Você está aqui

Legalização do aborto: proposta que gera polêmica

Autor original: Luísa Gockel

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets

“Os debates que a sociedade brasileira realiza, em sua pluralidade cultural e religiosa, são acompanhados e estimulados pelo nosso governo, que, no entanto, não tomará nenhuma iniciativa que contradiga os princípios cristãos”. O trecho da carta enviada em agosto pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva a dom Geraldo Majella, que preside a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), provocou o protesto de organizações da sociedade civil. Ignorado pela grande imprensa, o documento foi considerado ofensivo por militantes pró-aborto*, que estavam com a atenção voltada para o trabalho da comissão tripartite que elaborava uma proposta de revisão da legislação sobre a interrupção voluntária da gravidez. O projeto, que foi entregue ao Congresso no dia 27 de setembro, está sendo considerado por entidades da sociedade civil o passo mais concreto do movimento em defesa dos direitos das mulheres rumo à legalização do aborto.

Apesar da mensagem de apoio à CNBB enviada pelo presidente, o resultado do trabalho da comissão, instalada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), foi entregue pela ministra Nilcéa Freire ao deputado Benedito Dias (PP-AP), presidente da Comissão de Seguridade Social e Família. A ministra, que antes de chegar ao Plenário da Câmara esteve reunida com Lula, afirmou que aquele era o resultado de um compromisso assumido no ano passado na 1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres.

A Conferência foi a largada para inúmeras articulações do governo e da sociedade civil em prol da defesa dos direitos das mulheres. Apesar da posição aparentemente ambígua do governo, a psicóloga Gilberta Soares, membro do Cunhã Coletivo Feminista e secretária executiva das Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, acredita que não há uma posição homogênea por parte do Executivo em relação à questão. “Nem o PT tem uma posição uniforme, pois o seu progressismo pára nos direitos das mulheres. É uma correlação de forças e, como existe uma fragilidade do governo nesse momento, adotar uma posição moralista e conservadora é uma forma de conquistar mais votos. E nessa acabam negociando também os direitos das mulheres”, critica.

Gilberta explica que quase todas as reuniões estaduais preparatórias para a Conferência do ano passado debateram a legalização do aborto. A mobilização fez com que a revisão da lei punitiva fosse incorporada como prioridade no documento final do encontro, que foi a base do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, lançado em dezembro último pela SPM. Uma das ações do Plano mais aguardadas pelo movimento pró-aborto* foi justamente a criação da comissão tripartite, que foi instituída em abril deste ano.

Os 18 integrantes da comissão – seis do Executivo, seis do Legislativo e seis da sociedade civil – elaboraram, em quatro meses, uma proposta de revisão da legislação atual, que data de 1940. Está prevista no Código Penal a criminalização do aborto, com pena de detenção de um a três anos, exceto quando é praticado para salvar a vida da gestante ou em caso de estupro.

A antropóloga Lia Zanotta, da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e professora da UnB, participou da comissão e garante que a proposta final é o resultado de uma ampla discussão entre setores diferentes da sociedade e do governo. “Termos conseguido produzir um documento com autoria tripla foi um avanço. Existem propostas isoladas de alguns deputados e deputadas. Mas esse é o primeiro projeto com a participação da sociedade civil, do governo federal, de representantes do parlamento e de sociedades científicas”, ressalta Lia.

A antropóloga admite, no entanto, que após o término do trabalho da comissão, em 1º de agosto, os representantes da sociedade civil que dela participaram temiam que a entrega fosse adiada. E foi o que aconteceu. “Nos propusemos, então, a entregar o projeto, mesmo que não oficialmente”, contou Lia. Apesar de Nilcéa Freire ter confirmado de última hora a presença na solenidade, a ministra não deixou claro se o governo apoiaria a partir daí a tramitação do projeto dentro da Câmara.

A proposta prevê que “toda mulher tem o direito à interrupção voluntária de sua gravidez, realizada por médico e condicionada ao consentimento livre e esclarecido da gestante”. E assegura essa interrupção nas seguintes condições: até 12 semanas de gestação; até 20 semanas, no caso de estupro; a qualquer momento, no caso de grave risco à saúde da gestante e em situações de diagnóstico de má-formação congênita incompatível com a vida ou de doença fetal grave e incurável.

De acordo com a secretária executiva das Jornadas, a comissão deu um passo importante ao propor também a legalização, além da descriminalização. “Achamos que deveriam ser feitas as duas coisas porque descriminalizando, apenas, a gente tira a responsabilidade do Estado. É um passo muito importante, que vai beneficiar, sobretudo, as mulheres mais pobres”, defende. Assessor especial do ministro da Justiça, Pedro Abramovay participou da comissão tripartite e concorda com Gilberta. “A questão de descriminar e legalizar provocou debates dentro da comissão. Mas entendemos que a partir do momento em que tiramos a prática do Código Penal, o Estado é obrigado a prover a população”, afirma.

Pedro garantiu que a posição do Ministério da Justiça quanto à questão é clara. “É uma política criminal equivocada, por dois motivos simples: não tem efeito repressor e causa sérios danos à população. Os efeitos negativos são muito perversos”. Ele admite, porém, que a matéria vai muito além da questão criminal.

Mesmo com o otimismo de algumas entidades civis, a proposta percorre ainda um longo caminho no Legislativo: será submetida a votação na Comissão de Seguridade e, caso seja aprovada, seguirá para a Comissão de Constituição de Justiça para só depois ser votada no Plenário da Câmara. Se aprovada, seguirá para o Senado.

O médico Jorge Andalaft Neto, da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, representou a entidade na comissão e explica que a escolha do marco de 12 semanas para a interrupção da gravidez se baseou na segurança do procedimento. “Nesse período a interrupção pode ser feita por via medicamentosa. Depois disso, a possibilidade de hemorragia aumenta, assim como o período de permanência hospitalar da mulher”. Além disso, o ginecologista explica que a comissão também analisou a legislação de outros países e a tecnologia e a segurança oferecidas para a realização da interrupção no Brasil.

A polêmica que envolve o debate entre posições a favor e contra o aborto muitas vezes gira em torno de quando começa a vida. Jorge Andalaft diz que, do ponto de vista médico, isso não deve ser levado em consideração. Se fosse, continua, o aborto só deveria ser permitido até as primeiras seis semanas, quando não há nada formado no feto. Ele, no entanto, acredita que não se deve misturar crenças religiosas à questão.

Por outro lado, dom Odilo Pedro Scherer, secretário geral da CNBB, considera impossível olhar para o problema do aborto e considerá-lo separadamente da questão ética. “Acho que é inadequado tratar o aborto como problema de saúde pública; isso significaria não reconhecer a complexidade da questão. Além disso, as questões de saúde pública devem ser enfrentadas de outras maneiras, e não através de leis ou políticas públicas que promovam a morte de seres humanos”, defende. Ele não admite a possibilidade de a Igreja mudar de idéia no futuro. “Tivemos situações em que a Igreja reviu suas posições. Mas no caso da gestação de um ser humano, as ciências, a psicologia e o bom senso evoluem justamente no sentido de confirmar a convicção de que o ser humano não começa a existir com o nascimento, mas na fecundação”, enfatiza o bispo.

A mistura entre religião política sempre suscitou debates. A deputada Jandira Feghali (PCdoB – RJ), relatora do projeto, reclama da bancada evangélica na Câmara, que luta contra a inclusão na pauta de temas controversos do ponto de vista religioso. “O Estado laico foi uma conquista da democracia, mas ainda caminhamos na direção de sua completa implementação”, diz.

A primeira vez em que o assunto entrou na pauta mundial foi na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento da ONU, no Cairo, em 1994. Na ocasião, o documento produzido chamava a atenção para a questão como um grave problema de saúde pública e defendia a necessidade de diminuir o recurso ao aborto. De acordo com Jandira, o aborto realizado clandestinamente é a quarta causa de morte materna no Brasil. Além disso, afirma, nos países que liberaram o aborto a realização desse procedimento foi reduzida.

A deputada acredita que há uma tendência mundial pela liberação e está confiante na aprovação do projeto, principalmente depois da eleição do novo presidente da Câmara, o deputado Aldo Rebelo, também do PC do B. Entretanto Alcilene Cavalcante, da organização Católicas pelo Direito de Decidir, acredita que é um momento em que os setores conservadores ganham força em todo o mundo. Segundo ela, os direitos sexuais e reprodutivos tendem a ficar em segundo plano.


*NR: a expressão considerada mais adequada pelas organizações e ativistas citadas nesta matéria - e, de maneira geral, pelas organizações de mulheres - é "pró-despenalização do aborto", e não "pró-aborto". A justificativa é que a expressão "pró-aborto" poderia transparecer uma defesa incondicional do aborto como fim, o que não é o caso. O que elas defendem é a possibilidade de opção pelo aborto, feito de forma segura e sem que a mulher seja punida criminalmente por isso. Entendemos que o contexto desta reportagem deixa claro, em diversas ocasiões, que o que está em questão é a descriminalização do aborto, mas registramos aqui a diferença de linguagem, em respeito às suscetibilidades do movimento.

Luísa Gockel

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer