Autor original: Fausto Rêgo
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Desde julho de 2002, o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) do Ceará e a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no estado denunciam a ação de grupos de extermínio no município de Fortaleza. Seriam policiais militares agindo a mando do empresário Francisco Deusmar Queirós, dono da rede de farmácias Pague Menos, que estaria, dessa forma, tentando impedir os freqüentes assaltos.
Ele nega as acusações. Segundo seu advogado, Neuzemar Gomes de Moraes, o empresário jamais quis contratar segurança armada e teria apenas contratado uma associação de policiais da reserva para fazer uma segurança velada, não armada. Segundo o advogado, o que existe contra seu cliente seriam suposições. "Não há nenhuma prova do envolvimento do empresário nos ditos fatos criminosos", afirma.
O Ministério Público iniciou as investigações do caso. Trinta pessoas já teriam sido mortas pela quadrilha, que também tortura suas vítimas. O Cedeca acompanha de perto e pede que as investigações cheguem aos mandantes dos crimes. É o que afirma nesta entrevista exclusiva a assessora jurídica da entidade, Patricia Campos, que revela preocupação com a recente decisão da judicial de soltar os principais acusados. "Inobstante as testemunhas já terem sido ouvidas, outras testemunhas e vítimas, de outros episódios, ainda não o foram, e passam agora a correr um sério risco do que convencionalmente se chama de 'queima de arquivo'. E mais: como as investigações ainda não foram concluídas, mesmo porque tem-se uma multiplicidade de crimes e criminosos, arrisca-se também a destruição ou adulteraçao de documentos, armas e outros objetos que possam ser importantes para a elucidaçao dos fatos".
Rets - Recentemente o Cedeca Ceará denunciou a existência de um grupo de extermínio em Fortaleza. Poderia explicar um pouco mais sobre o caso e sobre seus envolvidos?
Patricia Campos - Em julho de 2002, uma articulação que reuniu o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará e a Ordem dos Advogados do Brasil, através das Comissões da Criança e do Adolescente e de Direitos Humanos, a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Ceará e o Escritório de Direitos Humanos Frei Tito de Alencar, ofereceu representação ao Ministério Público Federal no Estado do Ceará, solicitando investigações sobre a contratação de segurança privada clandestina por importante rede de farmácias do estado, em afronta à legislação federal, além da contratação de policiais militares para a realização do referido esquema, a tortura de adolescente por policiais militares e o uso deste esquema de segurança para extermínio de adolescentes e adultos, configurando crime hediondo.
O grupo comercial, Empreendimentos Pague Menos, possui uma extensa rede de lojas, presente na maioria dos bairros da cidade de Fortaleza, além de outros municípios do interior do Ceará e de outros estados, oferecendo serviços de correspondente bancário, além de inúmeros produtos de perfumaria, higiene e alimentação, afora os itens farmacológicos que seriam comuns a uma farmácia. Possivelmente estes fatos – numerosa lista de produtos e intensa movimentação financeira – catalisaram um grande número de roubos e furtos ali tentados e consumados entre os anos de 1999 a 2002.
Chamaram a atenção dessas entidades, à época, os desfechos violentos nessas ocasiões e as semelhanças entre os casos. Foram catalogadas pelo menos 11 mortes e um caso de tortura que resultou na amputação total da perna de um adolescente, entre 2000 a 2002.
Segundo era narrado pela empresa e veiculado nos meios de comunicação, essas tentativas de roubo e furto eram frustradas por clientes ou transeuntes armados que se encontravam no interior das lojas, passando pela calçada ou ainda em motos, que intervinham atirando contra os infratores, desaparecendo em seguida, sem que fosse possível sua identificação.
Após o recebimento da denúncia, o Ministério Público Federal, além de envolver três setores de seus quadros, convocou vários órgãos da segurança pública, ministério público estadual e entidades da sociedade civil para compor uma força-tarefa para acompanhar o caso. A Polícia Federal, por sua vez, instaurou um inquérito para investigar os crimes, que tramitou de forma sigilosa, realizando escutas telefônicas autorizadas por um juiz federal.
No final de 2004, a Polícia Federal solicitou prisões provisórias e autorização para busca e apreensão, a fim de dar continuidade às investigações. A Justiça Federal julgou-se incompetente, já que tratava-se de homicídios qualificados, remetendo o inquérito, 12 volumes de investigações, em janeiro de 2005, para o Judiciário Estadual.
O resultado da intervenção policial chegou à justiça e ao público após pedido de informações constante em relatório do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, órgão colegiado ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, pois o mesmo assunto constava do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, que apurou denúncias de existência de milícias privadas e grupos de extermínio no Nordeste.
Após a divulgação do relatório, que também aconselhava o afastamento dos policiais acusados, a imprensa teve acesso ao conteúdo das interceptações telefônicas realizadas pela Polícia Federal, que, juntamente com outros meios de prova, comprova as suspeitas de utilização de servidores públicos e da estrutura policial (pessoal, equipamentos e conhecimentos) para realização de segurança privada, prática de extermínio e tortura e despejos extrajudiciais, com financiamento de grupos econômicos, notadamente da própria rede de farmácias, chegando a polícia ao número de pelo menos 30 vítimas. As operações seriam coordenadas por um oficial PM a partir da companhia militar que dirigia, utilizando-se de PMs em horário de folga que faziam o chamado "bico", com ordem de exterminar possíveis assaltantes nas farmácias.
É importante destacar que, ao final de 2002, ano da denúncia, o mesmo grupo econômico foi acionado judicialmente pelo Ministério Público do Trabalho, tendo em vista a demanda dos funcionários do empreendimento por segurança armada, em vista dos constantes atentados sofridos nas lojas, que resultavam em episódios de violência, inclusive com a utilização de armas de fogo e vítimas entre assaltantes, clientes e trabalhadores. A rede, então, passou a utilizar-se dos serviços de uma empresa de vigilância armada legalmente constituída.
Atualmente, o caso está aos cuidados do Ministério Público Estadual e da Justiça, mais precisamente na 2ª e 4ª Varas do Júri de Fortaleza, onde está sendo apurada a morte de quatro pessoas, provavelmente provocada pelo grupo de extermínio.
Rets - Quão comum é a ação de grupos de extermínio no estado?
Patricia Campos - Este caso foi denunciado em julho de 2002 e, pelo que se pôde ter acesso, pois a investigação transcorreu em sigilo e só o Ministério Público e a Corregedoria têm acesso a íntegra do inquérito, a Polícia Federal acredita ter chegado a 30 assassinatos entre os anos de 2000 a 2004.
Contudo outras investigações continuam a ser feitas pelas Polícias Civil e Militar (há um inquérito penal militar em andamento), pela Corregedoria dos Órgãos de Segurança Pública (que apura as infrações disciplinares dos agentes de segurança), pela Polícia Federal (que continua apurando os crimes de natureza federal e o vazamento de informações sigilosas) e pelo próprio Ministério Público, para fundamentar sua acusação.
A Corregedoria dos Órgãos de Segurança Pública, por exemplo, vem apurando várias denúncias de grupos de segurança privada clandestina no Estado, com a participação e a gerência de policiais civis e militares, o que é absolutamente vedado por lei, pois as empresas de segurança devem ser formalmente constituidas e fiscalizalizadas pela Polícia Federal. E os policiais não podem, por detreminaçào legal, exercer trabalhos de segurança privada, ou seja, exercer trabalhos de vigilância em horário de folga para pessoas físicas ou jurídicas (empresas, por exemplo).
Entretanto, no Ceará e em todo o Brasil, é muito comum a prática dos "bicos", em afronta à legislação, para complementação da renda. Ocorre que a folga é absolutamente necessária para a polícia, pois é o momento de gozo da convivência familiar e comunitária, é o momento de se recompor dos desgastes físicos e emocionais. O policial deve ter uma remunação justa e satisfatórias condição de trabalho, não uma jornada de trabalho extraordinária e ilegal para complementação da renda.
Vale ressaltar que o caso também foi citado no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a ação criminosa das milícias privadas e dos grupos de extermínio em toda a região Nordeste, entretanto esse relatório ainda não foi aprovado e divulgado.
Rets - O envolvimento de policiais em grupos de extermínio é comum ou a contratação de "matadores profissionais" é mais fácil frequente?
Patricia Campos - Infelizmente, no Ceará, estamos acompanhando um grande número de delitos que contam com a participação de policiais, desde crimes contra o patrimônio a crimes contra a pessoa (crimes contra a vida e a integridade física). No que se refere ao caso atualmente investigado no Ceará, conhecido como “Caso Pague Menos", foi possível apurar a presença importante de policiais, arregimentados para fazer trabalho de vigilância, não só para este grupo empresarial, mas também para outras pessoas físicas e jurídicas.
Porém, no interior do estado e na capital, não sao raros os casos de execuçòes sumárias, arbitrárias e extrajudiciais, praticadas também por encomenda a civis (crimes de pistolagem). Poderíamos destacar os assassinatos por motivação política, os assassinatos na região do Cariri que vitimaram várias mulheres e queimas de arquivo.
Rets - Quem são as vítimas mais freqüentes desses grupos?
Patricia Campos - As execuções sumárias atualmente investigadas no Ceará, em vista da denúncia do “Caso Pague Menos", vitimaram principalmente pessoas que tentaram subtrair ou efetivamente assaltaram as lojas da rede. Entretanto também foram atingidos clientes e funcionários das mais variadas idades.
Relacionamos um caso em que uma criança de 12 anos foi perseguida até o interior de uma casa e alvejada depois de esconder em sua roupa um kit de colônia e desodorante. Um adolescente perdeu inteiramente a perna direita após uma sessão de tortura e um tiro à queima-roupa. E um cliente foi atingido na cabeça, ao montar em sua moto e ser confundido com um assaltante em fuga.
Ou seja, qualquer pessoa poderia ter sido atingida pelo grupo, independentemente da idade, sexo ou de sua finalidade na loja.
Rets - Em algum momento houve obstrução ao trabalho de grupos de defesa dos direitos humanos?
Patricia Campos - Neste caso específico, não tivemos obstáculos ou sofremos ameaças, contudo é imperativo registrar a pequena disponibilidade da mídia local em abordar essa questao. À época da denúncia, praticamente não houve repercussão, apesar de termos convidado toda a imprensa para realizar a cobertura. E quando era feita, na maioria das vezes, não mencionava-se o nome do grupo empresarial envolvido, provavelmente por ser um dos maiores anunciantes de publicidade do estado. Entretanto, após a divulgação por redes nacionais, a mídia local passou a fazer a cobertura do caso, com a veiculação das gravações obtidas e o acompnhamento das audiências e demais atos processuais. Mas ainda é possível observar o pudor que alguns veículos têm de mencionar o nome das empresas e dos empresários envolvidos.
Outra dificuldade encontrada foi a falta de apoio no Poder Executivo estadual e no empresariado. O governador e o secretário de Segurança insistiram em declarar que não tinham conhecimento das investigações, quando o secretário, à época da denúncia (julho de 2002), era superintendente da Polícia Federal no Ceará, recebeu o pedido de instauração de inquérito policial e designou um delegado para presidi-lo, sem mencionar a visita da CPI da Pistolagem ao estado e audiências públicas realizadas que abordaram esse tema.
Outro ponto que merece destaque é a diversidade de opiniões na sociedade. Deparamo-nos com manifestações de rechaço e apoio a essas práticas criminosas. Ou seja, grande parte da sociedade ainda é levada pela análise superficial do senso comum, acredita que a resposta para os problemas da segurança pública, da violência urbana, da "delinqüência", é mais violência: tortura, aumento de penas, repressão, criminalização de condutas, tolerância a prática de crimes por agentes públicos (policiais justiceiros, por exemplo). Só uma análise mais aprofundada, que infelizmente nem todos fazem, mostra que a violência sempre esteve presente na vida do ser humano e que seu acirramento deve-se, sem sombra de dúvidas, ao desrespeito aos direitos humanos, aos direitos fundamentais, à fragilidade das políticas públicas. Tudo isso se expressa nas desigualdades constantes em nossa sociedade, nas desiguldades de raça, gênero, geração e classe social.
Rets - Esses grupos de defesa dos direitos humanos são ameaçados?
Patricia Campos - Ainda não tomamos conhecimento de qualquer denúncia, seja contra os defensores de direitos humanos ou testemunhas e familiares. Contudo avaliamos negativamente a soltura dos acusados, determinada pelo juiz da causa, com o consentimento do Ministério Público, ocorrida recentemente.
Inobstante as testemunhas já terem sido ouvidas, outras testemunhas e vítimas, de outros episódios, ainda não o foram, e passam agora a correr um sério risco do que convencionalmente se chama de "queima de arquivo". E mais: como as investigações ainda não foram concluídas, mesmo porque tem-se uma multiplicidade de crimes e criminosos, arrisca-se também a destruição ou adulteraçao de documentos, armas e outros objetos que possam ser importantes para a elucidaçao dos fatos.
Rets - Como está o comportamento da Justiça nesse e nos demais casos?
Patricia Campos - Até agora, foram instaurados três processos criminais por homicídio na 2ª Vara do Júri e um outro na 4ª Vara do Júri, que deverá ser encaminhado para a 2ª Vara, a fim de garantir a reunião de todos os procedimentos.
Nos três primeiros processos, foram ouvidas testemunhas de defesa e acusação, tomados os depoimentos pessoais e juntados muitos documentos, além da defesa escrita dos acusados, realizada por advogados devidamente habilitados.
A fim de acompanhar o andamento dos procedimentos, para garantir a proteção de vítimas, testemunhas e familiares, a celeridade e transparência da tramitação processual e o diálogo com a sociedade, foi criada uma comissão de advogados e advogadas ligados às entidades denunciantes para, como observadores, monitorarem os atos processuais e fornecerem informações que possam vir a subsidiar o Ministério Púbico, o Poder Judiciário e a sociedade em geral, além de manter o diálogo com a Comissão do de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, que inclusive realizará sua próxima sessao aqui em Fortaleza, no dia 14 de setembro. Isto porque, além desse caso que apura a existência do grupo de extermínio, o Conselho também acompanha as investições dos assassinatos de mulheres na região do Cariri, as denúncias de exploração sexual e outras violações de direitos humanos no município de Milagres.
Rets - Que solução é esperada para esse caso?
Patricia Campos - Várias entidades do movimento de direitos humanos e de defesa dos direitos de crianças e adolescentes vêm se solidarizando com a causa e enviando manifestações de apoio para os denunciantes, além de enviarem cartas exigindo do Judiciário, do próprio Ministério Público, da Corregedoria e da Secretaria de Segurança Pública rigor na apuraçao dos fatos e a observância do devido processo legal.
Esperamos que a situação seja avaliada de forma conjunta e que leve-se em consideração que a prática de extermínios, despejos forçados e segurança privada clandestina não são fatos desvinculados, mas expressões de uma crise na política ou da falta de uma política de segurança pública. Exigimos a absoluta priorização do tema, a fim de possibilitar a responsabilização civil, criminal e administrativa de todos os envolvidos, inclusive os financidores do esquema; o fortalecimento do programa de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas e dos espaços de controle da atividade policial e da política de segurança pública.
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