Autor original: Fausto Rêgo
Seção original:
Denise Hirao e Paula Raccanello Storto*
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Em 23 de outubro de 2005, será realizado um referendo no qual os cidadãos brasileiros responderão à pergunta: “o comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”
Duas frentes parlamentares foram criadas, representando a dualidade de opiniões sobre o assunto.[1] A Frente Parlamentar por um Brasil sem Armas defende a resposta “sim”, em contraposição à Frente Parlamentar Legítima Defesa.
A legalidade da participação das organizações da sociedade civil na campanha pelo “sim” tem sido questionada pela Frente Parlamentar Legítima Defesa. Alega-se que o princípio da igualdade estaria sendo violado em eventos promovidos por instituições públicas, tese afastada em duas representações com liminar julgada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).[2]
Além disso, também se alega que a participação de certas ONGs afronta a Resolução do TSE nº 22.041, de 4 de agosto de 2005, cujo artigo 10 dispõe:
“Art. 10. É vedado à frente parlamentar receber, direta ou indiretamente, doação em dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de:
I - entidade ou governo estrangeiro;
II - órgão da administração pública direta e indireta, federais, estaduais ou municipais ou fundação mantida com recursos provenientes do poder público;
III - concessionário ou permissionário de serviço público;
IV - entidade de direito privado que receba, na condição de beneficiária, contribuição compulsória em virtude de disposição legal;
V - entidade de utilidade pública;
VI - entidade de classe ou sindical;
VII - pessoa jurídica sem fins lucrativos que receba recursos do exterior.”
Liberdade de expressão
O citado artigo 10 assemelha-se ao artigo 31 da lei dos partidos políticos, Lei 9.096/1995, assim como a leis que regulam as eleições.[3] Todas essas previsões buscam implementar o artigo 17, inciso II, da Constituição Federal, o qual deve orientar a interpretação. Segundo o dispositivo constitucional:
“Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
II – proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes”.
Esse artigo refere-se claramente aos partidos políticos e justificava-se como forma de coibir a interferência política de outros países no Brasil. O dispositivo teve origem numa época em que se temia a intervenção da estrutura de um partido comunista que recebesse recursos e ordens do exterior. Tendo em vista a abrangência do poder dos partidos políticos, que constituem a via primordial para o exercício de mandatos na esfera do Poder Legislativo e do Poder Executivo no Brasil, fundamentou-se a adoção de norma específica para a defesa da soberania nacional.
Outra é a situação verificada no referendo, instituto que se assemelha ao processo legislativo do Congresso Nacional.[4] O referendo combina elementos da democracia direta e da indireta: o Poder Legislativo aprova certo projeto de lei, autoriza a realização do referendo e o povo confirma ou não essa aprovação.[5]
A participação de ONGs buscando expressar seu posicionamento junto a parlamentares é perfeitamente lícita durante o processo legislativo, independentemente da proveniência de seus recursos.
Essa licitude está em consonância com o princípio da liberdade de expressão, previsto nos artigos 5º e 220 da Constituição Federal:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”
Desse modo, a liberdade de expressão é um princípio constitucional que apenas poderá ser condicionado a outras disposições constitucionais. Como o artigo 17 da Constituição Federal se dirige somente aos partidos políticos, a proibição de doações só atinge aquelas que tenham o condão de fortalecer determinado partido.
Conclui-se, portanto, que, embora o artigo 10 da Resolução do TSE nº 22.041/2005 estabeleça vedação “à frente parlamentar” de receber contribuições procedentes de “pessoa jurídica sem fins lucrativos que receba recursos do exterior”, a proibição, em realidade, destina-se aos partidos políticos. Como as frentes são suprapartidárias, havendo inclusive parlamentares de um único partido em frentes diferentes, essa situação é impossível neste referendo.
Note-se que outra não poderia ser a interpretação pois a mencionada Resolução foi emitida pelo TSE como expressão de seu poder regulamentar, não podendo ir além das previsões da Lei e da Constituição Federal.[6]
No ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello:
O texto constitucional brasileiro, em seu art. 5o, II, expressamente estatui que: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Note-se que o preceptivo não diz “decreto”, “regulamento”, “portaria”, “resolução” ou quejandos. Exige lei para que o poder público possa impor obrigações aos administrados. É que a Constituição brasileira, seguindo tradição já antiga, firmada por suas antecedentes republicanas, não quis tolerar que o Executivo, valendo-se de regulamento, pudesse, por si mesmo, interferir com a liberdade ou a propriedade das pessoas.[7]
Desse modo, o TSE apenas pode estabelecer normas que não inovem em relação ao estabelecido nas leis, sob risco de violação da Constituição federal. No presente caso, não poderia o Tribunal criar uma norma que vedasse o recebimento de contribuições para as frentes parlamentares em referendos quando a lei apenas proíbe o benefício aos partidos políticos em eleições.
Interpretação teleológica
Ainda que a tese acima fosse completamente rechaçada, seria necessário interpretar a Resolução do TSE nº 22.041/2005 levando-se em consideração a finalidade da norma que regulamenta.
O texto do dispositivo constitucional deixa claro que sua finalidade é a proteção dos princípios que enumera em seu caput e, em especial, a soberania nacional. Nesse sentido, ensinam Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins:
Este inciso é uma decorrência do estipulado no caput do artigo, quando diz que a criação dessas associações resguardará, entre outros princípios, a soberania nacional.
O fato de receber recursos financeiros de entidades ou governos estrangeiros já evidenciaria uma dependência e mesmo uma subordinação a esses, o que tornaria o partido político uma cabeça de ponte de potências estrangeiras dentro do território nacional. Portanto o inciso proíbe tanto o recebimento de recursos financeiros, o que levaria a uma subordinação implícita, quanto a expressa posição de subalternidade (...).
É óbvio que a mera afinidade ideológica não gera essa prescrita subordinação, mesmo porque as ideologias são relativamente poucas e de uma forma ou de outra todos os partidos, na medida em que pretendam ter um apelo ideológico, devem filiar-se a uma dessas correntes mundiais de pensamentos e de ação.[8]
A adequada interpretação do artigo 10 da Resolução do TSE nº 22.041, de 4 de agosto de 2005, deve levar em consideração a finalidade da norma, qual seja, a proteção da soberania nacional.
Nesse sentido, nem todas as pessoas jurídicas sem fins lucrativos que recebem recursos do exterior estariam proibidas de aportar recursos às frentes parlamentares. Apenas quando o recebimento de recursos do exterior caracterizar subalternidade será proibida essa espécie de doação.
Em geral, os recursos advindos de instituições baseadas no exterior são destinados a projetos específicos, inexistindo cláusulas que estabelecem vínculo institucional orgânico entre a ONG e a financiadora. Ausente a subalternidade, afasta-se a aplicação do referido artigo 10.
Destaque-se, ainda, que a autonomia de diversas organizações fica evidente por meio de seus princípios e programas de ação, os quais não raro demonstram que o posicionamento em relação ao referendo foi adotado antes do recebimento de qualquer recurso do exterior.
De outro lado, tem sido considerada legal a contribuição de empresas multinacionais às frentes parlamentares. Desse modo, as representantes das multinacionais que produzem ou comercializam armas de fogo – estas, sim, subordinadas ao interesse de suas sedes estrangeiras – podem livremente contribuir para a campanha em prol do “não”.
Não se pode admitir que, sob a intenção de garantir igualdade entre as duas frentes parlamentares, uma Resolução do TSE acabe por proibir a livre manifestação do pensamento em nosso país.
Ora, se a proibição do comércio de armas de fogo será levada à manifestação popular, muito se deve à atuação das organizações não-governamentais, que há anos atuam legalmente formulando alternativas para o combate à violência, incentivando, inclusive, o desarmamento. E, justamente quando estas organizações conseguem a importante vitória de levar o tema a amplo debate democrático, que se seguirá de decisão popular sobre o tema, nada deve impedir a livre discussão de idéias com a sociedade em geral.
Conclusões
A interpretação do artigo 10 da Resolução do TSE nº 22.041/2005 deve ser feita à luz dos princípios constitucionais pertinentes e levando-se em conta seu caráter regulamentar, de norma que não foi emitida pelo Poder Legislativo.
Em primeiro lugar, deve-se considerar que o alcance do princípio da liberdade de expressão apenas pode ser delimitado por outras normas constitucionais. A disposição do artigo 17 da Constituição federal proíbe apenas o recebimento de certas doações destinadas aos partidos políticos, entre os quais não estão incluídas as frentes parlamentares constituídas para este referendo. Desse modo, as instruções emitidas pelo TSE, como a Resolução do TSE nº 22.041/2005, não alcançam as ONGs que apóiam as frentes parlamentares.
Além disso, o artigo 17 da Constituição Federal tem como finalidade proteger a soberania nacional. Nesse sentido, a interpretação teleológica da referida resolução afasta a aplicação da vedação estabelecida pela resolução a essas ONGs, visto que elas não representam qualquer risco para a soberania nacional.
Conclui-se, portanto, que a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional não proíbem a colaboração das organizações não-governamentais que recebem recursos do exterior às frentes parlamentares constituídas por ocasião do referendo.[9]
A proibição do comércio de armas de fogo e munições será o primeiro tema a ser submetido a referendo desde a promulgação da Constituição de 1988. Trata-se de um mecanismo de democracia direta, por meio do qual se expressa a soberania popular[10], a ser utilizado para discutir um dos problemas que mais afligem a população brasileira: a violência.
Neste momento fundamental para a consolidação da democracia no Brasil, é primordial que se garanta a liberdade de expressão.
* Denise Hirao é advogada, mestre em Direito pela Universidade de Notre Dame (EUA), sócia do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados e co-coordenadora da área Regional sobre Violência contra a Mulher do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem). Paula Raccanello Storto é advogada, sócia coordenadora da Área de Terceiro Setor do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados, membro do Núcleo de Estudos Avançados de Terceiro Setor da PUC-SP (Neats), do Comitê Pro Bono do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB-SP e do Instituto de Mediação e Arbitragem do Brasil (Imab).
[1] Ato da Mesa do Congresso Nacional, 20 de julho de 2005. Art. 1º. Para a realização do referendo previsto no § 1º do art. 35 da Lei nº 10.826, de 2003, sobre a comercialização de armas de fogo e munição no território nacional, poderão ser registradas pela Mesa do Congresso Nacional duas frentes parlamentares que representarão a dualidade de correntes de pensamento.
[2] Em recente decisão, o ministro José Delgado negou liminar à Frente Parlamentar Pelo Direito da Legítima Defesa, que queria impedir a realização de videoconferência transmitida pelo Interlegis, favorável à proibição do comércio de armas de fogo. Segundo notícia extraída do website do TSE: “‘Não visualizo ofensa à legislação eleitoral que abra espaço para concessão da liminar. A liberdade do debate vinculada às grandes questões do interesse nacional deve ser assegurada’, observou o ministro José Delgado em seu despacho. Os advogados da Frente Pelo Direito da Legítima Defesa sustentaram em representação (RP 785) ajuizada no Tribunal que o evento, promovido pela Frente Parlamentar Por um Brasil sem Armas era uma afronta ao princípio da igualdade de oportunidades entre os concorrentes do referendo de 23 de outubro próximo. Ao apreciar o processo, o ministro José Delgado afirmou que não existia prova de participação direta da Frente Parlamentar.” Fonte: http://www.tse.gov.br, visitada em 31 de outubro de 2005. Ver também Representação nº 781, relator Marcelo Henriques Ribeiro de Oliveira, decisão de 12 de agosto de 2005.
[3] Por exemplo, o artigo 24 da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997.
[4] “Processo legislativo é um conjunto de atos preordenados visando à criação de normas de Direito.” In SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros Editores, 15a Edição, 1998, São Paulo, p. 523.
[5] idem, p. 145-146.
[6] O TSE é competente para emitir “instruções” relativas ao referendo, nos termos do artigo 8o, III, da Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1998, que regulamenta a execução do disposto nos incisos I, II e III do art. 14 da Constituição Federal.
[7] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Malheiros Editores, 17a Edição, 2004, São Paulo, p. 312.
[8] BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. 2º Volume, Editora Saraiva, 1989, São Paulo, p. 608-609.
[9] Vale destacar, ainda, que a Convenção Americana de Direitos Humanos prevê em seu artigo 13 o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Desse modo, se esse direito não for assegurado pelas instâncias judiciais domésticas, pode-se apresentar um pedido de medida cautelar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. E, antes de qualquer decisão, o tema pode passar a ser acompanhado pela Relatoria de Liberdade de Expressão da Comissão.
[10] Constituição Federal, art. 14.
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