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Ambiente de ameaças

Autor original: Viviane Gomes

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Ambiente de ameaças
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Depois de revelar à imprensa suas impressões sobre o 1º Fórum Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Mato Grosso, a ambientalista Michèle Sato recebeu ameaças em um telefonema anônimo atribuído a um grupo de madeireiros. O evento foi promovido pela Secretaria de Meio Ambiente (Sema), com o objetivo de discutir e formular políticas públicas ambientais para o estado. No entanto os discursos de abertura logo apontaram a direção dos debates. De acordo com Michèle, a questão econômica foi fortemente enfatizada, em detrimento da dimensão ambiental.

Michèle ficou contrariada com afirmações de que as áreas indígenas de Mato Grosso são seis vezes maiores do que as destinadas à agricultura; com a ausência de grupos representantes das populações tradicionais, indígenas, ribeirinhas e quilombolas; e com provocações que denominavam ambientalistas de "verdinhos", "hippies", "cabeludos" e  "barulhentos".

Referência no Brasil e no exterior em educação ambiental, a pesquisadora expôs sua indignação numa entrevista coletiva. No dia seguinte, conta, suas declarações teriam sido censuradas pela maioria dos órgãos de imprensa do estado. "Apenas um jornal [Folha do Estado, 5 de agosto de 2005, p. 11]
deu atenção", afirma. Depois disso, uma atmosfera de hostilidade pairou sobre a vida de Michèle Sato, culminando no telefonema anônimo.

Para ela, apesar do medo, a luta ambiental torna-se mais forte, assim como a crença na liberdade de expressão. A pesquisadora está recebendo proteção policial e o caso foi encaminhado pela Relatoria de Direitos Humanos diretamente à Polícia Federal.  

Michèle Sato trabalha há 20 anos na área da educação ambiental, é integrante do Grupo Pesquisador em Educação Ambiental da Universidade Federal do Mato Grosso, atua como consultora da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), desenvolvendo o Projeto de Educação Ambiental (PrEÁ) e participa de diversas redes sobre meio ambiente. Enquanto o inquérito não é concluído, Michèle foi aconselhada por um promotor de Justiça a divulgar amplamente o fato, acreditando que a generalização da notícia possa protegê-la de possíveis violências físicas.

Indignada com a situação, Sato concedeu esta entrevista à Rets, na qual explica como é desenvolvido o trabalho dos ambientalistas no estado, fala das disputas territoriais entre produtores, proprietários de terra e senhores do agronegócio com populações tradicionais e do que espera das políticas públicas voltadas para a defesa do meio ambiente.


Rets - O clima de hostilidade contra você começou durante o 1º Fórum Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade, promovido pela atual Secretaria de Meio Ambiente (Sema). Você pode explicar a importância desse evento e como ele foi conduzido?

Michèle Sato - No mês de junho a Operação Curupira [ver box ao lado] passou por Mato Grosso arrastando diversos funcionários à prisão, entre eles o gerente do Ibama e o secretário da Fundação Estadual de Meio Ambiente (Fema) de Mato Grosso. Por um breve período, a Fema ficou acéfala, evidenciando a necessidade do desenvolvimento de uma política ambiental para o estado.

A Fundação foi transformada em Secretaria de Estado de Meio Ambiente, que promoveu o 1º Fórum de Meio Ambiente e Sustentabilidade. Coordenei a oficina sobre educação ambiental.

O fórum deveria representar um espaço amplo de debate para o fortalecimento das políticas ambientais. A atitude do governo foi corajosa, mas a metodologia do evento não privilegiou as discussões e o fórum tornou-se um momento de inúmeras proposições misturadas, com diversas tendências, ideologias e sem um eixo fundamental – uma vez que todas as proposições foram agregadas sem debates. Embora tenha tentado chamar atenção para este fato durante a reunião de coordenadores, fui voto vencido.

Reforço que a promoção do Fórum foi louvável porque foi a primeira vez, desde que vim morar aqui, há dez anos, que testemunhei esse acontecimento.

Rets - Quais foram os fatos que incomodaram você no decorrer do evento?

Michèle Sato - A presença maciça de médios e grandes agricultores, do setor madeireiro, de
faixas com slogan da década de 70, "Integrar para não entregar", de declarações tendenciosas e manipulações de dados a favor do agrobusiness. Fiquei incomodada com a ausência de populações locais, como pescadores, artesãos, índios, quilombolas ou ribeirinhos. Além disso, fiquei indignada com provocações diretas como "hippie verdinha", "bando de cabeludos", ou "barulhentos".

Rets - O fato de povos ribeirinhos, populações tradicionais, indígenas, quilombolas ou grupos tradicionalmente marginalizados não participarem amplamente do fórum dá ao evento um caráter elitista? O que isso representa para a formulação de políticas públicas de meio ambiente no estado?

Michèle Sato - É um engano considerar que somente governantes, universidades ou ONGs tomam decisões. Há um universo de saberes locais que deve ser respeitado por estar ligado às populações economicamente desfavorecidas e tradicionalmente excluídas pela elite. A desconsideração destas comunidades revela o caráter elitista de um fórum que privilegiou as forças econômicas, evidenciando que a abertura foi de democracia formal, mas não foi ampla, participativa ou real.

Rets - Você decidiu expor o que observou durante a realização do evento aos jornais. Como a imprensa local recebeu suas declarações?

Michèle Sato - Os jornalistas que me entrevistaram foram responsáveis e éticos, desempenhando seus papéis de forma consistente e fidedigna. No dia seguinte à entrevista coletiva, soube por alguns jornalistas que minha fala havia sido censurada. Apenas uma pequena matéria saiu em um dos jornais de grande circulação [Folha do Estado, 5 de agosto, p.11].

Entretanto o setor da comunicação ambiental noticiou amplamente minhas declarações através de boletins eletrônicos, que foram replicados por integrantes da Rede Mato-Grossense de Educação Ambiental (Remtea), via internet.

Rets - A partir dai você começou a ser ameaçada?

Michèle Sato - Minhas declarações foram publicadas na sexta, dia 5, e a ameaça telefônica chegou no dia 8, segunda-feira. Entretanto gostaria de salientar que a ameaça não foi contínua, apenas um telefonema com a frase: "Estamos prestando atenção nas declarações da senhora".

Rets - Algum grupo assumiu a autoria da ameaça?

Michèle Sato - O telefonema foi rápido e anônimo. A pessoa – com voz de homem – me dizia ser do grupo de madeireiros. Se ele não tivesse desligado rapidamente, provavelmente eu o faria, em absoluto pânico.

No início, tive medo de noticiar e denunciar a ameaça, mas, movida pela orientação de familiares e amigos, isso acabou acontecendo e a Comissão de Direitos Humanos fez intervenção direta no caso.

Rets -  A ameaça está sendo investigada?

Michèle Sato - Estou tendo proteção de todas as polícias – local, federal, ambiental – e muita colaboração da Relatoria de Direitos Humanos, que denunciou o caso diretamente à Polícia Federal. Periodicamente, converso com delegados ou com a Comissão de Direitos Humanos, mas ainda não há evidências da autoria. As pessoas que estão apurando o caso supõem que o telefonena tenha sido feito de um orelhão, mas a localização da chamada ainda está sendo investigada.

Rets - Você está recebendo proteção policial?

Michèle Sato - Felizmente, sim. Surpreendentemente, os delegados estão sendo muito amáveis, prestativos e atenciosos. O descaso policial foi um preconceito que acabou por terra após este episódio. Fora isso, o reitor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Paulo Speller, bem como os
Ministérios da Educação (MEC) e do Meio Ambiente (MMA) também pediram proteção para mim. Além disso, recebi apoio de várias Assembléias Legislativas espalhadas pelo Brasil e devo um especial agradecimento ao deputado Carlos Abicalil (PT-MT).

Rets - Você é uma ambientalista, pesquisadora, autora de vários livros, ou seja, tem uma rotina de muitos compromissos. Como ficou sua vida depois dos acontecimentos?

Michèle Sato - Fiquei imobilizada por duas semanas, com medo inclusive de sair de casa. Não consegui trabalhar, nem me dedicar a qualquer coisa naquele período. Mas as inúmeras mensagens recebidas pela internet, telefonemas de amigos e familiares, visitas de amigos e outros apoios solidários foram fundamentais para "levantar e sacudir a poeira".

Após a superação deste mal estar, retomei a rotina normal; muito em função da minha iniciativa de participar da organização de um fórum realizado com a sociedade civil para avaliar os resultados do fórum da Sema.

A parte acadêmica também sopra nos ventos normais, já que não consigo fragmentar militância das ciências e da vida pessoal. O turbilhão de atividades anuncia que a luta está longe de ser finalizada e que a voz não se cala, nem sucumbe às violências de nossa era.

É obrigação ética conduzir esta luta na minha própria função social: denunciando disparidades sociais ao lado desta apaixonada vida de ecologista. E se puder me aliar à ciência, certamente terei mais alicerces nesta longa caminhada de lutas – escurecida, temporariamente, mas que jamais retira a melodia de quem quer cantar por um mundo mais justo.

Rets - A violência no estado quando se trata de questões ambientais e defesa das populações tradicionais é bastante conhecida. Você já recebeu ameaças antes? Algum integrante de grupo ou movimento ambiental também está sendo ameaçado?

Michèle Sato - Nunca fui ameaçada antes pelas questões ambientais, mas certamente sou apenas um caso entre muitos que sofreram este tipo de violência. Alguns dias antes do telefonema, Adilson Vieira [secretário-geral do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA)] havia sido agredido, no Amazonas. Também tenho notícias de vários outros casos que evidenciam uma ferocidade generalizada contra o segmento ecologista.

Recebi inúmeros apoios do mundo todo, com várias narrativas semelhantes, de pessoas que estão no movimento ecologista e são ameaçadas por conta de seus ideários. Durante a reunião da sociedade civil, que avaliou o Fórum da Sema, fiquei sabendo de vários outros casos de ameaça que, embora não
registradas ou denunciadas, comprovam que os ecologistas estão sendo constantemente perseguidos.


Na reunião do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), acatou-se a proposição da sociedade civil de fazer um mapa da violência denunciando estas disparidades. Considero essa ação emergente e fundamental, pois é um absurdo ameaçar as vidas de quem luta exatamente por elas.

Rets - Quais são os principais problemas que os ambientalistas enfrentam para defender o meio ambiente em Mato Grosso?

Michèle Sato - Inúmeros. Desde a situação global, que interfere no local, às particularidades do estado. A luta entre movimento ecologista e o setor do
agrobusiness pode se configurar como um grande desafio, mas há outros problemas graves, como desmatamento, esgoto, hidrelétricas, caça e pesca predatórias, turismo desenfreado e a própria ausência de sensibilidade de promover a formação dos sujeitos na educação ambiental. Como diz o velho ditado ecologista: não se trata da direita ou da esquerda, mas de estar no front.

Rets - Daqui pra frente, o que você espera que seja feito, tanto no que se refere à garantia da sua vida quanto ao futuro das políticas ambientais no estado?

Michèle Sato - Que a democracia "real" seja garantida, através da construção de políticas públicas com as inúmeras vozes ausentes neste 1º Fórum. Que as violências ambientais, sociais ou individuais sejam denunciadas, apuradas e punidas como medida de atitude ética, que a educação ambiental possa florescer sem medo, sem rancores ou agressões, semeando diálogos entre tantos conflitos. Que Mato Grosso, assim como o Brasil, seja muito bem cuidado, porque quem faz esta nação somos nós. Que as pessoas possam perceber um sistema planetário para além de seus interesses diretos, buscando o diálogo por um "Brasil Sustentável e Democrático", a exemplo da Fase [Michèle faz referência ao projeto Brasil Sustentável e Democrático, idealizado pela ONG Fase. Saiba mais no link ao lado].Talvez assim a gente possa despertar o sentido de brasilidade, apaixonando-se pelo país e esforçando-se para que ele seja o melhor lugar do mundo.


Tenho esperanças na educação ambiental, sou inconformada e espero que ela jamais perca sua capacidade de indignação frente à violência. Que ela seja capaz de promover a descoberta de que precisamos construir uma sociedade criativa além dos próprios interesses. Uma educação ambiental que acolha arte, conhecimento, militância e entrega da paixão, que canalize a vida em energia para restaurar mais uma oportunidade sobre a Terra. E que, mesmo ciente da dificuldade de sua vitória, jamais perca a esperança de construir este imenso verde e amarelo pelo qual somos todos responsáveis.


Viviane Gomes

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