Autor original: Mariana Loiola
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() | ![]() |
Aproximadamente 70% dos casos que chegam aos Juizados Especiais Criminais envolvem situações de violência doméstica contra as mulheres. Desses, cerca de 90% terminam em arquivamento nas audiências de conciliação, sem que as mulheres encontrem uma resposta efetiva do poder público à violência sofrida. Diante da ausência de uma legislação específica que trate desses tipos de casos, uma articulação de organizações feministas decidiu, em 2002, elaborar um anteprojeto de lei que tivesse uma maior preocupação com as vítimas, incluindo na lei medidas de prevenção e proteção. Encaminhada no ano passado pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM), a proposta está atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados e pode ser aprovada em novembro.
Neste processo de debates, o consórcio de organizações não-governamentais e operadoras do direito feministas criado para elaborar o anteprojeto quer agora garantir a rejeição à Lei 9.099/95 – que instituiu os Juizados Especiais Criminais – no que se refere à violência doméstica contra as mulheres. Aprovada como está, a proposta não contribuirá para oferecer atendimento adequado a mulheres vítimas de violência, acreditam as ONGs.
O anteprojeto elaborado pelas ONGs foi modificado pelo grupo de trabalho interministerial criado em 2004 pela SPM para “elaborar proposta de medida legislativa e outros instrumentos para coibir a violência doméstica contra a mulher”. A atual versão do Projeto de Lei nº 4.559/04, que está sendo agora examinado pela Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara, sob relatoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), difere da proposta original, por manter a competência dos Juizados Especiais Criminais para o julgamento desses crimes.
“Embora tenha incorporado toda a parte conceitual da proposta das ONGs, o projeto do governo (PL 4.559/04) manteve a competência da lei 9.099/95. Esse é um divisor de águas importante para o movimento de mulheres, especialmente para as ONGs envolvidas no processo de elaboração de uma legislação compatível com a Convenção de Belém do Pará”, ressalta Leila Linhares Barsted, diretora da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia).
Por esse motivo, o consórcio, a Articulação Brasileira de Mulheres e a Procuradoria Federal de Defesa do Cidadão emitiram um parecer para a ministra Nilcéia Freire, no qual são sugeridas alterações ao projeto. Em conjunto com a relatora, o consórcio elaborou uma proposta de substitutivo ao PL nº 4.559, que foi apresentado à SPM e recebeu total apoio.
Legislação específica
O PL define violência doméstica contra a mulher com base na Convenção de Belém do Pará, incluindo os diversos tipos (física, psicológica, sexual, moral e patrimonial). Engloba medidas integradas de prevenção e proteção às vítimas, criação de serviços públicos de atendimento multidisciplinar, capacitação de profissionais do Judiciário e da polícia civil para atendimento a mulheres em situação de violência, assistência jurídica gratuita para as vítimas e a inclusão de conteúdos de eqüidade de gênero nos currículos escolares.
Para elaborar o anteprojeto, as ONGs se basearam em leis de diversos países da América Latina e convenções de direitos humanos, especialmente a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – a Convenção de Belém do Pará.
Ao contrário de 17 países da América Latina, o Brasil ainda não dispõe de legislação específica a respeito da violência contra a mulher. A omissão do Estado brasileiro vai de encontro às convenções, que afirmam que esta violência constitui grave violação aos direitos humanos, configurando manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens.
Com a aplicação da Lei 9.099/95 para os casos de violência contra a mulher no Brasil, este tipo de crime permanece considerado juridicamente infração penal de menor potencial ofensivo, e não grave violação a direitos humanos. “Essa legislação, ao propor como medida preliminar a conciliação entre as partes, não considera as relações de poder que estão presentes no espaço doméstico e familiar em detrimento das mulheres”, critica Leila Linhares Barsted.
“Nesses juizados, os casos de violência doméstica se misturam a brigas de vizinho, de trânsito etc. e têm o mesmo procedimento, com a aplicação de penas restritivas de direito de prestação pecuniária, como multa, acordo e cesta-básica. Isso acaba banalizando a violência doméstica e as mulheres se sentem desprotegidas”, explica Ana Paula Gonçalves, advogada e ouvidora da SPM.
As ONGs que acompanham casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres também constatam que, nos juizados especiais, a impunidade favorece os agressores. “No juizado especial, só o réu tem direito a advogado e a vítima é pressionada a fazer acordo. Acontece que esse problema não se resolve com acordo - quem bate vai continuar batendo. O governo não protege essas mulheres”, diz Elizabeth Garcez, da ONG Ações em Gênero Cidadania e Desenvolvimento (Agende).
O caráter de repetição da violência doméstica pode ser confirmado em pesquisa realizada em março pelo DataSenado. O levantamento constatou que a grande maioria das mulheres agredidas - 71% - foi vítima da violência mais de uma vez, sendo que 50% foram vítimas por quatro vezes ou mais.
Pelo substitutivo do Projeto de Lei 4.559, os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher serão julgados em varas especializadas, a exemplo das varas da infância e juventude. Além disso, será proibida a aplicação de penas restritivas de direito de prestação pecuniária para os casos de violência doméstica, e serão adotadas medidas protetivas de caráter emergencial, como o afastamento do agressor do lar.
Reabilitação
Além da retirada dos casos de violência doméstica dos juizados especiais criminais, a AMB reivindica a retirada do ponto do projeto sobre programa de reeducação e reabilitação do agressor. “A AMB não concorda com esse tratamento dado aos agressores como se fossem 'doentes'. Se não tem políticas públicas para as vítimas (o número de abrigos é mínimo), como é que vai ter centro de reabilitação para os agressores? A gente tem que pensar em garantir os recursos para implementar essa lei e evitar que haja uma tendência de que eles sejam alocados mais para os agressores”, enfatiza Analba Brazão, coordenadora do Coletivo Leila Diniz e secretária-executiva da Articulação Brasileira de Mulheres (AMB).
“O comportamento dos agressores não pode ser chamado de doença. Faz parte de uma cultura patriarcal que coloca homem como dono da mulher”, diz. Prova disso, cita Analba, são os diversos estudos que mostram que, nos casos de homicídios em decorrência de violência doméstica, a grande maioria das vítimas queria se separar. “Ainda permanece a cultura da legítima defesa da honra”.
Para reforçar a sua visão, Analba pretende levar para o seminário do dia 16 o caso recente de Shirlene Cavalcanti, brutalmente espancada por seu marido, José Adecio da Silva, pelo simples fato de ter cortado o cabelo e feito luzes sem a sua autorização. O fato ocorreu no dia 3 de julho deste ano, no município de Luis Gomes, no Rio Grande do Norte. Shirlene faleceu no último dia 26, após ter feito três cirurgias e ficado 23 dias em coma. José está foragido. O caso está sendo acompanhado pelo Coletivo Leila Diniz. “Esse caso demonstra que a violência acontece pelo fato de o homem se sentir dono da mulher”, diz Analba.
Quanto ao ponto referente ao programa de recuperação do agressor, Jandira Feghali discorda da posição da AMB e defende a criação de centros de reabilitação. “Não estamos tratando ninguém como doente. Não é questão de saúde, e sim de comportamento e mudança de valores. Vemos que experiências de reabilitação em estados como Rio Grande do Sul e Bahia têm sido bem sucedidas e têm ajudado na não reincidência da agressão. É uma visão atrasada não enxergar isso”, reforça Jandira.
Seminário
Durante o seminário “Violência contra a mulher – um ponto final”, que ocorrerá no dia 16 de agosto na Câmara dos Deputados, a relatoria do projeto apresentará o texto do substitutivo final. No evento, também deverão ser divulgadas as conclusões das audiências públicas que têm sido realizadas em diversos estados, por iniciativa da deputada Jandira Feghali, para reunir as propostas em torno do PL. Espera-se que as discussões promovidas e as conclusões das audiências públicas subsidiem a relatoria do projeto para que se atinja um consenso entre o Executivo e o movimento de mulheres.
“Para as ONGs que atuaram na elaboração do projeto, o seminário do dia 16 será uma importante oportunidade de sensibilizar os parlamentares para a importância de uma legislação desse tipo e com esse conteúdo. É, também, uma oportunidade de divulgar o projeto para a imprensa e para a sociedade em geral”, acredita Leila Linhares Barsted.
De acordo com pesquisa encomendada pelo Instituto Patrícia Galvão ao Ibope Opinião, realizada em setembro de 2004, o tema da violência doméstica já é considerado prioridade inclusive pela população brasileira. O levantamento mostra que 30% da população reconhecem que a violência contra a mulher, tanto dentro como fora de casa, é o problema mais preocupante no Brasil atualmente.
A expectativa da deputada Jandira Feghali é de sensibilizar os parlamentares para a rápida tramitação e votação em plenário desse substitutivo: “Temos algumas limitações para adiantar esse processo, como a votação de medidas provisórias e a crise política. Mas não podemos deixar que a crise impeça a votação de matérias importantes como essa. Vamos acertar com os líderes nos partidos uma votação de urgência em plenário. Espero que no próximo dia 24 o PL já seja votado na comissão”. Jandira quer que a lei seja sancionada no dia 25 de novembro, Dia Mundial de Combate à Violência contra a Mulher.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer