Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Artigos de opinião
Paulo César Carbonari* Pressuposto 1: desarmamento e violência
![]() Luis Felipe Florez sobre ilustração de Peter Kuper | ![]() |
A questão fundamental que está em debate quando se fala em desarmamento é encontrar mecanismos sociais para inibir a violência. Por isso a discussão sobre o desarmamento nos remete para a reflexão sobre a violência, suas manifestações e formas para sua redução.
A violência acontece num contexto social, econômico, político e cultural. Por isso para compreender o contexto da violência, indicamos pelo menos quatro componentes[1]: a) a violência tem raízes na desigualdade social e econômica (10% mais ricos com 47% da renda; 10% mais pobres com 0,7% da renda) – crise de sociabilidade; b) patriarcalismo e racismo alimentam a violência – crise cultural; c) domínio da racionalidade instrumental – crise da subjetividade; d) crime organizado, mercado e estado – crise sistêmica.
A fim de desenhar uma compreensão da violência, recorremos a Marilena Chauí, que define a violência como sendo “um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão e intimidação, pelo medo e pelo terror. A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade, como se fossem coisas, isto é, irracionais insensíveis, mudos, inertes ou passivos”[2].
A definição de Chauí é ampla e moderna, incorpora à idéia de violência a dimensão física e psíquica – acrescentaria espiritual. Além disso, entende ações que comportam humilhação, vergonha, discriminação, como sendo condutas violentas. Em outro aspecto, incorpora ao conceito a violência interpessoal e a violência social, além das dimensões estrutural e institucional da violência. Na linha de Chauí, violência é tratar seres racionais, sujeitos de direitos, seres livres, como sendo coisas. Neste sentido, a violência expressa-se como limite da racionalidade, como sua destruição, como destituição dos humanos de sua condição de dignidade, transformando-os em coisas ou redutíveis a tal.
Em termos sociológicos, a violência há que ser compreendida no contexto da lógica excludente do mercado (neoliberal). Esta lógica insiste em tratar cidadãos como clientes e, em conseqüência, excluir da condição de cidadania contingentes humanos cada vez maiores. A vigência de relações mercantis como determinantes das relações sociais leva ao isolamento, à exclusão, à competição, elementos que corroem as bases de sociabilidade e, em conseqüência, as condições de florescimento da ética e da política como tratamentos públicos de problemáticas comuns.
A existência de conflitos não pode ser confundida com a violência. Os conflitos tornam-se violentos a partir do momento em que perdem a possibilidade de serem resolvidos politicamente e se convertem em enfrentamento de força. Neste sentido, fugindo de uma concepção funcionalista das questões sociais, os conflitos não são desajustes. Eles são parte inerente ao processo sócio-histórico e, quando tratados de forma política, podem se converter em aprendizagem para a sociedade. No entanto uma sociedade que não desenvolve mecanismos de mediação política dos conflitos é uma sociedade que facilmente reconhece na violência uma saída quase natural do processo de socialização, rompendo contraditoriamente com as condições básicas de sociabilidade.
Partindo desta idéia, entendemos que os agentes da violência podem ser caracterizados, em linhas gerais, nos seguintes grupos: os indivíduos que produzem violência no grau direto de relações interpessoais; os grupos violentos, que agem de forma articulada e orquestrada na promoção do crime – crime organizado; e os agentes institucionais ou institucionalizados – violência (i-)legítima promovida pelos aparelhos policiais – que, em tese, se justificam como exclusivos no monopólio da força e, contraditoriamente, como os que deveriam agir para evitar e conter a violência em todos os sentidos –; além da violência estrutural promovida pelo mercado.
Entendemos que a violência é o fim da política, sem ser sua finalidade[3]. Ou seja, uma sociedade que esgarçou a tal ponto as relações e rompeu a sociabilidade constitutiva da interação é a mais propícia para a violência porque ela não mais tem os componentes necessários para enfrentar os conflitos nela existentes com o auxílio da política. Afinal, violência é um problema público, portanto merece tratamento público. Qualquer solução privada será sempre insuficiente e, em geral, inadequada.
Pressuposto 2: desarmamento e direitos humanos
Direitos humanos são exigências sociais, culturais e políticas, além de enunciados normativos (éticos ou jurídicos). Por isso falar de direitos humanos é falar de sua realização – o que carrega consigo sempre uma concepção. A realização dos direitos humanos é processo histórico de construção de mediações de interação e reconhecimento da dignidade humana de cada pessoa e de todas as pessoas. Neste sentido, este processo se inscreve na luta pela superação da dominação, da exclusão, da exploração, enfim, de tudo o que reduz à dignidade da pessoa[4].
Realizar direitos é, de modo especial, promover condições concretas para o exercício das liberdades individuais e das liberdades públicas, o que exige condições (formais e concretas) de igualdade e a promoção do reconhecimento como solidariedade. A realização dos direitos humanos exige ações integrais e que articulem o conjunto dos direitos humanos em sua interdependência, indivisibilidade e universalidade. Advogar direitos individuais como absolutos contra direitos sociais ou coletivos inviabiliza, na prática, a realização do conjunto dos direitos humanos; inviabiliza-se o conjunto, inviabiliza também os direitos específicos.
Neste contexto, se o debate sobre o desarmamento advogar o direito individual de decidir como sendo absoluto e descontextualizado, ficará em contraste com os direitos, anulando o próprio direito individual de decidir; se invocar o direito à legítima defesa, que pela própria legislação é sempre circunstanciado, dará por aceito que vivemos uma situação de ameaça permanente e sistemática, o que anula qualquer alternativa e inviabiliza o próprio argumento de invocá-lo para fazer frente à violência. O desarmamento, na perspectiva dos direitos humanos, é sinônimo de construção de bases alternativas de promoção da dignidade da pessoa em sua integralidade e complexidade. Desarmar é, neste sentido, promover os direitos de cada pessoa (individual) e de todas as pessoas (coletivo) a viver numa sociedade livre e justa, capaz de responder aos desafios que cada contexto lhe apresenta.
Pressuposto 3: desarmamento e cultura de paz
Cultura de Paz é cultura de não-violência, em todos os sentidos. É agir na construção de uma nova cultura de direitos humanos[5]. Esta nova cultura exige a reconstrução da subjetividade (de cada pessoa) e das institucionalidades (espaços e instâncias coletivas, desde as mais pequenas às mais amplas, incluindo-se o Estado). Uma tal cultura tem como móbiles a indignação e a solidariedade, atitudes genuínas de quem se propõe a agir na perspectiva da paz e da promoção dos direitos humanos.
Os valores e motivações da cultura de paz contrastam sobremaneira com qualquer perspectiva de armamento. Ora, por trás de uma arma certamente há sempre uma pessoa disposta a ferir ou matar, mesmo que seja por motivos nobres e legítimos.
Defender que o desarmamento desarma “homens de bem” e mantém armados os “bandidos” é enviesar o debate. Ora, “homens de bem” não existem, simplesmente porque não existem “homens de mal” (ou do mal). Mesmo que uma das opções éticas de qualificação das ações humanas seja o maniqueísmo, resulta simplificado demais resolver dilemas ético-morais com seu auxílio. Ítalo Calvino, em “O Visconde Partido ao Meio”[6], mostrou, na figura do visconde dimezzato, quão insuportável é conviver com o absoluta e completamente bom e quão divertido é conviver com o absoluta e completamente mau e que qualquer uma das alternativas não faz mais do que atazanar a vida de todos. Usar esta distinção como justificativa para sustentar posições no debate sobre o desarmamento soa anacrônico. Afinal, é por demais redutivo compreender situações tão complexas com saídas tão funcionais. Assim, é insustentável advogar o não desarmamento (ou, positivamente, o armamento) como saída para a proteção de “homens de bem”.
É estranha a defesa da necessidade de armar para garantir proteção. Ora, armas são instrumentos cuja finalidade é a produção de feridas ou morte. Armas não são feitas para outra coisa senão para isso. Sua perfeição está em produzir o melhor efeito possível: ferir ou matar. Um fabricante de armas precisa agir como Pedroprego, personagem de Ítalo Calvino, e fabricar armas perfeitas em sua finalidade. Ou seja, armas não tornam humanos mais humanos, visto que, como objetos da técnica que são, não têm finalidade prática. Confundir a finalidade dos objetos com a finalidade dos humanos é, segundo Aristóteles, confundir regiões completamente diferentes da racionalidade humana. Seria como esperar que um objeto que cumpre bem sua finalidade pudesse, ao ser usado, pelo seu simples uso, tornar mais perfeito o agente de seu uso.
Como esperar que objetos feitos para produzir o mal possam tornar bom quem os utiliza? Alguém dirá: mas a finalidade da ação de usar a arma é para produzir o bem, ou seja, proteger o agente que a utiliza, seus entes queridos, seu patrimônio. Ora, usuários de armas precisam aprender a usá-las com o máximo de perfeição (mesmo que isso nem sempre ocorra), a fim de fazer ver cumprida a finalidade do objeto e, de modo especial, a finalidade da ação. Neste caso, a finalidade da ação é, como dissemos, a suposta proteção do agente, atingida pelo cumprimento da finalidade do objeto: produzir ferimento ou morte. Isso leva a um imbróglio ético ainda maior. É como se pudéssemos esperar que o bem buscado pelo agente pudesse ser alcançado mesmo quando os meios empregados para sua consecução são maus. Explicitamente, fins e meios ficam sem comunicação, para não dizer que fins justificam meios, qualquer meio, inclusive meios maus. A tortura perfeita, buscada por Pedroprego, pode ilustrar essa posição.
Tudo isso pode soar ingênuo para posturas céticas, maniqueístas, apressadamente pragmáticas e marcadas pelo realismo social e político. É verdade que precisamos propor saídas legítimas e que respondam às demandas da realidade.
Todavia, é fundamental que, mais do que buscar soluções imediatas e fáceis, o debate seja posicionado de tal forma que seu núcleo esteja na discussão sobre que tipo de sociedade queremos, que tipo de seres humanos estamos construindo, que tipo de relações pretendemos consolidar, que futuro estamos construindo desde o presente.
* Paulo César Carbonari é coordenador Nacional de Formação do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).
[1] Uma abordagem mais aprofundada destes componentes e também do que se segue neste primeiro pressuposto desenvolvemos em CARBONARI, Paulo César. "Raízes da Violência". Revista Tempo e Presença, Rio de Janeiro: Koinonia, ano 27, nº 339, jan/fev 2005, pp. 07-17
[2] CHAUÍ, Marilena. "Uma ideologia perversa". Artigo publicado na Folha de São Paulo, Caderno Mais, 14/03/1999.
[3] Segundo ela: "A violência é, por natureza, instrumental: como todos os meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja. E aquilo que necessita de justificação por outra coisa não pode ser a essência de nada" (Cf. "Sobre a Violência". Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994). Recomenda-se leitura do texto "O conceito de violência em Hannah Arendt e sua repercussão na educação", de Valéria Fortes de Oliveira e Marcelo Rezende Guimarães. Texto disponível em www.educapaz.org.br/modules/wfsection/article.php?articleid=19.
[4] Aprofundamos mais a concepção de direitos humanos em CARBONARI, Paulo César. Direitos Humanos: uma reflexão acerca da justificação e da realização. In: CARBONARI, Paulo César; KUJAWA, Henrique Aniceto (Orgs). "Direitos Humanos desde Passo Fundo: Homenagem aos vinte anos da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo". Passo Fundo: CDHPF/EdIFIBE, 2004, pp. 89-109.
[5] Este argumento encontra-se melhor desenvolvido em texto de nossa autoria referido na nota anterior.
[6] CALVINO, Ítalo. "O visconde partido ao meio". Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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