Autor original: Luísa Gockel
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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“O terrorismo está ameaçando um dos pilares da nossa cultura: a idéia de que cada ser humano é único, inviolável e sagrado. (...) A Europa tem que perceber que deve ser protagonista nesta batalha.” O discurso proferido no início do mês por Franco Frattini, responsável pelo Diretório Geral de Justiça, Liberdade e Segurança da Comissão Européia, demonstra que os países da Europa ocidental passaram de espectadores atentos da paranóia norte-americana a vítimas do clima de medo que se instalou também no Velho Mundo. No rastro do temor causado pelos atentados em Londres e em Madri neste ano, o Diretório está preparando um Código de Conduta para que organizações sem fins lucrativos não sejam usadas para financiar atividades terroristas ou criminosas.
Com o título "Recomendações para os Estados-membros considerando um código de conduta para organizações sem fins lucrativos com a finalidade de promover práticas de transparência e responsabilidade", a Comissão Européia divulgou um esboço que já vem causando polêmica entre as entidades do terceiro setor. O documento contém uma série de medidas para controlar e fiscalizar a origem e o destino dos recursos de organizações da sociedade civil.
Tom Allen, do setor de advocacia da Rede de Organizações Não-Governamentais Britânicas para o Desenvolvimento (Bond), explica que, de acordo com a comissão que investigou os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova York, há evidências de que foram financiados por pequenas remessas de dinheiro através do sistema bancário legal e utilizando uma rede de organizações de caridade. Algumas organizações européias reclamam, no entanto, que as autoridades não comprovaram que existe nenhum caso deste tipo entre os países-membros da União Européia. “Fomos informados de que os serviços de inteligência dos governos encontraram indícios de que ONGs estariam financiando atividades terroristas. Entretanto nenhuma prova foi divulgada e nenhuma conexão concreta foi feita”, critica Allen.
A principal reclamação da Bond é que as medidas não são proporcionais ao problema. “O código de conduta para ONGs não pode ser introduzido apenas por causa do clima de medo entre a população. Medidas como essas devem ser adotadas em resposta a um determinado déficit de confiança e transparência entre organizações sem fins lucrativos”, defende.
Uma das medidas propostas pelo relatório é a elaboração de um registro público de todas as organizações que se beneficiam ou querem se beneficiar do financiamento público. As ONGs teriam que fornecer também informações de todas as suas contas bancárias. Para Paulo César Egler, da Academia Brasileira de Ciências e pesquisador da Universidade de Brasília, uma ONG deve ser vista, aos olhos da sociedade e da lei, como qualquer instituição, seja ela pública ou privada. Segundo ele, por esse motivo, deve estar sujeita às regras que regulam o funcionamento institucional. “Aliás, esta é a discussão que agora se processa no Congresso Nacional com o Projeto de Lei elaborado pelo Senado que impõe que as ONGs tornem públicas suas receitas e despesas, sejam elas de fontes públicas ou privadas, nacionais ou internacionais”, compara Egler.
O pesquisador também chama a atenção para a análise do propósito deste código e da tentativa de regulamentar essas organizações no âmbito da União Européia. “Se regulamentar significa, como sugerido na proposta do Código de Conduta, o estabelecimento de procedimentos que visem a assegurar e garantir a existência de transparência e confiabilidade das ações das ONGs, a proposta merece crédito. Entretanto, se significa estabelecer regras e procedimentos de controle que resultem em restrições na liberdade de ação das ONGs, então a proposta é problemática”, destaca Egler.
Jorge Durão, diretor-geral da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong), chama a atenção para a dificuldade de consenso na ONU em relação a questões de financiamento e desenvolvimento. Principalmente por causa da resistência dos Estados Unidos. “Sem resolvermos esta questão, nunca conseguiremos alcançar os Objetivos do Milênio. No caso específico das medidas da Comissão Européia, acho que, apesar de o discurso estar centrado na transparência, a preocupação é, na verdade, com o controle, pois no relatório não há medidas específicas nem nenhuma proposta concreta, como afirmou o documento elaborado pela Bond”, explica Durão.
O documento enviado pela Bond e por várias organizações européias à Comissão Européia é parte de uma consulta a entidades civis prevista no estatuto da União Européia. No caso do Código de Conduta, as organizações têm o direito de encaminhar críticas e sugestões no prazo de seis semanas. De acordo com o documento encaminhado pelo Conselho Nacional de Organizações Voluntárias (NCVO), no Reino Unido, a consulta deveria ser realizada num prazo de três meses, como prevê o estatuto.
A resposta enviada pela NCVO também critica fortemente a escolha do foco do terrorismo para a primeira tentativa de regulamentar as ONGs no âmbito da União Européia. De acordo com a carta da organização, “é desapontador que o documento não reconheça o nosso papel vital na preservação e construção do Modelo Social Europeu”.
Jorge Durão, da Abong, concorda. “De fato, a elaboração desse Código de Conduta está em perfeita sintonia com a inversão de prioridades que está acontecendo. O combate à pobreza perde espaço para o combate ao terrorismo”, diz.
Nolan Quigley, da NCVO, lembra, no entanto, que o Código de Conduta é apenas uma proposta e que não há garantia de que será colocado em prática. Principalmente porque precisa do apoio da sociedade civil. Ironicamente, segundo ela, o processo de consulta ficou longe de ser transparente. “Eles tentaram esconder a consulta no vazio mês de verão, e só durou seis semanas porque protestamos muito para que fosse prolongada”, critica Nolan.
Na proposta da Comissão Européia, há afirmações de que as organizações sem fins lucrativos são “extremamente vulneráveis” a serem utilizadas para financiar o terrorismo e a sofrerem outros abusos criminais. Para Nolan, isso é inaceitável, pois os poucos casos de que se tem notícia no Reino Unido foram resolvidos com muita eficiência pela Comissão de Caridade, a instituição reguladora. “Estamos sendo condenados injustamente”, reclama. E completa: “Essas medidas foram criadas por um diretório de justiça, e não pelo de emprego e questões sociais ou pelo de relações internacionais. Só esse fato já nos diz muito sobre a natureza da proposta”.
Tanto a natureza quanto o objetivo do Código de Conduta estão sendo questionados por inúmeras organizações. Elas temem que esteja por trás da desculpa da transparência uma tentativa de controlar e restringir a liberdade das organizações civis. Cécile Zieglé da Coordination SUD, da França, defende esta idéia. “É bem provável, pois há um clima geral de desconfiança”, afirma.
O assunto, quem sabe, estará em pauta neste mês, em Istambul, Turquia, onde será realizada a próxima assembléia do Fórum Social Europeu, que faz parte do processo do Fórum Social Mundial. Jorge Durão, que participa do Comitê Organizador do Fórum Social Mundial, também afirma que a questão do terrorismo está presente no FSM nos debates sobre desmilitarização e luta contra a guerra. “Entretanto não tive notícia de nenhuma atividade ou debate sobre 'ONGs e terrorismo'. Este tema é uma falsa questão levantada pela agenda dos neoconservadores norte-americanos”, dispara.
Cécile destaca outras duas questões polêmicas: a possibilidade de as medidas afugentarem possíveis doadores, concentrando-os no seio de algumas organizações maiores, e a discriminação em relação a organizações muçulmanas. “Há um anexo no documento com uma lista de indicadores de risco que faz claramente alusão ao perigo de as organizações serem ligadas à religião”, afirma. Segundo Nolan, da NCVO, ess é um ponto de extrema preocupação. No entanto, acredita, nenhuma organização, de nenhuma parte da União Européia, apoiará um código que discrimina ONGs de qualquer área geográfica ou que tenham tradição religiosa.
A tentativa de regulamentar o terceiro setor num território amplo e difuso esbarra na grande diferença cultural entre os Estados-membros. Um exemplo é que no Reino Unido a atividade religiosa é considerada caridade, diferentemente do que acontece na França. Nolan explica que o que se tenta fazer na política da União Européia é trabalhar o potencial dos países-membros para que fiquem mais próximos e sejam mais relevantes na vida dos cidadãos. “Esta proposta surgiu da desconfiança no nosso setor. Nós só apoiaríamos uma legislação que fosse criada a partir da vontade de trazer para perto das decisões políticas a sociedade civil”, defende.
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