Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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"O complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade". Esta é a definição de cultura no dicionário, que, em poucas palavras, resume tema tão amplo quanto a discussão que suscita. E é justamente na intenção de preservar os tais "valores espirituais e materiais" característicos de uma sociedade que vem sendo construída e debatida a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
O texto do documento, elaborado ao longo de dois anos, está pronto, com poucas pendências, e será votado durante a 33ª Conferência Geral da Unesco, que está acontecendo em Paris, França, até o dia 21 de outubro. O Brasil, que defende um texto objetivo, com estabelecimento claro de compromissos por parte dos países, está sendo representado por uma delegação que tem à frente do setor cultural o ministro da Cultura, Gilberto Gil, que nesta sexta-feira, 14 de outubro, concedeu entrevista coletiva sobre o tema, na embaixada brasileira em Paris.
Em seu discurso, disse ter noção de "que uma Convenção não basta para fazer com que a globalização e a convergência digital tornem-se instrumentos da promoção, e não da redução, da diversidade cultural e das culturas locais. Mas é um passo significativo. A convenção não vai mudar a vida, mas representa uma tomada de consciência".
"Nossa coletiva foi muito bem recebida, assim como nossa participação em todo o processo de discussão da convenção, que teve até seu nome mudado por influência dos comentários do Brasil", afirmou à Rets, de Paris, o secretário da Identidade e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (MinC), Sérgio Mamberti.
O começo
A convenção começou a ser discutida em 2003, a partir de uma resolução do Conselho Executivo da Unesco, órgão ao qual um grupo de países – Alemanha, Canadá, França, Grécia, Marrocos, México, Mônaco e Senegal, com o respaldo do Grupo Francófono da entidade – havia submetido documento abordando a questão. Assim, ainda em 2003, após a 32ª Conferência Geral da Unesco, começaram os trabalhos para a elaboração do texto, processo que envolveu a criação de um Comitê de Redação, um encontro deste comitê, encontros de experts e três reuniões intergovernamentais.
Além disso, o texto da convenção – que será normativa e vinculante – espelha a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, que os governos membros da Unesco adotaram por unanimidade em 2001. Uma forte influência para que se adotasse tal declaração na ocasião veio dos atentados de 11 de setembro, que puseram no centro do olhar da opinião pública os debates sobre os choques de civilizações e a necessidade de respeito às diferenças para que tais embates não ocorressem.
O resultado dessa conjunção de fatores foi um texto que afirma a diversidade cultural como característica que define a própria humanidade; reconhece a importância dos conhecimentos tradicionais como fonte de riqueza material e imaterial a ser preservada e fala da necessidade de medidas de proteção, principalmente em situações onde as expressões culturais estejam sob a ameaça de extinção.
Entre todas as idéias que a Convenção defende, porém, a mais importante – porque tem implicações nos acordos comerciais entre países – é a do artigo 18: "Convencidos de que atividades culturais, bens e serviços têm natureza tanto econômica quanto cultural, porque são portadoras de identidades, valores e significados e não devem, portanto, ser tratadas como dotadas somente de valor comercial (...)".
Os 'enlatados dos USA' e a cultura de corpo e alma
Ou seja, a cultura e os "produtos" resultantes de suas manifestações não podem ser tratados como uma mercadoria qualquer. Os produtos – filmes, minisséries, livros, shows – são a parte concreta e tangível dessa entidade chamada cultura. Mas o universo de tradições, hábitos e pensamentos que embasam a produção são a parte intangível, a riqueza a ser preservada – a alma de determinada sociedade. Assim, o comércio de conteúdos culturais não pode acontecer se não respeitar a preservação das diferentes culturas. Ou seja, no contexto da convenção, a homogeneização de padrões não é benquista.
E isso é um golpe em nações que têm forte estratégia de venda dos chamados "produtos" culturais, como os Estados Unidos, país onde os produtos de mídia estão nas primeiras posições da lista de exportados – os tais "enlatados dos USA" que a música de Renato Russo critica. Além disso, com a crise financeira das empresas de mídia do mundo todo, a saída muitas vezes encontrada é a mudança nas legislações, para permitir a entrada de capital estrangeiro nas empresas midiáticas. E, neste contexto, regras claras defendendo manifestações culturais locais e resguardando-as de determinadas influências externas são um balde de água fria.
Segundo Leonardo Brant, vice-presidente da Rede Internacional para a Diversidade Cultural – rede com sede no Canadá que advogou e fez pressões em diversos países para sensibilizar a respeito da convenção –, "os EUA fizeram um trabalho forte para a Convenção não entrar na pauta, para enfraquecer esse processo. O pensamento dominante deles, o que norteia sua estratégia, é o seguinte: o mercado é uma entidade soberana, regula-se sozinho. Para a maioria dos países, isso não é verdade".
Um desses países é o Brasil, que tem posições firmes e bem marcadas sobre a importância do documento e de que ele seja claro o suficiente para estabelecer um compromisso por parte dos países. "O Brasil é considerado o país mais importante nesse processo de debate, com uma posição bem fechada, uma estratégia montada e direcionada para a aprovação da Convenção", diz Brant. A posição brasileira está forte assim porque tanto o Ministério da Cultura, que encabeçou as discussões sobre a Convenção no governo, quanto o Ministério das Relações Exteriores, interlocutor por excelência em todos os processos internacionais dos quais o país participa, estão com discurso afinado. O secretário do Departamento Cultural do Itamaraty, José Armando Rezende, explica que "foram realizados encontros interministeriais para encontrar uma posição bem definida".
Isso se reflete não só nos comentários do país ao texto da convenção – o Brasil, além de enviar seus comentários, fez parte do Comitê de Redação –, mas também nos pronunciamentos que o ministro da Cultura, Gilberto Gil, tem feito a respeito do tema. Em discurso na Câmara dos Deputados, no dia 21 de setembro, ele afirmou que “o debate sobre a convenção na Conferência Geral da Unesco deve ser intenso. Os Estados Unidos, seguidos por alguns de seus aliados incondicionais, como a Austrália e o México, devem se manifestar contra os artigos mais diretos, mais objetivos, mais afirmativos”. Segundo Gil, "a idéia de “livre comércio” de bens e serviços culturais, defendida pelos EUA, pode parecer interessante a princípio, mas a longo prazo tenderia a reforçar um dos vetores da globalização, que é a concentração cultural, aniquilando indústrias culturais locais e expressões tradicionais".
O ministro da Cultura lembrou ainda, no mesmo discurso, que, como a Convenção foi ganhando aliados e defensores – como França, Canadá e Inglaterra, tradicional aliada dos EUA –, o país não tinha mais como evitar a discussão do documento e passou "a trabalhar, então, pelo esvaziamento do texto, para que ele não tenha conseqüências práticas".
Outras defensoras da convenção são ONGs e redes que lidam com questões relacionadas a diferentes manifestações culturais. Várias delas acompanharam o processo, chamando a sociedade a prestar atenção e elaborando documentos comentando o texto que vinha se desenhando. Um dos exemplos é o Media Trade Monitor, grupo de pesquisa resultante de parceria entre a ONG Free Press, a Rede Internacional para a Diversidade Cultural (RIDC) e a campanha Communication Rights in the Information Society (Cris). O grupo elaborou material com conceitos a serem contemplados na Convenção e comentários ponto a ponto sobre os artigos do documento. Outra organização que fez a mesma coisa foi a própria RIDC, especificando os pontos que seriam prioritários.
Unesco x OMC
Outro ganho identificado na elaboração da Convenção é a sua própria existência. Com a discussão dentro da Unesco, o debate volta para aquele que seria seu espaço mais adequado, em vez de se dar na Organização Mundial do Comércio, como vinha acontecendo. "Só esse deslocamento já tem um valor simbólico", acredita Sérgio Mamberti.
Sasha Constanza-Chock, membro da campanha Cris nos EUA, não concorda: "A Convenção pretende reconhecer a natureza dupla da cultura, como uma commodity e como um aspecto único da existência humana, válida por si mesma. O objetivo inicial da Convenção era ser um contrapeso às agressivas exportações da indústria cultural americana. Especialmente, deveria prover um argumento legal para países estabelecerem cotas de exibição e outras formas de apoio às produções culturais nacionais. No entanto foi amplamente enfraquecida durante o processo de negociação. O texto final subordina o tratado a acordos comerciais existentes ou futuros".
Sasha se refere ao fato de que existem ainda dois artigos pendentes – todo o resto do texto já está fechado, restando apenas ser aprovado –, que se referem ao relacionamento da Convenção com os outros instrumentos internacionais. "A pendência é no artigo 20, que trata exatamente exatamente da força que a Convenção terá perantes outros instrumentos internacionais", explica Leonardo Brant, da RIDC. O receio, por parte de quem defende uma Convenção forte e referência para outros acordos internacionais, é de que, não estando explicitamente dito que a Convenção se sobrepõe aos acordos comerciais, ela pode ficar simplesmente sem valor.
A Unesco e a OMC são dois universos diferentes. Na Unesco, a cultura é tratada de uma forma; na OMC, é vista de outra maneira. As decisões tomadas em um foro não necessariamente terão implicações no outro. "A questão é como coadunar as duas coisas", resume Rezende, do Itamaraty. "É inegável que a Convenção terá alguma influência na OMC. Mas existe o risco de ser só como referência, simplesmente porque existe", completa. Porém, o argumento a ser usado, não importando a redação final do artigo pendente, é que, "por ser organismo da ONU, a Unesco tem força para influenciar outros acordos, inclusive os da OMC", recorda Brant.
O artigo sobre a relação da Convenção com os outros instrumentos é, sem dúvida, importante. Porém o processo de implementação e adoção do documento pelos países necessitará da pressão da sociedade, independentemente da redação que ele tenha. "O primeiro passo é dar visibilidade à Convenção. Será incluir em todas as discussões envolvendo as comunidades a questão da diversidade. Cabe à sociedade organizada e às redes culturais transformarem-se em ferramentas de difusão", acredita Walter Malta, da Rede Brasil de Promotores Culturais Independentes.
O secretário do MinC é outro que acredita nisso: "Mesmo que o artigo pendente acabe não tendo a redação ideal, o conjunto do texto já é muito forte. A partir daí, os setores da sociedade que trabalham e militam com cultura vão começar a pressionar pela implementação. Precisamos que o terceiro setor faça isso. Contamos com o apoio das ONGs, do trabalho em rede, para divulgação dessa Convenção", diz Mamberti.
"Infelizmente, não creio que a Convenção, do modo como está escrita atualmente, vá ser uma ferramenta legal muito útil para os países se levantarem perante os EUA nos acordos comerciais. Entretanto o documento pode servir como uma ferramenta para a sociedade civil e ministérios da Cultura pressionarem os ministérios do Comércio, estimulando-os a excluir o setor cultural dos acordos comerciais. Será útil como mais um argumento no conjunto de argumentos", acredita Constanza-Chock. "Mas os ministros não são o mais importante, mas o que as pessoas fazem na prática. Não temos que mendigar aos governos e esperar que criem políticas públicas que estimulem as massas. É o contrário: temos de construir a prática, fazer nossas demandas a partir de posicionamentos fortes, e as políticas seguirão".
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