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Igualdade adiada

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original:

Guacira César de Oliveira e Iara Pietricovsky*







Igualdade adiada


Em 1995, o governo brasileiro assumiu compromissos de combate à pobreza e à exclusão social tanto na Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento Social (CMDS), em Copenhague, como na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim.

Em 2000 – no momento da revisão e do balanço desses compromissos nas Sessões Especiais das Nações Unidas –, o Observatório da Cidadania (edição brasileira) apresentou avaliação do desenvolvimento social nos cinco anos que se seguiram a essas conferências.

Foram lançadas as seguintes questões: em que medida podemos, efetivamente, dizer que as políticas sociais não foram apenas “residuais e subsidiárias” da política econômica? Até que ponto essas políticas não se resumiram a distribuir prêmios de consolação aos perdedores da nova ordem?

A premissa apresentada era a de que o desenvolvimento social não pode estar submetido aos mercados. Os autores alertavam que a exacerbada valorização dos mercados nos anos 1990 levou à crença de que estes são capazes de resolver as questões sociais e que lutar contra sua lógica e sua imposição é inútil.

Os processos internacionais como os de Copenhague e de Pequim apresentavam uma outra visão: a de que os mercados não são portadores cegos das soluções, mas instrumentos que as sociedades criam para organizar sua vida produtiva.

Fernando Cardim e Célia Lessa afirmam que “mercados são instrumentos, não fins em si mesmos”. Colocar os mercados como base orientadora das relações é uma mistificação patrocinada pelo FMI e por outras instituições financeiras multilaterais. Na verdade, o mercado discrimina, privilegia e exclui seres humanos dos benefícios que, eventualmente, produz.

Pensar políticas públicas no espírito de Copenhague e de Pequim significa ir além dos mercados. Implica pensar o desenvolvimento social como finalidade do progresso econômico e abandonar a crença de que desenvolvimento social é corolário natural do desenvolvimento econômico, independentemente do aprofundamento da democracia política.

Dessa forma, Cardim e Lessa concluíram que a agenda positiva para um novo Estado requer compromisso firme com o desenvolvimento social, uma nova percepção quanto ao papel das políticas públicas e da sua relação com a sociedade civil organizada. Isso significa radicalizar a democracia e fortalecer o Estado para que exerça seu papel moderador, com ampliação da democracia participativa.

Durante a década de 1990, o Estado brasileiro adaptou-se aos movimentos da mundialização do capital, sob a hegemonia dos Estados Unidos da América. A globalização visou capacitar o Estado para ser o suporte da competitividade do capital internacional, com prejuízo de sua função de promotor do desenvolvimento interno.

No Brasil, a privatização efetivou a transferência do patrimônio estatal para empresas privadas, do público para o mercado, atingindo o coração do Estado. Ou seja, o patrimônio construído coletivamente pela sociedade brasileira foi apropriado privadamente, engrossando, na maioria das vezes, o patrimônio das multinacionais.

O Observatório da Cidadania de 2000 (edição brasileira) analisou o processo de reprodução da desigualdade, no contexto brasileiro. Fundada na história colonial, escravagista e patrimonialista, a desigualdade socioeconômica continua excluindo um percentual significativo da população dos benefícios sociais, culturais, econômicos, tecnológicos e científicos disponíveis.

Ao final, o relatório – depois de analisar a política macroeconômica e as políticas setoriais relacionadas aos direitos universais, tais como educação, saúde e as dimensões de raça e gênero – afirma:

“A conclusão central de tudo o que se discutiu aqui é irrefutável: o governo brasileiro não honrou o compromisso essencial de Copenhague. A despeito da implementação de programas setoriais importantes, prejudicada pela conjuntura adversa da economia brasileira e das limitações impostas pelo acordo com o FMI, nem o mais panglossiano dos avaliadores poderia deixar de perceber que as políticas sociais continuaram subordinadas à lógica da política econômica”.

A era Lula

Em 2003, cercado de grande expectativa, Luís Inácio Lula da Silva chegou ao poder com forte aprovação popular, acompanhada da demanda explícita por mudanças na condução do país. Os primeiros dois anos foram de contenção e de tentativa de entendimento, por parte dos movimentos sociais, das tendências e dos embates entre as diferentes forças políticas e econômicas.

Passados os dois primeiros anos, ficou clara a opção do governo Lula pela continuidade do modelo anterior na política macroeconômica, ou seja, de subordinação das políticas sociais à política econômica. Acompanhada, paradoxalmente, pelo estímulo à mobilização da sociedade civil organizada para uma participação política mais ativa na formulação de políticas públicas.

Como mudar padrões tão profundos de desigualdades sem a alteração da política econômica? Esse é o grande desafio: é possível um sistema no qual o acesso às políticas universalizantes seja garantido para todos e todas? No qual grupos sociais historicamente excluídos e discriminados tenham acesso diferenciado ao Estado para superar as imensas desigualdades? Ou continuaremos mantendo os perversos padrões de desigualdade e pobreza que sempre caracterizaram a sociedade brasileira?

A desigualdade no Brasil está estruturada numa complexa matriz moldada pelas dimensões de classe, raça, etnia e gênero. A questão é que as políticas públicas têm sofrido retração em função do redirecionamento dos gastos públicos para o ajuste fiscal. Essa lógica, iniciada no governo Collor (1990/1992), atravessou o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995/2002) e persiste no governo Lula.

Mesmo tendo criado, pela primeira vez, duas secretarias especiais no primeiro escalão para transversalizar a perspectiva de gênero e étnico-racial em todas as políticas públicas, a prioridade do atual governo para o ajuste fiscal torna praticamente inócuo tal feito. Vale perguntar se os Estados nacionais, na periferia do planeta, possuem autonomia para deliberar suas políticas de forma a combater as desigualdades históricas e aquelas criadas e aprofundadas pela lógica do sistema neoliberal hegemônico.

Passados mais cinco anos, qual o diagnóstico das políticas públicas no Brasil, segundo os mesmos conceitos apresentados no relatório de 2000? As políticas atacaram questões estruturais da desigualdade e da pobreza ou foram “residuais e subsidiárias”? Até que ponto continuaram a ser premiação aos perdedores?

Em relatório produzido, recentemente, pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, podemos ter um quadro do estrangulamento orçamentário do país, em decorrência dos vários planos de ajuste econômico realizados para acalmar o sistema financeiro internacional.

O relatório afirma que, nos últimos dez anos – 1995 a 2004 –, o país conseguiu significativo êxito no combate à inflação mediante a adoção não só de medidas de política fiscal, mas também de política monetária restritiva, na qual a manutenção de taxas de juros altos desempenhou papel crucial. Entretanto, esta política provocou forte impacto nas despesas orçamentárias e no déficit público nominal. Acrescente-se à política de juros altos a geração do superávit primário de 4,25% do PIB.

O resultado dessas opções é o estrangulamento do orçamento e a inviabilização de investimentos e da implementação das políticas públicas que responderiam aos acordos internacionais firmados durante as conferências mundiais patrocinadas pela ONU.

Dívida pública

Segundo aquele relatório, de 1995 a 2004, a União gastou US$ 267,89 bilhões, em valores de dezembro de 2004, em despesas com juros e encargos da dívida pública. Esse montante equivale, no mesmo período, em valores reais, a:

· 4,5 vezes o total dos investimentos realizados pelo país;
· 25,7 vezes o total de gastos com segurança pública;
· 10 vezes o total de gastos com assistência social;
· 3 vezes o total de gastos com educação;
· 43% do PIB estimado para 2004;

Os gastos com juros e encargos da dívida, a dívida líquida do governo federal e do Banco Central passou de 12,90% do PIB em dezembro de 1994, para 32,43% em 2004. Mais do que o dobro, apesar do pagamento dos juros e de amortizações extraordinárias com a utilização de recursos originários das privatizações havidas no período.

Renda dos assalariados

No período, a renda média real do trabalhador assalariado caiu 21% e a taxa de desemprego mensal média aumentou 31%.

A complexidade do problema das desigualdades no Brasil e a necessidade de enfrentá-lo em suas várias dimensões fica evidente quando se analisam os dados desagregados por raça e gênero. Em 1993, os brancos ganhavam em média 3,6 salários mínimos e os negros, 1,7 — uma diferença de 111,7%.

Dez anos depois, em 2003, os resultados haviam mudado pouco: os brancos ganhavam em média 3,9 salários mínimos e os negros, 1,93. A diferença da média salarial de brancos e negros passava, então, para 102%, a despeito de todos os esforços empreendidos pelos afrodescendentes na área da educação.

Nesse período, a população negra elevou de 4,5 para 6 anos a sua média de anos de estudo, sem obter, entretanto, benefícios proporcionais a tais investimentos e sem conseguir superar a diferença histórica de 2 anos a menos de escolaridade em relação à população branca.

A análise interseccional das dimensões de gênero e raça sobre os mesmos dados revela que, na média, as trabalhadoras recebem a metade dos salários dos homens; que a renda das mulheres brancas é duas vezes a da mulher negra; e que os trabalhadores brancos ganham 3,8 vezes o salário das trabalhadoras negras.

Nessa década, não houve alteração significativa na distribuição de renda, pelo que se observa no percentual de participação dos 10% mais ricos, dos 20% mais pobres na renda total e no coeficiente de Gini.

A renda dos assalariados, tanto o rendimento real médio mensal quanto o total do rendimento assalariado como proporção do PIB, caiu no período analisado. O rendimento real médio dos assalariados, medido pelo Seade/Dieese/PED no período de 1995 a 2004, caiu 21%. Em termos relativos, verifica-se que a remuneração total dos trabalhadores como proporção do PIB, segundo os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), também experimentou queda de 7% no mesmo período.

O desemprego se mantém extremamente alto, desde 1995. Verifica-se, por exemplo, para a região metropolitana de São Paulo, que a taxa média mensal elevou-se de 13,16% em 1995, para 18,82% em 2004. Enquanto o PIB per capita de 1995 a 2003 cresceu 3% (de US$ 2.742,30 para US$ 2.824,44).

Concentração de renda

As parcelas da renda apropriada pelos 20% mais pobres da população e pelos 10% mais ricos apresentaram pequenas variações no período. A dos 20% mais pobres subiu de 2,31% para 2,52% da renda total. A parcela da renda apropriada pelos 10% mais ricos caiu de 47,85% para 47,02%.

A ausência de modificações substanciais na apropriação da renda total por parte desses dois estratos sociais, situados em posições diametralmente opostas, indica que a significativa redução da inflação havida no período – cuja média anual nos dez anos analisados foi de 9,0% a.a., contra 1.024% a.a., da década imediatamente anterior – não foi suficiente para acelerar o processo de distribuição de renda no país. A visível estabilidade do Coeficiente de Gini em torno do índice de 0,6 durante todo o período confirma essa sugestão.

A meta do ajuste

É fato que o Brasil chegou a 2004 gastando muito mais que em 1995 em amortização da dívida (454,79% a mais), juros e encargos da dívida (443,59%) do que em investimentos (229,95%). A decisão sobre a alocação dos recursos deixa evidente a prioridade política. Os recursos, assim como as políticas públicas, não estiveram dirigidos à superação das desigualdades e à erradicação da pobreza.

A diretriz governamental orienta-se ao ajuste fiscal e distancia-se, cada vez mais, dos compromissos assumidos nas Conferências de Desenvolvimento Social e da Mulher. Fundados no marco ético e político dos direitos humanos, os planos aprovados em Copenhague e Pequim representam, ainda assim, uma vitória sobre a perspectiva neoliberal e contra as várias expressões dos fundamentalismos. Mas não orientam a ação do Estado brasileiro.

Em coerência com as suas prioridades, o governo privilegia, entre as agendas que emergiram no espaço das Nações Unidas, as Metas de Desenvolvimento do Milênio que, como bem destaca Sílvia Camurça, apenas conformam a face social das políticas de ajuste e integração comercial, postas em prática com recursos e decisão política dos países poderosos na arena internacional.

A definição dos oito objetivos do milênio e suas 18 metas mantém inabalados os alicerces do desenvolvimento economicista-produtivista-tecnologicista: insustentável na perspectiva socioambiental, concentrador de riquezas e de poder, gerador de pobreza e exclusão, promotor de desigualdades tanto em cada sociedade como entre nações.

Manter este modelo e suas instituições, perseguindo metas que se satisfazem com a exclusão de muita gente das condições elementares para uma vida com dignidade, significa negar a universalidade dos direitos humanos. E este, definitivamente, não foi o caminho para o desenvolvimento que se veio construindo desde Copenhague e Pequim.

* Guacira Oliveira é socióloga e integrante do colegiado diretor do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea). Iara Pietricovsky é antropóloga, integrante do colegiado de Gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). As duas integram o grupo de referência brasileiro do Observatório da Cidadania/Social Watch.

A íntegra do relatório está disponível na área de Links desta página.





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