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Como as organizações não-governamentais podem contribuir para o processo de resgate das instituições públicas no Brasil

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião

Paulo César Gonçalves Egler*







Como as organizações não-governamentais podem contribuir para o processo de resgate das instituições públicas no Brasil
www.aliancapelainfancia.org.br

Vivemos tempos tumultuados. A crise se estende por todas as dimensões do Estado - pelo Executivo, pelo Legislativo e também pelo Judiciário - sem que em nenhum destes poderes se percebam sinais efetivos de recuperação.

Mais devastador ainda é que nem nichos que antes conseguiam manter isenção ou integridade estão sendo poupados. A referência é para as organizações não-governamentais (ONGs), cuja atuação no Brasil, nos últimos anos, se tornou cada vez mais relevante, principalmente diante da falência já apontada do Estado. Em qualquer dos meios de comunicação que se investigue, existe sempre a menção de elogios e de declarações de eficiência quanto à atuação das ONGs.

Contudo algumas ações começam a despontar, em nível nacional e também internacional, como indicadoras de movimentos que colocam em foco as ações empreendidas pelas não-governamentais. Como exemplos dessas iniciativas podemos mencionar: i) o Projeto de Lei hoje em discussão no Congresso Nacional que impõe às ONGs com sede ou escritório no Brasil a abertura de seus orçamentos, principalmente no que tange às fontes de receita internas e externas; e ii) a proposição, pela Comissão das Comunidades Européias, de um Código de Conduta para promover a transparência e a confiabilidade nas organizações da sociedade civil sem fins lucrativos.

Se o que essas duas ações de natureza regulatória buscam, como apontado nos respectivos documentos legais, é a transparência e a confiabilidade das ações das ONGs, não existem razões para oposição, pois isso é o que também se espera das instituições do primeiro setor – o Estado – e das do segundo setor – as empresas privadas. Entretanto, se outros interesses estiverem também pautando essa discussão, como, por exemplo, o cerceamento e o controle das ações das organizações não-governamentais, aí se coloca como necessária uma prudência. Mas isso só a evolução dessas ações poderá esclarecer, na medida em que forem se apresentando os elementos para uma avaliação mais acurada.

Adicionalmente, outras reações às ações das ONGs começam igualmente a se manifestar, em particular àquelas que trabalham com a área ambiental e com assuntos relacionados à inclusão social. Um exemplo a citar no país é um informativo que circula na internet com o título de Alerta em Rede, que retrata as organizações não-governamentais com atuação na área ambiental como entidades contrárias a qualquer tipo de desenvolvimento no Brasil.

O que estes movimentos trazem à reflexão é a necessidade de uma discussão ampla sobre os papéis que legitimamente devem ser assumidos pelas ONGs e quais aqueles que lhes estão sendo proporcionados pela falência das instituições que constituem o Estado.

Antes de prosseguir nesta linha de raciocínio, cabe a observação de que não existe, de minha parte, nenhuma linha de argumentação que vá de encontro a este tipo de prática e de procedimento das ONGs. Nesta direção vale o ditado de que “espaço que fica vazio acaba sendo ocupado”, sobretudo quando este espaço tem características relevantes como o de que estamos tratando.

De fato, o que quero aqui discutir é a conveniência desta situação e, o que é mais importante, que providências vêm sendo tomadas pelas ONGs para que haja uma reversão desse quadro.

Em algumas oportunidades tenho assumido publicamente posição que procura definir e estabelecer os contornos e as características de uma questão que entendo como fundamental no atual quadro de crise por que vem passando a sociedade brasileira. Nesta discussão, o principal elemento diz respeito à profunda crise institucional hoje presente no país. Este assunto é tão subliminar que é lugar comum, nos dias de hoje, sobretudo em declarações e depoimentos dos freqüentadores do Congresso Nacional e de algumas instituições do Executivo federal, que a atual crise não vem afetando as instituições brasileiras. Pelo contrário, elas vêm funcionando sem problemas.

Entretanto essa linha de argumentação é tão frágil como aquela afirmação de que tudo o que acontece hoje no cenário nacional é o resultado de uma conspiração com o objetivo de enfraquecer os movimentos mais identificados com as classes menos favorecidas da sociedade brasileira.

Tenho insistido que a principal questão em relação a este assunto se situa na própria compreensão do que vem a ser uma instituição. Segundo March e Olsen (1989)1 os principais elementos que caracterizam uma instituição são a existência de rotinas, de regras, de procedimentos, de valores e de culturas. Para esses autores, é a existência desses elementos que fazem com que, antes de tomar qualquer decisão, um indivíduo faça a si mesmo três perguntas: quem eu sou? Onde estou? O que se espera de mim?

Do contrário, ou seja, onde não existe uma institucionalidade definida e estabelecida, a pergunta que faz é uma só e se resume a: o que eu quero?

Continuando com March e Olsen, no primeiro caso – quem sou, onde estou e o que se espera de mim – a ação (decisão) é norteada por uma lógica de propriedade (logic of appropriateness); no segundo – o que eu quero –, por uma lógica de racionalidade (logic of consequentiality).

O relevante da segunda lógica é que sua principal característica tem como referência que a operação da instituição se processa mediante uma ordem onde imperam as preferências pessoais dos indivíduos que a habitam. Nessa estrutura de funcionamento, cada sujeito pode idealizar e fazer expressar, na prática, suas idéias de como a instituição deve operar. Ou seja, quais as ações mais importantes que deve desempenhar, e como fazer para implementá-las. O problema é que nesta lógica de funcionamento a instituição é submetida a um número expressivo de propostas, sem que haja um elemento que as organize, ou mesmo que as restrinja. O resultado, na maioria das vezes, é o aparecimento de conflitos entre as diferentes propostas, levando a instituição a um imobilismo.

Diferentemente desta perspectiva individualista e fragmentada, a operação sob um enfoque mais institucional (appropriateness) estabelece um funcionamento em que os indivíduos percebem, com clareza, que devem operar mediante rotinas, regras, procedimentos e percepções mais exatas dos seus papéis e de suas obrigações. Nessa perspectiva, os conflitos são reduzidos, pois passa a existir uma estrutura organizada e hierarquizada, em que os sujeitos têm uma noção precisa de suas limitações e de suas possibilidades de ação.

O que atualmente acontece é que a maioria das instituições públicas brasileiras vem operando de acordo com uma lógica de racionalidade. Daí a dificuldade para funcionarem adequadamente.

Mas qual a razão deste comportamento? Ou seja, que fatores foram determinantes para que essas instituições viessem a perder suas identidades e, principalmente, suas rotinas, regras, procedimentos, culturas e valores?

Desde a segunda metade da década de 80, as instituições públicas brasileiras vêm sendo submetidas a um processo de constantes mudanças, implementadas ao sabor de cada novo dirigente que assume sua direção. Os resultados dessas constantes mudanças são diversos. Mas o mais grave é a desestruturação que provoca nas rotinas, nas regras, nos procedimentos e nos valores institucionais. Seria o equivalente a imaginar o Papa (autoridade máxima da Igreja Católica) anunciando, a cada ano, uma nova encíclica! Depois de cinco anos, os fiéis não mais saberão o que fazer e o que não fazer. Ficarão desorientados.

Esse comportamento adotado pelos dirigentes que vêm assumindo postos de direção nas instituições públicas brasileiras, no período apontado, os quais na sua maioria não pertencem ao quadro funcional das mesmas, é aspecto que merece uma reflexão aprofundada. Contudo aqui não é o espaço apropriado para esta reflexão, que, insisto, não deve ter como propósito apontar culpados, mas sim buscar soluções.

Voltando ao tema central da presente discussão, o que é importante considerar são as conseqüências que este processo de desestruturação institucional provocam, principalmente no que diz respeito às ações governamentais.

Como apontado anteriormente, é no vácuo de presença e também de eficiência e eficácia das instituições governamentais que as ONGs vêm ocupando cada vez mais espaços. Seja como instituições assumindo o papel de formular e implementar políticas públicas em áreas e/ou segmentos onde as instituições governamentais – que deveriam assumir esta responsabilidade – têm se mostrado frágeis e inoperantes, seja como indivíduos, quando representantes de organizações não-governamentais assumem posições de dirigentes em órgãos do Executivo federal, estadual ou municipal.

O que quero trazer para reflexão diz respeito ao futuro desse processo. O que estamos propondo com relação ao futuro do Estado? Será que esta entidade, como defendido por alguns setores da sociedade brasileira e da comunidade internacional, deve assumir um papel reduzido, como o proposto na prescrição neoliberal do Estado mínimo?

Um aspecto fundamental para a discussão desta questão diz respeito aos efeitos que os movimentos de privatização e de redução do Estado impõem à democracia. Neste sentido, o que é importante ter presente é que a esfera pública, o Estado, representa um espaço fundamental e legítimo para a negociação, visto que conduz os cidadãos a se posicionarem por interesses que vão além dos seus próprios ou de corporações. Como um dos principais objetivos dos movimentos de privatização e de redução do Estado é a diminuição da esfera pública, eles estão limitando, também e diretamente, as esferas da informação, da negociação, da transparência e da confiabilidade. Em outras palavras, esses movimentos estão reduzindo a democracia ao mero conceito da eficácia.

A área ambiental tem a grande virtude de ter assumido a vanguarda em algumas questões de fundamental importância para o progresso da democracia. Ela teve o valor de propor, pela primeira vez, que o processo de tomada de decisão sobre ações de intervenção cuja implementação pudesse vir a provocar impactos significativos no ambiente e na sociedade fosse realizado de forma transparente e participativa. Neste contexto é que se insere o estabelecimento, no ano de 1970, nos Estados Unidos, dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA), procedimento que se espalhou por quase todos os países do mundo, em um movimento que acompanhou o avanço da democracia nos distintos continentes.

O importante é que esta virtude mais uma vez volta a se expressar no final da década de 80 e no início da de 90, quando conceitos como o de desenvolvimento sustentável e do princípio da precaução são desenvolvidos e convenções de abrangência global, como a de mudanças climáticas e da biodiversidade, são aprovadas. Contudo ainda mais importante do que estas realizações foi o evento de trazer para a agenda de discussão o fato de que a sustentabilidade é amplamente dependente de ações de Estado, sobretudo no que se refere à sua função de coordenação. Esta questão está presente nas Agendas 21, quando se discutem formas para que os valores ambiental e social sejam inseridos nas diferentes políticas setoriais. É a prática da transversalidade, que o Ministério do Meio Ambiente vem perseguindo com dificuldades.

A questão que se apresenta é como conceber e, sobretudo, implementar o papel de coordenação de políticas sem a existência de um Estado que seja capaz de exercer, através de suas instituições, esta função. Voltamos, novamente, à questão das instituições públicas, pois são elas, em seu conjunto, que configuram e constroem o Estado. Neste contexto a pergunta que se coloca é aquela de se identificar que atitudes seriam hoje críticas para que este tema da capacitação institucional seja, de um lado, incluído na agenda das decisões governamentais de natureza prioritária e, de outro, que esforços são hoje necessários para que esta capacitação seja efetivada.

Capacitação institucional é um tema que tem lugar permanente em todos os programas que são desenhados para resolver aspectos relacionados com a melhoria da atuação de setores governamentais, a exemplo do ambiental, transportes e energia. Os programas de recuperação e/ou de reorganização setoriais de organizações como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e as Organizações da família ONU, na maioria das vezes, incluem ações voltadas para aquilo que caracterizam e/ou identificam como capacitação institucional. Contudo o que é recorrente nesses programas é o reducionismo a que este tema da capacitação institucional é submetido. Ou se identificam o material de consumo e a infra-estrutura a adquirir ou se discutem os cursos que serão oferecidos. O que não aparecem nestes programas são ações que visem estabelecer e consolidar aqueles aspectos que, como apontei, são os que definem uma instituição: rotinas, regras, procedimentos, valores e culturas. Também não são incluídas ações que procurem estabelecer um elemento que também é de fundamental importância para garantir a saúde das instituições, que é a estabilidade. Estabilidade das rotinas e das regras e estabilidade dos dirigentes e das estruturas organizacionais.

Voltando ao que me provocou abrir esta discussão, a pergunta que faço é sobre qual a posição das ONGs diante deste quadro de fragilidade das instituições governamentais.

Como já apontei, os vazios institucionais são os motivos para que no Brasil as ONGs venham, cada vez mais, a assumir papéis e funções que, por direito e obrigação, deveriam ser das instituições públicas. Este não é o problema relevante para o momento. A questão relevante é o futuro, ou como esse quadro evolui.

Nesse sentido, a pergunta pertinente refere-se ao que estamos construindo com as atitudes que hoje desenvolvemos no contexto da sociedade brasileira, principalmente diante do descrédito que cada vez se afigura como maior em relação à capacidade de as instituições governamentais realizarem seus papéis. Se o que estamos construindo são novas formas de organização e de representação social, em que as organizações da sociedade civil organizada passam a substituir o Estado, então é fundamental que venhamos a explicitar claramente como essa nova forma de organização e representação social se constrói e se legitima. Do contrário, essa construção social tenderá ao casuísmo.

De outro lado, se o entendimento que temos é o de que o Estado tem ainda um papel fundamental a desempenhar para a construção e o progresso da democracia, o importante é pensarmos como resgatá-lo. É neste sentido que vejo a reconstrução das instituições governamentais como um elemento-chave deste processo de resgate.

Para isto, contudo, a atitude mais adequada não é aquela de, a cada novo dia, virmos a substituir aquelas instituições públicas que, devido ao resultado dos processos de erosão institucional, se mostrem ineficientes e incapazes de exercerem seus papéis. Estas substituições, quando necessárias, devem se fazer como uma atitude emergencial, equivalente àquelas situações onde, em resposta a calamidades, a sociedade se organiza e faz acontecer. Entretanto, nestas situações, um objetivo que não deve deixar de estar presente desde o primeiro momento em que a substituição é feita são as atitudes e as ações que virão, no futuro, proporcionar o retorno, o mais rápido possível, ao quadro de normalidade.

Neste sentido é que coloco a questão sobre que atitudes e ações a sociedade brasileira, de uma forma geral, e as ONGs, em especial, estão empreendendo para um retorno ao quadro de normalidade das instituições públicas brasileiras.

O fundamental é discutirmos e decidirmos como proceder para que a capacidade de ação do Estado brasileiro seja resgatada – e, neste contexto, posso apontar, com convicção, que um dos caminhos passa pela recuperação de suas instituições.

Como realizar essa tarefa? A resposta é o exercício mais relevante a ser desenvolvido no momento. Para não configurar aqui um lugar comum que atualmente se apresenta em inúmeras discussões e debates realizados sobre a crise brasileira – o de não se avançar em soluções para os problemas identificados –, aponto algumas atitudes e medidas que entendo como relevantes.

Para começar, é fundamental o desenvolvimento de um processo de aprendizado que tenha por objetivo ensinar, a cada novo dirigente que venha a assumir um posto de direção em uma instituição pública, a compreensão de que está assumindo uma entidade que possui uma identidade e que tem por função formar os indivíduos que nela habitam; mas que também é formada por esses indivíduos. Logo, é fundamental que perceba a instituição como possuidora de uma ‘individualidade’, que requer ‘cuidados’, da mesma forma como os indivíduos que nela trabalham.

O estabelecimento de um conjunto de critérios e procedimentos para a realização de modificações nas estruturas e no funcionamento das instituições públicas brasileiras, tendo em consideração a questão de que qualquer reforma ou mudança terá sempre como conseqüência um período de ineficiência da instituição, pois sempre que alterações são introduzidas a instituição precisa aprender como atuar na nova configuração.

A necessidade do estabelecimento de um processo sistemático de acompanhamento e avaliação das instituições públicas brasileiras, tendo presente que uma instituição se constrói mediante a estruturação de um conjunto de rotinas, regras, procedimentos, valores e culturas que, para avançarem, necessitam de estabilidade e de permanentes avaliações. É fundamental ter claro que uma organização progride quando incorpora, em suas rotinas e procedimentos de funcionamento, os resultados positivos que identifica em sua atuação e em sua prática.

Como as ONGs poderão contribuir para este processo de resgate das instituições públicas brasileiras e, por conseqüência, do Estado é o desafio que atualmente entendo que deve estar claramente presente nas agendas dessas organizações. O que não pode continuar é a manutenção desta situação de sucateamento das instituições públicas e sua substituição progressiva por organizações da sociedade civil organizada, com o risco, como apontado, de estarmos no futuro colocando em xeque a existência de uma esfera onde os cidadãos possam se posicionar por interesses comuns e não apenas pelos corporativos e individuais.

* Paulo César Gonçalves Egler é professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, membro do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e da Academia Brasileira de Ciências.

1. March, J. G. e J. P. Olsen (1989) Rediscovering Institutions (New York: Free Press).






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