No caso, os EUA", esclarece.

A segunda característica, para Tautz, é que os desembolsos do Banco Mundial nunca são para resolver problemas estruturais. "Sempre são para projetos pontuais, para situações isoladas de contexto, promovendo um modelo de desenvolvimento desconectado das necessidades da população que vai ser afetada ou envolvida, e normalmente têm uma lógica não-ecológica. Por serem assim, reforçam a concentração de renda e a exclusão social", acredita.

Fabrina Furtado, da Secretaria Executiva da Rede Brasil, lembra que, segundo o próprio BM, seus programas são elaborados para atingir algumas prioridades estabelecidas: Advocacy Corporativa, Bens Públicos Globais e Metas de Desenvolvimento do Milênio. "Na prática, no entanto, o que acontece com a maioria dos projetos financiados pelo Banco Mundial é que, através das condicionalidades, o objetivo-fim é a privatização, a liberalização comercial e financeira e a diminuição do papel do Estado, entre outras", opina Fabrina.

Áreas prioritárias

Analisando o número de projetos financiados em cada área, pode-se ter uma idéia dos principais assuntos de interesse do Banco. Dentro da lista de separação oficial do Banco [a lista completa de áreas e o número de projetos em cada uma estão no box ao lado], o setor que mais recebe financiamento, tanto por número de projetos quanto volume de recursos, é o de educação, saúde e proteção social. No entanto, separando essas três áreas, percebe-se que o maior número projetos em andamento está no setor de Combate à Pobreza Rural. Em termos de volume, o setor de infra-estrutura e o que está no topo.

Sobre isso, Tautz lembra que "não existe uma preferência manifesta, mas boa parte dos projetos financiados tem potenciais impactos sociais e/ou ambientais, positivos ou negativos. Porém os benefícios para as populações atingidas são muito questionáveis; os resultados são controversos. É regra geral haver impacto nos gastos sociais", enfatiza.

Fabrina lembra que o alto volume de recursos para o setor de infra-estrutura é reflexo de um movimento realizado por várias instituições financeiras multilaterais (IFMs) que estão reforçando o apoio a esse tipo de projeto. "Em relação ao Brasil, esta recalibragem dos programas das IFMs coincide com a ênfase que o governo Lula passou a dar - por meio de várias formas de indução econômica, inclusive créditos do BNDES e legislação sobre Parcerias Público-Privadas (PPPs) - a projetos de investimento em infra-estrutura, em áreas como transporte e energia, que têm grande impacto social e ambiental". Ou seja, a "preferência" do banco já se reflete no país.

Em 2001, o Banco já deixava claro, em um de seus documentos oficiais sobre as perspectivas de investimentos no Brasil, que, no tocante a projetos que envolvessem recursos hídricos, veria como prioridade aqueles que envolvessem grandes obras. "O banco avisou que só financiaria projetos que lidassem com recursos hídricos se fossem de reorganização institucional da ANA (um absurdo, pois isso quem tem que resolver é a ANA e o governo federal); de transposição das águas do Rio São Francisco (obra extremamente polêmica, que recebe críticas das populações e de entidades dos nove estados do Nordeste) e a retomada da hidrovia Paraná-Paraguai, obra que já havia sido suspensa em duas ocasiões anteriores", relembra e explica Tautz.

"Parece que estamos testemunhando uma volta ao 'desenvolvimentismo' por parte das IFMs, mas também no governo, onde o caminho para o desenvolvimento é através dos grande projetos, sem consideração pelos impactos socioambientais e sem enfrentar o problema das desigualdades", revolta-se Fabrina.

A Rede Brasil já está preparando um estudo sobre os projetos financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. O próximo na lista é o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Maria Eduarda Mattar

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