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Os dois lados da moeda

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Os dois lados da moeda


Há duas semanas, a Funredes, ONG da República Dominicana voltada para uso de novas tecnologias de comunicação e informação, suspendeu suas atividades devido a falta de recursos. Um de seus financiadores teria deixado de repassar verbas, e agora a entidade funcionará apenas como centro de estudos.

O problema não é restrito a ONGs estrangeiras. Em maio deste ano, o Viva Rio, uma das maiores organizações brasileiras, demitiu 29 pessoas para conter despesas. O motivo foi o atraso no repasse de verbas por parte de apoiadores internacionais.

Daniel Pimienta, presidente da entidade caribenha, explica, em comunicado, que o problema é global e que o acontecido com a Funredes é apenas mais um caso de problemas de financiamento do terceiro setor. O diretor executivo do Viva Rio, Rubem César Fernandes, apontou à época uma das dificuldades: o direcionamento de verbas da cooperação internacional para áreas consideradas críticas, como os países asiáticos atingidos pela tsunami ou o Iraque e o Afeganistão. “As instituições internacionais que patrocinam projetos podem ter dirigido a verba para essas áreas, já que não é comum haver atrasos”, disse.

Além da “concorrência” interna e externa, as ONGs possuem outros obstáculos para obter financiamento no exterior. À lista é possível acrescentar a politização de verbas e até mesmo a diminuição de recursos para os próprios financiadores externos.

Origem dos recursos

Até a década de 80, o financiamento internacional seguia um padrão muito semelhante ao tipo de assistencialismo praticado por organizações de tradição religiosa. De acordo com Sérgio Haddad, diretor de relações internacionais da Associação Brasileira de ONGs (Abong), esse modelo está sendo superado. “Era um padrão problemático para os países do Sul, pois se baseava na idéia de desenvolvimento dos países do Norte. Geralmente era uma ajuda assistencialista de combate à pobreza. Mas está mudando, na medida em que os países estão se redemocratizando”, explica Haddad, que também é diretor da Ação Educativa.

Nos anos 90, o cenário internacional era outro. Houve uma realocação dos recursos europeus para os países do Leste da Europa, e a atenção do mundo se voltou para a intensa pobreza do continente africano. “Há um deslocamento em termos geográficos até mesmo dentro do Brasil. Muitas organizações só apóiam as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Em termos mundiais, os recursos têm migrado de países com o processo democrático em curso para países onde o Índice de Desenvolvimento Humano é menor”, analisa Haddad.

A situação do Brasil neste cenário é ambígua, de acordo com Thereza Lobo, superintendente executiva da Comunitas e consultora do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do Banco Mundial. “Os critérios utilizados para direcionar o financiamento geralmente são econômicos, como o PIB per capita. Sendo assim, o Brasil não está tão mal. Mas se houvesse um ranking na América Latina, o Brasil se sairia bem, pois suas organizações da sociedade civil estão se fortalecendo”, acredita.

Esta instabilidade do financiamento internacional gerou a necessidade de as organizações da sociedade civil começarem a diversificar as fontes dos recursos e a colocarem na sua pauta de ação a necessidade de sustentabilidade em longo prazo. Uma das alternativas para diminuir a vulnerabilidade do terceiro setor é a diversificação. “É preciso que as organizações busquem variar as fontes dos recursos, buscando também o financiamento público e grupos apoiadores na sociedade. As ONGs que tiverem maior presença pública terão maior poder de negociação com os órgãos financiadores”, afirma Haddad.






`Origem dos recursos de ONGs no Brasil´. Fonte: Mapa do Terceiro Setor (Cets-FGV)
"Origem dos recursos de ONGs no Brasil".
Fonte: Mapa do Terceiro Setor (Cets-FGV)

Mesmo sendo difícil dizer com exatidão qual é a participação das diversas fontes de financiamento nas receitas das ONGs, as pesquisas apontam para um aumento do fomento público. De acordo com um levantamento realizado em 1995 pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser) o Estado era responsável por 14,5% do financiamento das ONGs. Segundo o Mapa do Terceiro Setor da Fundação Getúlio Vargas, esse percentual, em 2005, é de 21%. “A dificuldade maior em relação aos recursos públicos está em participar da decisão de como serão direcionados”, diz Haddad.


Por causa de fatores variados - como a descontinuidade das políticas públicas e a ausência de mecanismos transparentes de direcionamento dos recursos - as organizações internacionais de financiamento tornaram-se mais atraentes. O ritmo de transferência de recursos entre nações do Norte e do Sul, no entanto, é desfavorável para os países mais pobres: a cada ano, uma soma expressiva de dinheiro deixa os países do Sul em forma de pagamento de dívida externa, lucros de multinacionais, prejuízos causados pelo protecionismo dos mercados, entre outras formas.

Para equilibrar o fluxo de dinheiro e garantir o alcance dos Objetivos do Milênio, alguns mecanismos como o proposto pelo Chanceler do Tesouro Britânico, Gordon Brown, prevêem cotas de ajuda para os países pobres. Outra forma seria o compromisso dos países ricos de aplicar 0,7% do seu Produto Interno Bruto (PIB) para a promoção do desenvolvimento. “Esse percentual pode ser direcionado a várias entidades, direto para os governos ou ainda em forma de doações para organizações do Norte que apóiam entidades do Sul”, explica o diretor da Abong. Haddad, no entanto, é cético em relação às bases dessa argumentação. “Essa discussão não avança. As metas são estabelecidas, mas quando entramos no mérito da Organização Mundial do Comércio e do protecionismo dos países ricos, não contamos com o envolvimento necessário”, critica.

Critérios

Os financiadores dizem que os critérios utilizados para escolher quem receberá seus recursos variam de acordo com o edital de seleção e o objetivo da parceria. Alguns parâmetros, entretanto, estão presentes na maioria dos processos de escolha. Entre eles está o da comprovação de capacidade de execução da proposta e experiência no assunto.

Uma das principais financiadoras de projetos sociais do mundo, a Fundação Ford, afirma que não há regra fixa para a escolha de seus parceiros, mas possui ressalvas. “Em todo o mundo, a Fundação só libera verba para locais onde já atua ou conhece seus parceiros”, esclarece Ana Toni, diretora da fundação no Brasil. Com isso descarta as acusações de que os financiadores se voltam para eventos com grande atenção da mídia, como foi o caso da destruição causada pelo furacão Katrina, que devastou a cidade de Nova Orleans, no sul dos Estados Unidos, há cerca de um mês. “É inegável que há um grande apelo para esses problemas, mas nosso orçamento é bianual. Portanto já sabemos quanto teremos de dinheiro para atuar nesse período”, diz Toni.

No caso da entidade fundada nos anos 1930 por Henry Ford, há uma reserva para casos excepcionais. Sessenta por cento do orçamento da fundação fica com a sede, em Nova Iorque, e é utilizado para despesas internas e casos excepcionais. O restante é dividido de forma praticamente igual entre os escritórios espalhados pelo mundo. No Brasil, o orçamento anual é de US$ 13 milhões e há 200 parceiros. Quaisquer recursos extras são liberados apenas depois de reuniões do conselho.

Toni confima que realmente a quantidade de recursos disponíveis para as organizações brasileiras diminuiu, pelo menos no que se refere à fundação que representa. Mas, segundo ela, as causas fogem da alçada da direção. Os fundos estão investidos em ações cotadas na Bolsa de Nova Iorque, cuja desvalorização acabou diminuindo o poder de investimento da fundação. Em relação ao Brasil, o problema é ainda maior, pois a valorização do real frente ao dólar diminuiu a quantidade de moeda brasileira disponível para financiamento no país.

Há, porém, quem dê como certa a presença de fatores políticos na distribuição do dinheiro da cooperação internacional. “Normalmente as organizações internacionais têm uma perspectiva conservadora. É um olhar impulsionado pelo atual modelo de globalização, por uma ótica de terceirização dos serviços públicos, valores de mercado, produtividade em detrimento de valores como solidariedade, valorização dos direitos sociais, direitos humanos. Isso acontece porque entidades como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento possuem muito dinheiro proveniente dos países do norte, principalmente dos EUA”, acredita Haddad.

Thereza Lobo concorda que financiamentos também são uma forma de se fazer política. “O financiamento pode ser usado como pressão. Evidente que sempre há uma influência quando a colaboração é bilateral. Ao mesmo tempo, porém, as ONGs precisam ter preparo para enfrentar situações dessa natureza, e também cabe ao governo brasileiro dizer não a certas condições”.

As armadilhas

A polêmica causada em maio deste ano pela agência do governo norte-americano Usaid, ao suspender o financiamento de todas as organizações que defendem profissionais do sexo, também chama atenção para um outro aspecto da questão do financiamento: a sua utilização como forma de pressão política ou ideológica. Haddad explica que todos os recursos sempre têm uma dose de influência da ideologia ou dos interesses do financiador. “Seja porque ele tem uma expectativa em relação a alguma temática ou porque tem um ponto de vista conservador em relação a algumas questões. Isso é um problema porque nem sempre a idéia de parceria é respeitada”, diz.

Esse tipo de pressão pode partir até mesmo de um associado. Segundo Haddad, quem apóia o Greenpeace, por exemplo, está ligado a um projeto político. Se a organização se distancia um pouco da sua missão por algum motivo, pode perder seus apoiadores.

As entidades que captam recursos diretamente junto à população têm um pouco mais de autonomia, de acordo com Haddad. “Só que acabam sendo mais assistencialistas, porque é mais fácil captar recursos mostrando imagens de pobreza ou de outras situações chocantes”, observa.

Uma situação que pode desequilibrar o fluxo internacional dos recursos é a de catástrofe natural. No caso do maremoto na Ásia, em dezembro do ano passado, houve uma onda mundial de solidariedade para ajudar as vítimas. Em função disso, muitas organizações chamaram atenção para outros lugares que têm uma demanda constante de ajuda internacional, mas não alcançam tanto espaço na mídia.

O apelo desses desastres na captação de recursos pode ser medido pela quantidade de dólares arrecadados pela Cruz Vermelha norte-americana. Desde que o furacão Katrina passou por Nova Orleans – ou seja, há um mês –, 400 mil pessoas doaram um total de US$ 56 milhões.

A questão da visibilidade, segundo Thereza Lobo, é conseqüência da necessidade de as ONGs terem que provar a sua competência em realizar os projetos para assim garantir a continuidade dos financiamentos. “Muitas entidades, no entanto, ficam tão preocupadas com a realização de suas metas sociais que não param para pensar na necessidade de divulgar o seu trabalho”, explica Haddad.

Alternativas

Frente às dificuldades, algumas organizações, principalmente do exterior, já apontam diferentes soluções para superar a falta de recursos. O Instituto de Pesquisa Synergy, da Inglaterra, fez um levantamento com organizações daquele país para saber se a internet tinha alterado a forma de captação de recursos. Uma em cada três entidades consideradas grandes (com orçamento superior a 10 milhões de libras por ano) afirmou que passou a pedir doações pela rede mundial de computadores. O estudo mostrou ainda que nos próximos seis meses, 20% delas pretendem colocar uma página na rede, 27% das consideradas de médio porte planejam partir para a doação direta via internet, enquanto 26% das pequenas esperam conseguir produzir boletins informativos em breve.

Entretanto todas têm consciência de que não existe fórmula mágica. “A cada 100 mil visitantes, dez mil se envolvem de maneira regular com a entidade, cinco mil podem vir a doar algum dinheiro, mil vão se associar e contribuir regularmente e apenas uns poucos nos darão alguma grande quantia”, calculou Jon Parsons, diretor da Woodland Trust, para o jornal The Guardian.

Propostas não faltam. Uma delas é a criação de um sistema fiscal internacional que distribua de forma eqüitativa os recursos entre os países. Essa é uma idéia conjunta da Abong e da Coordinación Sud, espécie de associação de ONGs européias.

No Brasil, as parcerias entre ONGs e Estado estão amadurecendo, o que pode ser considerado uma boa notícia. Iniciativas como o Programa Nacional de Combate à Aids, do Ministério da Saúde, são exemplos de boas parcerias entre o primeiro e o terceiro setores. Os recursos não são simplesmente doados, mas sim trocados por serviços. “Deve haver uma combinação de interesses, como o caso das ONGs que trabalham com aids no Brasil. Elas tratam os pacientes de forma mais qualitativa do que o atendimento médico público. Foi uma parceria muito bem-sucedida”, opina Haddad.

Luísa Gockel e Marcelo Medeiros

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