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Ativismo contra o retrocesso

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião

Jorge Beloqui*







Ativismo contra o retrocesso


As Comissões do Enong [Encontro Nacional de ONG/Aids] decidiram pelo lema "ativismo contra o retrocesso" em abril deste ano. A perspectiva foi de que tanto no plano internacional, por causa das políticas conservadoras dos EUA, da igreja católica e dos fundamentalismos religiosos, quanto no plano nacional, com a crise sem precedentes de fornecimento de antirretrovirais (ARVs) e preservativos, entre outros insumos, estávamos tendo que nos movimentar para preservar o que tinha sido ganho até o momento. Realmente estamos avançando pouco: movimentamo-nos muito para não perder o que temos.

Na área da prevenção, o conservadorismo por meio da Usaid [Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional] tentou avançar inclusive no Brasil mediante a imposição de novas cláusulas que aprofundariam a vulnerabilidade dos trabalhadores do sexo. Isto, é claro, contra qualquer fundamentação técnica ou de direitos humanos. No Ministério da Saúde, o fornecimento de preservativos diminuiu sensivelmente. A causa explicitada foi a existência de entraves para as licitações depois da Operação Vampiro e, agora, os problemas de qualidade.

Para nós, só houve falta de compromisso com a prevenção, e os obstáculos burocráticos se aliaram ao interesse de não executar o orçamento para assim produzir um maior superávit primário, visando ao pagamento dos juros estabelecidos pelo Banco Central, função primordial da existência deste governo e do anterior.

Acrescente-se o fracionamento e a falta de ARVs para evidenciar a escassez de planejamento, de estoques e de compromisso do Ministério da Saúde com o que foi chamado de “o melhor programa de aids do mundo”. Enfrentamentos internos dentro do ministério, seja por nomeações de partidos diferentes que pouco se entendiam entre si, ou por grupos dentro do mesmo partido, ou por falta de matéria-prima, ou por pouca qualidade desta, evidenciaram quão frágil é o compromisso com a saúde destas autoridades. Não houve sequer uma nota pública do Ministério da Saúde antecipando a falta prevista de ARVs e, tampouco, depois de deslanchada a crise, uma nota pública para as pessoas com HIV, familiares, amigos e para os profissionais que tratam de nós sobre a previsão de regularização. Houve uma nota tardia sobre os preservativos.

A sustentabilidade da política de fornecimento universal de ARVs foi encampada pela mobilização das ONGs/aids pelo licenciamento compulsório. O Legislativo, como evidenciado através da aprovação do PL 22 [que trata do não-patenteamento das medicações para HIV/aids] em todas as Comissões da Câmara de Deputados, também foi sensível à necessidade do aumento da autonomia do Brasil na produção de medicamentos importantes para a saúde dos seus cidadãos. Estas mobilizações levaram o debate às páginas dos jornais. Porém, alguns profissionais, para desqualificar o licenciamento compulsório, colocam-se contra o acesso universal aos ARVs, pondo objeções assim para a existência do SUS. Surpreende esta posição no momento em que os países do G8 comprometem-se com o acesso universal no mundo a ARVs para 2010. Se desejarmos um país moderno e com sustentabilidade do direito à saúde, que colabore com o acesso universal, o Brasil deverá começar a fabricar logo a matéria prima e as medicações anti-retrovirais.

No âmbito nacional, a resposta do governo a pedidos de licenciamento compulsório constituiu-se de diversos ultimatos, negociações que caíram no esquecimento, e o anúncio de contratos de conteúdo e existência nebulosos. Este engodo é o resultado de uma política cujo principal objetivo parece ser o marketing, os factóides, e visa ocultar o que é o centro da gestão atual: o pagamento em dia dos juros elevados. Esta política míope deixa de considerar o aumento da demanda global presente e futura, por causa do feliz aumento de acesso.

Mas o descompromisso com a saúde não é patrimônio exclusivo do governo federal. Governos estaduais e municipais, co-responsáveis pela saúde segundo a lei, também pouco fizeram, por exemplo, nesta falta de ARVs. Que saudade de épocas de brilho das gestões municipais como a de Santos, que em janeiro de 1996 iniciou o fornecimento de terapia tríplice, ou a de Campinas, que seguiu em março desse mesmo ano! Que longe estamos de épocas de compromisso das gestões estaduais como a de 1995, quando o Programa de Aids do Estado de SP realizou uma compra de emergência de Ganciclovir devido à falta deste medicamento anunciada pelo governo federal, ou de novembro de 1996, quando decidiu fornecer a terapia tríplice, em parte forçado pela quantidade de sentenças judiciais que o obrigavam a este fornecimento.

Isto nos leva ao tema do ativismo e da organização de nosso movimento. Uma palavra sobre as representações junto aos governos: nunca participamos tanto de órgãos colegiados, sejam eles consultivos ou decisórios. E nunca antes tivemos uma crise de acesso à prevenção e aos ARVs como agora. É necessário refletir sobre a qualidade desta participação: participamos das decisões realmente importantes? Qual é a qualidade desses órgãos? Qual é a qualidade de nossa participação? Será que participar do Estado é como perseguir o horizonte, procurando cada vez mais instâncias? Como ficará nossa organização autônoma, ainda muito fraca?

Uma característica da resposta brasileira à aids, ou, melhor dizendo, de nossa concepção da saúde como sendo um contínuo de prevenção e assistência, se impõe internacionalmente. Na recente conferência da IAS [International Aids Society], no Rio de Janeiro, só se falava nestes termos, acesso à prevenção e à assistência, indissoluvelmente ligadas. Que bom que estão longe também os tempos em que as agências de cooperação internacionais falavam que os países em desenvolvimento só deveriam fornecer prevenção e nada de assistência, porque os custos eram proibitivos! Alguém se lembra do livro "Confronting Aids", publicado pelo Banco Mundial em 1998, onde se combatia ferozmente o acesso a ARVs para os habitantes dos países em desenvolvimento?

Devemos solidificar este contínuo em nosso movimento também: às vezes pensamos - como muitos - que saúde é somente assistência, medicação, cura... Mas saúde também é prevenção. Direito à assistência e à prevenção para as pessoas com HIV e à prevenção para todos, em particular para os grupos mais vulneráveis. Entender e agir neste contínuo é também agir na solidariedade. Porque a idéia da assistência como superior à prevenção pode nos levar a pensar que os portadores de patologias crônicas, como as pessoas com HIV, devem ter mais direitos que os grupos vulneráveis ao HIV, sejam gays, usuários de drogas injetáveis (UDIs), trans, trabalhadores do sexo ou outros. Inversamente, as organizações ativistas dos grupos mais vulneráveis devem tomar os programas de prevenção como ações essenciais.

Internamente, observamos um crescimento do sectarismo, da fragmentação, a falta de uma visão e um compromisso com o coletivo da aids. Presenciamos, desde o último Enong, brigas entre aqueles que contrapunham as pessoas com HIV aos gays pela distribuição de verbas, ou entre pessoas de diversas regiões por acesso a fundos de agências, ou na concorrência feroz entre pessoas, ONGs e estados por representações junto a órgãos do governo. Tudo isso sem consistência política, sem programas de ação nos colegiados e sem compromisso de consulta. O paroquialismo com as conseguintes exclusões põe em evidência a despolitização. Será necessário muito ativismo e solidariedade para conseguirmos superar o sectarismo, inimigo da politização.

O desafio é grande: deveremos falar da totalidade da aids, das pessoas com HIV e dos grupos mais vulneráveis, da falta de preservativos e de medicação, dos problemas de todos os estados e municípios. Mas nosso movimento já o fez! Por exemplo, ganhou mais autoridade e respeito quando, em 8 de setembro de 1999, se movimentou para a suplementação de verbas para todos os insumos de saúde importados, e não só da aids. Ou quando, em 26 de agosto de 2004, se manifestou pelo estrito cumprimento da EC 29 [emenda constitucional que estabeleceu percentuais mínimos de aplicação em ações e serviços públicos de saúde no período de 2000 a 2004]. Esta visão ampla é particularmente importante nestes momentos. Com efeito, a revelação da corrupção nos mais altos poderes do Brasil e nos partidos do governo e de fora deste mostra que devemos continuar sem hesitar em nosso caminho em prol da saúde e da vida dos brasileiros.

Na busca desesperada por sustentação, o governo enfraquecido pensa em aprofundar o tributo ao capital financeiro, incrementando o superávit primário, aumentando talvez a percentagem de desvinculação de verbas da União (como deseja o Ministério da Fazenda) e a não execução orçamentária. Portanto também será necessário nos movimentarmos pelo estrito cumprimento da EC 29, contra o déficit nominal zero e pelo fim da desvinculação de verbas da União. Contaremos nisto com o apoio dos legisladores ou da Frente Parlamentar contra a Aids ou da Frente Parlamentar pela Saúde? No ano próximo haverá eleições nacionais e não haverá Enong. Seria bom que as propostas aqui aprovadas servissem para formular a base de um programa de ação em aids a ser apresentado para os candidatos.

A Organização do XIII Enong propõe que estes temas sejam abordados aqui, para sairmos mais fortalecidos e solidários. Com esta finalidade, será fundamental lembrar, como disse Mário Scheffer, a chama de compromisso que arde em nós por uma sociedade melhor e que nos levou a nos engajarmos nesta luta. Ao mesmo tempo, o ativismo na luta contra a aids e pelo direito à saúde adquire, no momento atual, uma dimensão que ultrapassa as fronteiras da sua especificidade, porque constrói, em parte, a esperança e a mudança, abandonadas por este governo. Ativismo contra o retrocesso!

* Jorge Beloqui é integrante do Grupo de Incentivo à Vida (GIV), www.giv.org.br, e membro do Comitê Nacional de Vacinas. Artigo publicado originalmente pela Agência de Notícias da Aids (www.agenciaaids.com.br)





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