Você está aqui

A política de direitos humanos no governo Lula

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original:

O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) apresenta uma reflexão sobre as políticas públicas em direitos humanos no Brasil, tendo como referência o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH II), sua execução orçamentária e a atual gestão dessas políticas. O estudo se baseia em três perguntas: Como está se processando a implementação do PNDH II? A previsão e a execução orçamentária são condizentes com as políticas públicas para os direitos humanos? O problema de gestão dessas políticas está ligado ao status institucional da Secretaria Especial de Direitos Humanos? Respondendo a tais questionamentos, esta nota técnica pretende contribuir para a construção de um balanço e lançar novas perspectivas para a reparação, promoção e proteção dos direitos humanos no Brasil.

Como está se processando a implementação do Programa Nacional de Direitos Humanos II?

Para analisarmos a implementação do PNDH II, torna-se importante resgatar a construção deste programa, o que exige um breve relato das conferências nacionais de direitos humanos. Estas representam o mais importante espaço de fortalecimento, articulação, avaliação e construção de estratégias para a reparação, promoção e proteção dos direitos humanos no Brasil.

A 1ª Conferência, protagonizada pela sociedade civil organizada, foi realizada em 1996 e significou um marco histórico para a promoção dos direitos humanos no país, com fundamental importância para a elaboração do programa nacional de direitos humanos. As propostas apresentadas nessa Conferência foram, em parte, incluídas no PNDH ou serviram para qualificar o debate junto ao Ministério da Justiça, órgão responsável pela criação do programa.

Em 1997, a 2ª Conferência teve com objetivo a avaliação do PNDH. Foram apresentadas críticas, propostas de complementação e revisão do programa. As discussões plenárias criaram uma grande pressão junto ao governo federal e ao Congresso Nacional para a implementação do PNDH e a aprovação de proposições legislativas voltadas aos direitos humanos. Outro ponto marcante foi o indicativo de criação de planos estaduais de direitos humanos.

Durante os anos de 1998 e 2001, as conferências nacionais elegeram diversos temas relevantes, como o combate à tortura e à impunidade; a criação de programas estaduais de direitos humanos; o sistema nacional e internacional de direitos humanos; a construção de um sistema nacional de direitos humanos; o papel das instituições financeiras multilaterais e comerciais internacionais na violação dos direitos humanos; a conferência mundial contra o racismo, a discriminação, a xenofobia e outras formas de intolerância; entre outros.

A 7ª Conferência, em 2002, elegeu a prevenção e o combate à violência como tema central. A conclusão desse debate foi apresentada a candidatos à Presidência da República e aos partidos políticos, na expectativa de que viesse a ser incorporada em seus programas de ação. A revisão do programa nacional de direitos humanos, que mais tarde seria intitulado PNDH II, gerou debates e propostas de alteração e inclusão de temas e de ações mais detalhadas e eficazes. Parte dessas propostas foi incorporada na revisão do programa.

A revisão do PNDH, em 2002, mesmo apresentando lacunas e falhas, teve um resultado positivo, pois trouxe propostas de políticas públicas voltadas às áreas de saúde, educação, saneamento, cultura e trabalho, ampliando seu campo de atuação e trabalhando na perspectiva dos direitos econômicos, sociais e culturais. Com a aprovação do Plano Plurianual - PPA 2004/2007, no entanto, ocorreu uma nova revisão do PNDH, sem que fosse realizada qualquer consulta aos diversos atores envolvidos. O resultado foi a supressão de 30 programas voltados para a proteção dos direitos humanos. No PPA 2000/2003, havia 887 programas, número que foi reduzido para 57 no PPA 2004/2007. A maioria dos programas que estão sem continuidade é ligada aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - DESCs1 .

Além dos cortes no número de programas, o alarmante é a ausência de um processo de implementação e execução do PNDH II. Embora argumente que o PNDH II não representa a real demanda dos direitos humanos, o governo federal continua sem apresentar propostas alternativas para a resolução das violações de direitos no Brasil. Ressaltamos que a inclusão do PNDH II no PPA 2000/2003 e na Lei Orçamentária Anual 2002 foi um avanço para as políticas públicas em direitos humanos. Os PNDH I e II fazem parte de uma construção histórica que não pode ser descartada, pois representa demandas de setores importantes da sociedade civil.

A previsão e execução orçamentária são condizentes com as políticas públicas para os direitos humanos?

Sabe-se que as políticas sociais competem entre si, em um cenário de recursos escassos. É missão ingrata ter que optar entre atribuir mais verbas para temas como saúde, educação ou reforma agrária. Mas essa é a missão do governante. Porém, a administração pública não promove uma gestão neutra, mas comprometida com os princípios de um programa de governo ou de um partido. Por esse motivo, entende-se, em grande parte, por que não há recursos suficientes para a garantia dos direitos humanos no atual governo. Falta muito para que haja recursos públicos para a reparação, promoção e proteção dos direitos humanos no Brasil. Sem dúvida avançamos, mas o contingenciamento dos gastos para o alcance do superávit primário, a fim de pagar os juros e os serviços da dívida pública, coloca os programas voltados para essa temática em estado de mendicância. A execução orçamentária e física do PNDH II, tanto em 2003 quanto em 2004, esteve muito aquém do nível previsto e, mais ainda, do necessário.

Em 2005, a situação é alarmante. Em 11 de agosto, dos 57 programas do PNDH II2 , 19 tiveram menos de 10% de execução do recursos previstos, dentre eles os programas: “Saneamento ambiental urbano”; “Desenvolvimento sustentável da reforma agrária”; “Atendimento socioeducativo do adolescente em conflito com a lei”; “Promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente”; “Alimentação saudável”; “Atenção integral à saúde da mulher” e “Proteção da adoção e combate ao seqüestro internacional”. Apenas quatro programas tiveram uma execução superior a 50%. São eles: “Proteção social à pessoa portadora de deficiência”; “Atenção hospitalar e ambulatorial no Sistema Único de Saúde e “Integração de políticas públicas de emprego, trabalho e renda”.

A execução orçamentária não pode ser vista como um dado apenas numérico. Se compreendermos que as políticas públicas se interligam no objetivo de reduzir as necessidades sociais e prover direitos aos cidadãos; que os direitos humanos são interdependentes e indivisíveis; e que o orçamento é uma parte fundamental na estratégia de erradicação da desigualdade social, esse passa a ser uma peça fundamental para avançarmos na afirmação do Estado de Direito.

Nesse sentido, é importante considerar a interdependência entre as políticas públicas. Se uma criança não tem acesso a políticas públicas que garantam seus direitos, terá poucas chances, quando adulta, de ser beneficiada pelas políticas de emprego, trabalho e renda. Será que políticas, como as que promovem a alimentação saudável, não evitariam que milhares de brasileiros ficassem doentes e enfrentassem filas quilométricas e exaustivas em hospitais públicos?

Ao analisarmos os órgãos responsáveis pela articulação e efetivação da política de direitos humanos, temos a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, que, em 11 de agosto deste ano, apresentava uma execução orçamentária de 27,99% dos R$ 12,5 milhões previstos. A Secretaria Especial de Política para as mulheres apresentava 21,04% dos R$ 24,5 milhões, na mesma data. Já na renomeada Subsecretaria Especial de Direitos Humanos, apenas 12,9 % dos R$ 77,6 milhões previstos foram executados.

Podemos concluir, então, que os programas governamentais voltados aos direitos humanos estão muito mal geridos, não sendo prioridade na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2005, e muito menos têm execução contínua, dificultando a construção de um sistema que repare, promova e proteja esses direitos no Brasil.

O problema de gestão dessas políticas está ligado ao status institucional da Secretaria Especial de Direitos Humanos?

Há pouco mais de um mês, o governo realizou uma nova reforma ministerial. Diante do indício de extinção da Secretaria Especial de Direitos Humanos, a sociedade civil organizada manifestou-se contrariamente a essa supressão, mas não conseguiu evitar que a Secretaria perdesse seu status ministerial, voltando a ser denominada Subsecretaria de Direitos Humanos. A perda de status levaria a Secretaria a desvincular-se da Presidência da República e a retornar ao Ministério da Justiça. Depois de nova pressão dos diversos atores envolvidos no processo, foi mantido o vínculo com a Presidência da República. Avaliações de organizações da sociedade civil organizada apontam que a criação da Secretaria Especial de Direitos Humanos, por seu caráter simbólico, poderia ter sido um marco na ampliação das políticas de direitos humanos, processo que demonstraria a priorização dos direitos humanos como princípio fundamental para a eliminação da desigualdade social em nosso país.

Passados dois anos e meio, a ex-Secretaria Especial de Direitos Humanos pouco avançou na consolidação das políticas existentes e na criação de novos paradigmas para os direitos humanos. De novidade, podemos pontuar ações para a proteção de defensores de direitos humanos; o disque direitos humanos; a criação do programa Brasil sem homofobia; e as ações de educação em direitos humanos; entre outras poucas ações. Porém, todas essas políticas esbarram na baixa previsão orçamentária, no contingenciamento dos gastos públicos e na dificuldade de articulação com a sociedade civil organizada.

Na 8ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, o então Secretário Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, havia se comprometido com a implantação do sistema nacional de direitos humanos, afirmando que as deliberações daquele espaço seriam efetivas e que a SEDH passaria a participar do processo de organização das próximas conferências.

O sistema nacional de direitos humanos não foi implantado, as deliberações da conferência não foram encaminhadas e sua participação na 9ª Conferência foi desastrosa. Se, por um lado, a contribuição da SEDH para a realização das conferências estaduais foi de grande valia, por outro, a quebra de acordos, a tentativa de inserção de temas não priorizados no período de organização do evento nacional e a dificuldade de recepção das demandas da sociedade civil organizada provocaram momentos de tensão e descrédito do caráter “deliberativo” da Conferência.

A situação agravou-se quando, em janeiro de 2005, a SEDH convocou reunião para a definição de suas prioridades para o biênio 2005/2006. Em seu discurso, o ex-Secretário Nilmário Miranda afirmou que a Secretaria passaria a tratar apenas dos direitos civis e políticos, provocando um retrocesso na promoção e proteção aos direitos humanos. Foram apresentadas 10 prioridades que, em sua maioria, não estavam de acordo com as deliberações da 9ª Conferência.

É importante ressaltar que, dentre as ações não priorizadas, foram excluídas todas aquelas voltadas à área da criança e do adolescente. O Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc – avaliou essa atitude política como uma estratégia para o desmantelamento das políticas dessa temática. Especialmente porque, no PPA 2004/ 2007, a SEDH é o órgão responsável pela gestão da maioria dos programas desse segmento e tem em sua estrutura uma subsecretaria específica para tal.

A conjuntura nos mostra que não basta discutir o status institucional dos órgãos destinados às políticas públicas voltadas aos direitos humanos. È preciso priorizar essas políticas. Assim, de pouco adianta um ministério que funciona a duras penas e que apenas implementa políticas compensatórias para contrapor os efeitos da política econômica, interpretando as ações de direitos humanos como um paliativo para a diminuição das desigualdades sociais.

Conclusão

A não execução de políticas públicas de direitos humanos tem contribuído para perpetuar violações a esses direitos no Brasil. A chegada de um governo de centro-esquerda ao poder não alterou essa realidade. A impunidade, a corrupção e a violência vêm se banalizando em nosso cotidiano.

O governo Lula ainda tem como desafios a reaproximação com a sociedade civil organizada; a execução do PNDH II; a inserção dessas políticas como prioridade na revisão do PPA 2004/2007 e nas demais leis do ciclo orçamentário; a efetivação, em todas as esferas, dos planos temáticos propostos; e a efetivação dos direitos humanos como prioridade estrutural.

Indígenas, afrodescendentes, crianças e adolescentes, mulheres, gays, lésbicas, transgêneros, portadores de deficiência, idosos, pobres, trabalhadores rurais e urbanos, enfim, a sociedade brasileira necessita de ações que alterem a situação dos direitos humanos.

Se o discurso e os programas de campanha política do atual governo não podem ser realizados, continuaremos fazendo pressão e exercendo nosso direito cidadão de reivindicar melhores condições de vida para todos e todas. O governo pode optar por correr alguns riscos, menos o de colocar em jogo a construção de uma sociedade digna, justa, plural e democrática.

Programas do PPA 2000-2003 sem continuidade no PPA 2004-2007

0001 - SAÚDE DA FAMÍLIA
0003 - PREVENÇÃO, CONTROLE E ASSISTÊNCIA AOS PORTADORES DE DOENÇAS SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEIS E DA AIDS 0004 - QUALIDADE E EFICIÊNCIA DO SUS
0005 - ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA
0018 - SAÚDE MENTAL
0019 - PREVENÇÃO E CONTROLE DA TUBERCULOSE E DE OUTRAS PNEUMOPATIAS
0020 - CONTROLE DA HANSENÍASE E DE OUTRAS DERMATOSES
0021 - SAÚDE DA MULHER
0022 - SAÚDE DO TRABALHADOR
0025 - SAÚDE SUPLEMENTAR
0026 - SAÚDE DO JOVEM
0027 - SAÚDE DA CRIANÇA E ALEITAMENTO MATERNO
0040 - TODA CRIANÇA NA ESCOLA
0041 - DESENVOLVIMENTO DO ENSINO DE GRADUAÇÃO
0042 - ESCOLA DE QUALIDADE PARA TODOS 0044 - DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
0045 - DESENVOLVIMENTO DO ENSINO MÉDIO
0047 - EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
0048 - ESTATÍSTICAS E AVALIAÇÕES EDUCACIONAIS
0049 - DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO ESPECIAL
0066 - VALORIZAÇÃO E SAÚDE DO IDOSO
0067 - ATENÇÃO À CRIANÇA
0119 - SANEAMENTO BÁSICO
0121 - NOSSO BAIRRO
0136 - NOVO MUNDO RURAL: CONSOLIDAÇÃO DE ASSENTAMENTOS
0170 - PRODUÇÃO E DIFUSÃO CULTURAL
0415 - JOVEM EMPREENDEDOR
0495 - PROÁGUA - GESTÃO
0666 - SEGURANÇA DO CIDADÃO
0791 - VALORIZAÇÃO DO SERVIDOR PÚBLICO






A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer