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Com mordaça

Autor original: Italo Nogueira

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Com mordaça


No dia 3 de agosto, o grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro foi condenado a pagar R$ 32 mil a quatro policiais federais a título de indenização por danos morais causados por denúncias veiculadas no site da ONG. O ano era 1996 e os policias eram acusados de espancar o ex-marinheiro da Petrobrás Carlos Abel Dutra Vaz. O delegado de polícia Federal Roberto Jaureguiber Prel Junior e os agentes federais Luiz Oswaldo Vargas de Aguiar, Luiz Amado Machado e Anísio Pereira dos Santos eram os acusados.

Reagindo ao caso, a ONG publicou na época nota em seu site, em que pedia o afastamento dos então acusados de seus cargos. "Ou seja, policiais que deveriam estar afastados de suas funções públicas, respondendo por suas ações de desrespeito aos direitos humanos, não só continuam impunes e em seus cargos, mas - o mais grave - sendo premiados e assumindo responsabilidades de promover a segurança dos cidadãos e das instituições de nosso estado. Diante desses fatos, o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, indignado, exige o afastamento do delegado da Polícia Federal Roberto Jaureguiber Prel Junior de quaisquer tarefas que dizem respeito diretamente à segurança da população. Sua permanência em tais funções só serve para alimentar e adubar a impunidade e as violações dos direitos humanos que, cotidianamente, continuam sendo cometidas, principalmente, pelos agentes do Estado", dizia o texto.

A Rets tentou entrar em contato com o Tortura Nunca Mais/RJ para uma entrevista sobre o assunto. Porém, por causa da decisão judicial, a ONG está impedida de falar publicamente sobre o caso e de citar os nomes dos policias envolvidos.

A sentença - assinada pela juíza Maria Helena Pinto Machado Martins, da 42ª Vara Cível do Rio de Janeiro, no processo 2002.001.078946-0 - abre um precedente e pode representar uma ameaça para todas as entidades que lutam pelos direitos humanos e denunciam atos de maus tratos e torturas cometidos por autoridades policiais.

A decisão diz que houve "um claro juízo de valor negativo sobre o comportamento dos autores. Dessa forma, houve violação à honra objetiva dos autores". Segundo a sentença, a ONG somente se eximiria se os policiais tivessem sido condenados à época. "Em nenhum momento ficou provado que os autores praticaram tortura ou qualquer outro crime. Portanto, a conclusão que se evidencia é que o texto publicado na internet não foi preciso e fez crer aos leitores que os autores eram comprovadamente torturadores. Como corolário da fundamentação apresentada tem-se que a parte ré, como organização não governamental de grande notoriedade, extrapolou os limites do seu direito de expressão, desrespeitando direito dos autores acerca de sua reputação social", diz o texto.

Leia a íntegra abaixo:

ESTADO DO RIO DE JANEIRO
PODER JUDICIÁRIO, COMARCA DA CAPITAL.

42ª VARA CÍVEL

S E N T E N Ç A Processo n º. 2002.001.078946-0

Trata-se de ação de conhecimento que segue o rito comum ordinário Promovida por ROBERTO JAUREGUIBER PREL JUNIOR E OUTROS em face de ORGANIZAÇÃO NÃO GOVERNAMENTAL TORTURA NUNCA MAIS; alegam, em apertada síntese, que são policiais federais e que foram ofendidos por máculas de natureza moral através de acusações falsas proferidas pela ré em seu site. Salientam que foram acusados da prática de violência contra o Sr. Carlos Abel, mas que a respectiva ação penal foi trancada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Relatam, ainda, que em razão dessa imputação, a ré acusou os autores pelo crime de tortura. Esses, por sua vez, ajuizaram ação em face da ré requerendo indenização por danos morais e obtiveram êxito. Aduzem que a parte ré insiste em tecer acusações Indevidas, no seu site, contra os réus mesmo sabendo que o Poder Judiciário já se manifestou no sentido da inocência dos autores. Afirmam existir acusações infundadas contra a honra e imagem, ensejadoras de danos morais perante o meio social e profissional dos autores. Invocam aplicação de texto Constitucional pertinente a danos morais. Requerem, ao final, tutela antecipada para determinar que o réu se abstenha de divulgar em seu site ou em qualquer outro meio de comunicação acusações contra os autores, bem como condenação da requerida ao pagamento de verba indenizatória a titulo de danos morais. Documentos de fls. 13/112 acompanham a inicial.

A decisão de fls. 114/115 deferiu a tutela antecipada e fixou multa em caso de desobediência.

Citada, a parte ré se manifestou às fls. 126/140, oportunidade na qual afirma em preliminar a inépcia da inicial, alegando a impropriedade do rito e ausência de pedido certo e determinado. No mérito não nega a existência do texto em seu site. Diz que apenas relatou os fatos reais, inclusive a decisão judicial que determinou com que fosse trancada a ação penal, e que em nenhum momento acusou os autores de qualquer ato. Assevera que agiu no exercício de suas garantias constitucionais e que alegações verdadeiras não podem ensejar danos morais. Requer acolhimento de preliminar e transposta esta a improcedência do pedido e junta documentos.

Réplica às fls. 255/260 e 562/572. Determinada especificação de provas as partes se manifestaram e realizou-se audiência de conciliação na forma da assentada de fls. 289/290; sendo esta infrutífera. Decisão de fls. 292 rejeitou a preliminar de inépcia da inicial; deferiu confecção de prova documental suplementar e oral; e designou audiência de instrução e julgamento. Alegações finais dos autores à fls. 552/558.

É O RELATÓRIO. DECIDO.

De forma inicial deve ser apreciado o pedido de admissão no pólo passivo dos sucessores do policial Carlos Alberto Emiliano da Silva, formulado a fls. 256. Esta pretensão não deve prosperar. Isto porque inicialmente Carlos Alberto não figurou como parte ao ser promovida a demanda e, permitir-se o ingresso de sucessores deste no pólo ativo, durante a tramitação do feito e, ainda, não sendo caso de litisconsórcio necessário, seria o mesmo que escolher o Juízo. Observa-se que essa prática é vedada por nosso ordenamento jurídico. Tal decisão é orientada, ainda, pelo que dispõe o princípio da estabilidade da lide positivado no artigo 264 do Código de Processo Civil.

Não há preliminares a serem enfrentadas haja vista que a decisão que saneou o processo já afastou as argüidas. Presentes, portanto, as condições da ação e os pressupostos processuais, passa-se à análise de mérito.

Compulsando os autos, narrativas perpetradas e provas coligidas tem-se que pretendem os autores obter reparação de danos haja vista alegação de que experimentou tal espécie de mácula em virtude de texto publicado no site da ré. A matéria ora em estudo há de ser analisada à luz de ditames Constitucionais, valendo destacar que esta se encontra no cerne de todo ordenamento jurídico Pátrio. O texto da Constituição da República em seu art. 5o, IX é garantidor das atividades de natureza intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de qualquer prévia licença ou censura. A interpretação deste dispositivo legal há de ser conjugada com o teor do art. 220 e seus parágrafos, também da Carta Magna; vez que estes dispõem que não pode haver edição de lei que cause transtornos ou embaraços a liberdade jornalística de informação, em qualquer veículo de comunicação. Portanto, não há menor dúvida de que a Constituição da República acolheu a total liberdade dos meios de comunicação. Contudo, os dispositivos acima invocados não podem sofrer interpretação isolada; posto que como regra de hermenêutica deve haver seu confronto com todo texto da Carta Magna de 1988. O art. 5 º , X da Carta Maior assegura que: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Após a edição da Carta Maior de 1988 o respeito à imagem, preceito antigo, foi entronizada ao patamar do Texto Constitucional, com maior largueza e abrangência. Portanto, deve este Juízo observar se o texto publicado no site da parte ré e cuja cópia se encontra às fls. 17/21 acabou por ensejar as maculas indicadas na inicial. Um trecho do texto publicado pela ré relata o seguinte: ¨...Enquanto isso, o delegado Roberto Jaureguiber Prel Junior - um dos que comandavam as torturas contra Carlos Abel - que era titular da delegacia de Repressão a Entorpecentes e Tóxicos da Polícia Federal do RJ, com as denúncias que se tornaram públicas, foi afastado temporariamente. Porém, em abril de 2001, o atual Superintendente da Polícia Federal/RJ, delegado Marcelo Nogueira Itagiba, seguindo informações publicadas em O GLOBO de 17/05, designou o mesmo delegado Roberto Jaureguiber Prel Junior para acompanhar as investigações do atentado sofrido pela Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, em 13/05/02, e para compor, como representante da Polícia Federal do Rio de Janeiro, uma 'Força Tarefa' que se pretende criar, em convênio com os governos do estado e o federal, para 'combater a violência no estado'. Ou seja, policiais que deveriam estar afastados de suas funções públicas, respondendo por suas ações de desrespeito aos direitos humanos, não só continuam impunes e em seus cargos, mas - o mais grave- sendo premiados e assumindo responsabilidades de promover a segurança dos cidadãos e das instituições de nosso estado. Diante desses fatos, o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, indignado, exige o afastamento do delegado da Polícia Federal Roberto Jaureguiber Prel Junior de quaisquer tarefas que dizem respeito diretamente à segurança da população. Sua permanência em tais funções só serve para alimentar e adubar a impunidade e as violações dos direitos humanos que, cotidianamente, continuam sendo cometidas, principalmente, pelos agentes do Estado.¨ (grifos nossos) Denota-se, do trecho supra, transcrito da exordial, um claro juízo de valor negativo sobre o comportamento dos autores. Dessa forma, houve violação à honra objetiva dos autores. Vislumbra-se de todas as provas que nos autos constam que a parte ré, a todo o momento, reitera o que escreveu em seu site mesmo com todos os documentos que instruem os autos no sentido contrário ao sustentado pela ré. A demandada somente se eximiria caso comprovasse as suas alegações, o que não foi realizado. Ao contrário, os autores já figuraram como réus em vários processos sem existir condenação em qualquer deles. Em nenhum momento ficou provado que os autores praticaram tortura ou qualquer outro crime. Portanto, a conclusão que se evidencia é que o texto publicado na internet não foi preciso e fez crer aos leitores que os autores eram comprovadamente torturadores. Como corolário da fundamentação apresentada tem-se que a parte ré, como organização não governamental de grande notoriedade, extrapolou os limites do seu direito de expressão, desrespeitando direito dos autores acerca de sua reputação social. Conforme já versado acima é evidente que o referido texto não se limitou a ensejar apenas aborrecimentos. Enfrentaram os autores deveras ofensas e máculas de cunho moral, haja vista o teor do texto e alcance do mesmo no corpo social eis que a ré, como ela mesma salienta, é referência no cenário nacional. Tem-se que o direito à integridade moral é direito fundamental, qualificado pela Constituição da República, que integra a pessoa humana, como bem assevera a melhor doutrina: “A vida humana não é apenas um conjunto de elementos materiais. Integram-na, outrossim, valores imateriais, como os morais. A Constituição empresta muita importância à moral como valor étnico-social da pessoa e da família, que se impõe ao respeito dos meios de comunicação social (art.221, IV). Ela, mais que as outras, realçou o valor da moral individual, tornando-a mesmo um bem indenizável (art.5º, V e X). A moral individual sintetiza a honra da pessoa, o bom nome, a boa fama, a reputação que integram a vida humana como dimensão imaterial. Ela e seus componentes são atributos sem os quais a pessoa fica reduzida a uma condição animal de pequena significação. Daí por que o respeito à integridade moral do indivíduo assume feição de direito fundamental.” (José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editores, 24ª edição, 2005). Assim sendo, neste momento deve ser apreciado o valor da compensação pecuniária a ser adotada. Conforme é de curial sabença inexiste normatização relativa a fixação de montante de indenização em sede de danos morais, devendo haver estipulação dos mesmos diante do caso fático e com lastro na equidade do Juízo. Os danos morais devem possuir natureza dúplice, possuindo feição punitiva para o réu e compensatória para o autor, sendo que o montante não pode afrontar o princípio que veda o enriquecimento sem causa. No caso em tela devem os danos morais ser fixados no valor de R$ 8.000,00 (oito mil reais) para cada autor, num total de R$ 32.000,00 (trinta e dois mil reais). Por fim, dá-se a impossibilidade de imposição da multa diária de fls. 114/115 visto a ausência de prova nos autos que constate a desobediência a decisão que deferiu a tutela antecipada. Isso posto, diante da fundamentação acima e por tudo mais que nos autos consta JULGO PROCEDENTE

O PEDIDO e, via de conseqüência, determino a extinção do processo com análise de mérito nos termos do artigo 269, I, do Código de Processo Civil. Condeno a parte ré ao pagamento de danos morais no valor de R$ 8.000,00 (oito mil reais) para cada autor, num total de R$ 32.000,00 (trinta e dois mil reais), acrescidos de juros de 1.0% desde a citação e correção monetária à partir desta data. Condeno a ré no pagamento de custas proporcionais e honorários de advogado que fixo em 10 % sobre o valor da condenação. P.R.I.

Rio de Janeiro, 03 de agosto de 2005.


MARIA HELENA PINTO MACHADO MARTINS
Juíza de Direito







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