Você está aqui

Na mesma luta, mas divididos

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Na mesma luta, mas divididos
pt.org.br/racismo/racismo.htm

Em 20 de novembro de 1995, cerca de 30 mil pessoas estiveram em Brasília para a marcha em memória dos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. Tinham como objetivo chamar a atenção do governo federal para a necessidade de implementar políticas públicas voltadas para a parcela afro-descendente da sociedade. A manifestação foi considerada um sucesso, a ponto de a Secretaria Especial de Promoção de Políticas da Igualdade Racial (Seppir), ligada à Presidência da República, ter sido criada.

Dez anos depois, o movimento negro volta à capital do país para comemorar uma década da marcha de Zumbi, como ficou conhecida a chegada de milhares de ativistas provenientes de diversos pontos do país. Porém, apesar das metas da manifestação deste ano serem praticamente as mesmas de dez anos atrás – visto que a situação não mudou muito desde então –, os manifestantes chegam divididos. Haverá duas marchas, uma no dia 16 de novembro e outra em 22 do mesmo mês, com reivindicações semelhantes. O racha se deve a questões de forma de organização e ao momento político.

Os organizadores da marcha do dia 16 afirmam que sugeriram a data há mais de dois anos e que por isso não há motivo para modificações. Dizem não querer apoio de órgãos governamentais como a Seppir para manter a independência do movimento e acusam o outro lado de querer esvaziar a manifestação para evitar críticas ao atual governo. “A autonomia do movimento negro está em questão”, enfatiza Nilza Iraci, assessora do Geledés, organização de mulheres negras baseada em São Paulo.

“Queremos nos organizar sem tutela partidária. A crítica à atual administração é inevitável, pois hoje há mais retórica do que prática”, defende o jornalista Edson Cardoso, diretor da Irohin, entidade de São Paulo. Cardoso acusa setores do movimento negro ligados ao governo federal de estarem distantes das discussões que deram origem à marcha e de tentarem evitar pressões à administração antes de 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra.

Segundo o ativista, a data foi definida há dois anos, em uma conferência, e ninguém teria apontado qualquer problema. Depois, na última edição do Fórum Social Mundial, realizada em Porto Alegre em janeiro deste ano, teria sido promovida uma oficina para debater a marcha, sem que nenhum dos atuais opositores à data tivessem comparecido. “Ao invés de dialogar, querem confusão. Há dois anos, quando o governo estava bem, ninguém reclamou. Agora que a conjuntura mudou, acreditam que a marcha é uma ameaça. Na verdade, eles querem controlar o movimento tentando chamar uma plenária que nunca existiu”.

Os defensores do dia 22 acreditam ser essa a melhor data, por ela não estar em uma semana de feriado (em 15 de novembro se comemora a Proclamação da República) e descartam influência de partidos políticos na sua manifestação. “Não adianta colocar cem mil pessoas na rua para ninguém ouvir. No dia 16, Brasília estará deserta”, argumenta José Antônio da Silva, coordenador da União de Negros pela Igualdade (Unegro).

Ivanir dos Santos, do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap), do Rio de Janeiro, descarta a idéia de que partidos estejam comandando a marcha. “Temos que politizar em favor do movimento negro. A manifestação não é feita para ser contra A ou B, mas a favor de uma série de reivindicações”, sustenta. A marcha do dia 22 conta com apoio da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Movimento Negro Unificado.

Diante das acusações de que o governo federal e partidos da base aliada estariam aparelhando a manifestação, os organizadores respondem com insinuações sobre o uso político da marcha. “Se temos apoio de sindicatos, eles têm um forte financiamento internacional, que quer fazer barulho”, reage José Antônio.

Iraci contesta, afirmando que a marcha do dia 16 não conta com qualquer tipo de financiamento e que as caravanas estão sendo organizadas por cada entidade, separadamente. Algumas, como a do Rio de Janeiro, estão se cotizando para oferecer ônibus aos manifestantes. Ela também não acredita que Brasília estará vazia por causa do feriado. “Por causa das CPIs, os parlamentares estão permanecendo na cidade durante toda a semana. Também não há por que se manifestar depois do Dia da Consciência Negra”, diz.

Uma conciliação é vista como difícil por ambas as partes, mas ainda não está descartada. O problema é quem tomará a iniciativa de abrir mão de sua data. Os dois lados se dizem dispostos a conversar. “Nossa marcha não é fechada, estamos abertos ao diálogo. Mas queremos uma organização horizontal, em vez de recebermos ordens”, afirma Cardoso. “Este é um momento de unidade, não cabe fazer duas marchas com o mesmo objetivo. Porém não podemos politizar a manifestação”.

Histórico

A marcha de 1995 ganhou o nome de “Marcha Zumbi dos Palmares – contra o racismo, pela cidadania e pela vida”. O ano foi escolhido para relembrar os 300 anos da morte do líder negro que comandou uma revolta escrava no fim do século XVII. Trinta mil pessoas compareceram à Esplanada dos Três Poderes no dia 20 de novembro daquele ano, quando integrantes da Executiva Nacional da marcha compareceram a uma cerimônia com o então presidente da República Fernando Henrique Cardoso. A ele entregaram um documento denunciando o racismo, defendendo a inclusão social dos negros na sociedade brasileira e apresentando propostas de políticas públicas. A carta trazia análises sobre a situação do negro nas áreas de saúde, educação, trabalho e violência.

Para Edson Cardoso, a manifestação de 1995 teve um impacto muito grande no governo e até mesmo nos meios de comunicação. “Ela serviu para chamar a atenção para a responsabilidade do governo em relação à profunda desigualdade existente no país. Também foi fundamental para a construção de uma nova mentalidade”, afirma. Como exemplo do sucesso, ele aponta a criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial e um grupo de trabalho interministerial para analisar a questão.

Entre as reivindicações estavam a publicação de dados dos boletins epidemiológicos do Sistema Único de Saúde, com divisões de raça e renda, além da recuperação do ensino público e do estabelecimento de incentivos fiscais a empresas que contratarem negros.

Apesar do sucesso da marcha, os ativistas acreditam que pouco foi feito nesses dez anos, embora admitam alguns avanços. “A Seppir e a Fundação Palmares [ligada ao governo federal] foram boa iniciativas, assim como a Lei 10.639, que determina o ensino de história da África nos Ensinos Médio e Fundamental, mas ainda há muito o que fazer”, comenta José Antônio Silva. Todos concordam que falta a implementação da Lei 10.639/2003 e também um ritmo mais acelerado de reconhecimento de terras de remanescentes de quilombos, bem como a implementação urgente de cotas.

Reivindicações

Tais medidas são pedidas com veemência devido à atual situação dos negros no Brasil, que pouco mudou desde 1995. A carta entregue ao então presidente Fernando Henrique Cardoso trazia alguns dados que mostram a desigualdade social. A Síntese de Indicadores Sociais 2004, feita a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), mostra que os brancos continuam tendo mais acesso à educação, além de renda superior à dos negros –ainda que uma redução dessa desigualdade tenha sido observada.

Em 1993, os brancos recebiam, em média, 3,6 salários mínimos, ao passo que os negros ganhavam 1,7 – ou seja, menos da metade. Em 2003, a diferença diminuiu: os brancos ganhavam, em média, 3,9 salários mínimos; os negros, 1,93. O Observatório Afrobrasileiro, iniciativa do Instituto Palmares de Direitos Humanos (IPDH) e do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra, com base nos dados do Censo de 2000, uma situação ainda mais desigual quando analisa índices de pobreza. Entre os brancos, 31,24% são pobres. Entre os pretos, o índice sobe para 55,2%. A média do país é de 43%. Vale lembrar que o Observatório diferencia os pretos dos pardos. Se os pardos forem encaixados na categoria negros, como sugere o observatório, a porcentagem de pobres cresce ainda mais: seriam 57,2%.

Quando se analisa a quantidade de pessoas sem rendimento de acordo com a cor da pele, as diferenças também aparecem. De acordo com os dados do Observatório, 4,09% dos brancos não possuíam rendimentos em 2000, mas entre os pretos o índice era menor: 3,32%. Por outro lado, o rendimento médio dos brancos era de R$ 916,29 e o dos pretos, de R$ 419,92. Somando-se os rendimentos dos pretos com os pardos, o valor sobe um pouco, chegando a R$ 444,45 – ainda menos da metade.

A diferença pode ser vista também na esperança de vida de cada parcela da população. Quando uma criança branca vem ao mundo, sua expectativa de vida é de 73,9 anos, contra 67,6 de uma criança negra – uma diferença de 6,3 anos. Se agregados os descritos como pardos, a diferença cai um pouco. Os negros têm esperança de vida de 67,87 anos – 6,02 anos menor que a dos brancos.

Em relação à educação, a desigualdade permanece. Em 1993, os negros tinham em média 4,5 anos de estudos, contra 6,8 anos dos brancos. Em 2003, os brancos tinham uma média de 8,3 anos de estudo, contra 6 dos negros. “Vale registrar que mesmo a população de negros e pardos quase alcançando, em 2003, número médio de anos de estudos similar ao que a população branca possuía dez anos antes, o rendimento médio dos pretos e pardos ainda permaneceu num patamar entre 50% e 60% do que os brancos possuíam em 1993”, destaca o IBGE em seu relatório.

“Apesar dessa situação, até hoje não tivemos nenhuma grande medida para mudar esses dados”, diz Ivanir dos Santos.

Racismo

A marcha de Zumbi +10, no fundo, é de combate ao racismo, e pelo menos nesse aspecto a situação parece estar melhorando. Estudo da Fundação Perseu Abramo comparou dados de uma pesquisa feita pelo Datafolha em 1995 com outra feita pela própria fundação em 2003. Os resultados mostram que as pessoas, de todas as cores, afirmam perceber menos racismo. Há dez anos, 62% dos entrevistados diziam acreditar na existência de preconceito racial de brancos em relação a negros. Oito anos depois, o índice caiu para 52%. Respondendo se elas mesmas tinha preconceito em relação a negros, a porcentagem de entrevistados que afirmaram “não” cresceu de 88% para 96%.

Entretanto é preciso analisar o preconceito oculto, ainda alto, mesmo que tenha diminuído. Em 1995, discordaram da frase “negro, se não faz besteira na entrada, faz na saída” 63% dos entrevistados, contra 86% em 2003. O índice dos que ainda concordam com a frase, porém, pode ser considerado alto. “O país naturalizou a desigualdade por meio do racismo”, diz Edson Cardoso.

Marcelo Medeiros

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer