Você está aqui

Transposição: debate que não sai do lugar

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original:






Transposição: debate que não sai do lugar
Montagem de Luis Felipe/Rits sobre
foto de Amanda O'Neil

Assunto marcado pela polêmica desde o nascedouro, a transposição das águas do Rio São Francisco enfrentou mais turbulência em setembro, quando o bispo do município baiano de Barra, Dom Flávio Cappio, decidiu fazer greve de fome contra a proposta apresentada pelo governo. O projeto, orçado em R$ 4,5 bilhões, pretende beneficiar aproximadamente 12 milhões de habitantes, o que corresponde a 30% da população da região conhecida como Polígono da Seca, no Semi-Árido nordestino. Segundo o Ministério da Integração Nacional, apenas 1% do volume de água será canalizado para irrigar o Nordeste setentrional.

Para parte da opinião pública, a iniciativa navega contra a corrente. A preocupação é com os efeitos da transposição para a saúde do Velho Chico. No entanto, segundo um dos maiores especialistas em recursos hídricos do país, tudo isso é “uma bobagem”, pois a quantidade de água a ser transposta é ínfima.

O professor Paulo Canedo, chefe do Laboratório de Hidrologia da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), afirma que o projeto pode ser melhorado, mas sua discussão tem sido conduzida de maneira errada. “O problema é que se gastou todo o tempo da discussão no ponto errado”, observa. “O Rio São Francisco não saberá que teve a transposição. Porque isso é como doar sangue. Se você tirar uma seringa do meu sangue, não vou morrer, não tem perigo nenhum de eu ficar extenuado, cair morto. Todo mês você pode doar uma ampola de sangue. Qual o risco que você corre? Nenhum! Agora, se esse sangue doado, se essa água doada dará vida a alguém, vai depender da aplicação. E isso é que vale a pena discutir: como ter maior certeza de que essa obra vai se traduzir em crescimento econômico e social para aquela região do Polígono da Seca”.


Rets – O projeto de transposição do Rio São Francisco pode ser analisado sob três aspectos: o técnico, o ambiental e o social. Como o senhor vê essa proposta do ponto de vista técnico?

Paulo Canedo – Essa análise eu dividiria em três grandes perguntas: a região doadora tem capacidade de dar? A região receptora tem necessidade de receber? E o processo de condução de água do doador para o receptor é a alternativa mais barata?

Quanto à primeira questão, a resposta é: indubitavelmente, sim. A vazão do rio na localidade das tomadas d'água é, no mínimo, na pior das hipóteses, de 1.830 metros cúbicos por segundo. Tirar 26 disso não arranha a vazão do rio.

Rets – Isso corresponde a 1%, não é?

Paulo Canedo – A 1,5%. Isso não causa impacto algum. Agora, se não causa nenhum impacto retirar, fica difícil acreditar que causará algum impacto acrescentar na outra região. Porque 26 metros cúbicos por segundo é uma quantidade muito pequena. A cidade de São Paulo tem uma transposição de 33. O Grande Rio tem uma transposição de 180. Vinte e seis pra uma região – não é pra uma cidade – que ocupa boa parte de quatro estados é uma quantidade ínfima de água. Então qual é o grande mérito? É que essa água que vai pra região receptora tem confiabilidade, e é exatamente isso que falta no Nordeste Setentrional: a confiabilidade, a certeza dos recursos hídricos. Porque no Sertão brasileiro não falta água; falta é certeza de água. Chove no Sertão tanto quanto na França. E, portanto, não haveria nenhuma grande razão para termos tantas secas no nosso Polígono da Seca. E por que tem? Porque três coisas nos diferenciam da França: aqui temos uma evaporação um pouco maior, mas não tanto. Aqui temos um solo que não é capaz de armazenar, e isso é importante. E o que é mais importante: é que, na França, embora a chuva seja escassa, ela é previsível, regular, as pessoas conhecem o regime, portanto podem fazer um planejamento. No nosso Nordeste não temos previsibilidade. Não por culpa nossa, mas porque o clima é incerto, o que não permite planejamento. Então, quando transpomos 26 metros cúbicos do Sudeste, onde nasce o São Francisco, estamos dando mais do que água, estamos dando previsibilidade de planejamento. Essa é a grande diferença.

Essa polêmica ruim em que ficam discutindo se o São Francisco vai morrer ou não, ficam dizendo que é a última facada num corpo agonizante, tudo isso é balela, não tem nenhuma base científica. Essa discussão ficou concentrada nesse ponto por uma falha dos nossos governantes, que puseram foco em demasia no fato de transpor, talvez porque isso dê maior visibilidade política à obra.

O grande problema é que o ser humano sempre se baseou nos recursos hídricos como uma grande alavanca do desenvolvimento. E é. O Sudeste brasileiro tem água e tem uma enorme previsibilidade, a gente conhece o regime das águas. Com isso, houve um grande desenvolvimento nessa região. O que temos no Brasil é uma desvantagem comparativa entre a região do semi-árido, o Polígono da Seca, e as demais regiões. O problema no desenvolvimento nessa região significa quebrar essa desvantagem. E fazendo o quê? Levando a água do Sudeste, onde nasce o São Francisco, onde há previsibilidade, para o Sertão. Você dá um pouco mais de capacidade de planejamento hídrico. Com isso, mesmo que seja pouca água, você consegue viver.

Imagine uma família que vive de “bicos”. Ela não ganha mal, mas não tem a menor previsibilidade de entrada de dinheiro. Tem mês em que entra, tem meses em que não entra nada, depois entra muito. Essa família sofre, se ela não tem capacidade de abrir crédito, de comprar uma casa a prazo. Ela padece, mesmo que não lhe falte tanto dinheiro. Pra essa família, a melhor coisa que pode acontecer é alguém entrar num emprego certo, de recebimento de salário mensal fixo, pra dar estabilidade. E não importa se o salário é grande. Mesmo que sejam R$ 300, o dinheiro é certo. E aquela parte certa alavanca o progresso dessa família, porque alavanca a capacidade de obter empréstimo, a capacidade de ter conta em banco... é isso que precisa pro Nordeste, não é quantidade de água. Claro que quanto mais água, melhor, mas não é essa a grande vantagem. O mais importante para o Polígono da Seca é ter uma água constante.

Rets – O São Francisco, então, tem a capacidade de fornecer essa água.

Paulo Canedo – Tem. Agora, se se deve dar, se deve vender, isso é uma outra questão. E superimportante. Porque quando alguém dá alguma coisa, pode não estar fazendo falta hoje, mas pode vir a fazer no futuro. E hoje as leis brasileiras estabelecem que essa possível falta futura seja ressarcida com pagamentos, como royalties. É como quando você extrai petróleo de uma região. Ela recebe royalties porque está dando um bem que é seu para todo o Brasil. Por isso é indenizada.

Rets – Esse, aliás, é um argumento de alguns políticos contra o projeto.

Paulo Canedo – É, mas até hoje não entrou em pauta essa discussão. Está tudo previsto, não tem de fazer nada, só tem de cumprir a lei. Só que eu não vejo essa discussão ocorrer, e essa é uma grande falha do projeto de transposição.

Agora, respondendo sobre a segunda parte da pergunta: a região receptora ganhará muito com essa transposição? Sim, ganhará imensamente, e ela necessita disso. Ela necessita de água e, principalmente, de previsibilidade. Costumo dizer o seguinte: não precisamos ser ricos – nem em água, nem em dinheiro. Mas é preciso ter a vida bem regrada, bem planejada. Isso é que faz a diferença. Se a região do Semi-Árido é seca, eles saberão se virar com essa pouca água, mas desde que consigam planejar. Se demos um mínimo de água pra que eles possam se planejar, é como se eu dissesse àquela tal família: “Eis aqui R$ 500 por mês. Não ficarão ricos, mas vocês saberão crescer conforme a força de suas pernas”. É isso que temos de responder para os nossos irmãos nordestinos: “Eis aqui 26 metros cúbicos por segundo. Não é muito, sei que é pouco, mas é o suficiente pra você ter um planejamento mínimo de água. Vá à luta!”. Se eles vão ou não vão, isso é outra história, mas terão a oportunidade de ir à luta.

Rets – E a terceira parte?

Paulo Canedo – Como é que eu levo água do São Francisco para aquela região? Essa obra é a mais barata ou existe uma alternativa mais barata? Resposta: não sei dizer. E creio que esse assunto não foi bem fuxicado ainda. Entendo que hoje há a oportunidade de fazer a obra do São Francisco e que isso indique para as autoridades que “nós vamos fazer e não necessariamente se precisa encontrar a solução mais barata de todas. Basta que encontremos uma boa solução”. Ou seja: não preciso tirar 10 na prova, posso tirar 8. Só não posso tirar uma nota baixa, não posso ter um projeto ruim. Creio que esse projeto não é ruim, mas ele poderia ser otimizado.

Rets – O senhor o considera melhor que os anteriores?

Paulo Canedo – É melhor. Agora, pra responder se ele pode ou não ser otimizado, é preciso estender a discussão. É aí que falta o diálogo. Esse assunto está em discussão há muito tempo, o problema é que se gastou todo o tempo da discussão no ponto errado. Não se discutiu bom senso, mas bobagens: que o Rio São Francisco não ia agüentar... bobagem! Isso tudo é bobagem! O Rio São Francisco não saberá que teve a transposição. Porque isso é como doar sangue. Se você tirar uma seringa do meu sangue, não vou morrer, não tem perigo nenhum de eu ficar extenuado, cair morto. Todo mês você pode doar uma ampola de sangue. Qual o risco que você corre? Nenhum! Agora, se esse sangue doado, se essa água doada dará vida a alguém, vai depender da aplicação. E isso é que vale a pena discutir: como ter maior certeza de que essa obra vai se traduzir em crescimento econômico e social para aquela região do Polígono da Seca.

Rets – E essa discussão ganhou um cunho apaixonado com a atitude do bispo.

Paulo Canedo – Hoje é absolutamente apaixonada, só tem emoção, e isso não conduz a absolutamente nada. Vejo aí duas grandes falhas, então: a de não indenizar pela água retirada e a de não aprofundar no aprimoramento das garantias de que essa transposição realmente atingirá seu objetivo, que é desenvolver econômica e socialmente o Semi-Árido nordestino.

Suponha que eu seja um investidor. Aí uma autoridade brasileira vem pra mim e diz: “Você não quer investir aqui um bilhão de dólares? Mas pode faltar água, hein!”. Não vou investir. Só vou investir onde tenha segurança da minha rentabilidade.

A primeira providência é dar segurança ao investidor. “Invista aqui, que a lucratividade é compatível com a segurança. É razoavelmente seguro, estou dando uma água firme e tem uma boa lucratividade. Invista aqui!”. Aí tudo bem, vou investir lá. É isso o que o Brasil está fazendo: preparando a lábia pra atrair investimentos para o Semi-Árido setentrional. E por que é um bom lugar? Porque tem terra fértil, tem um clima ótimo pra produção de frutas... só não tem água. “Ah, mas agora eu garanto água”. Então é possível que eu vá. E se eu for, vou ter emprego, vou dar emprego, vou dar riqueza, vou pagar impostos. É isso. O governo tem que dar o pontapé inicial e a segurança mínima. Se essas coisas estiverem razoavelmente equacionadas, o investimento aparece, porque a região é propícia a isso. Esse é o pulo do gato, é a coisa mais bacana de se discutir. Mas não se discute.

Outro dia eu estava vendo uma discussão, com governadores e tudo, em que se pretendia que se transpusesse a água só para beber. Isso é uma crueldade! O cara vai ter água pra beber e mais nada. Vai morrer de fome. Não basta água pra beber. Você gasta 4 bilhões e, em vez de morrer de sede, o sujeito morre de fome. É uma maluquice. É claro que a água não é pra beber, e nem deve ser. A água tem de ser pra irrigação. Claro que não tem nexo fazer megaprojeto de irrigação num lugar onde não tem água. É preciso fazer muitos pequenos projetos de sustentação: pecuária, frutos... e fazer com que esses insumos gerem atividades industriais que depois geram atividades comerciais, e pronto: se estabelece um ciclo de progresso.

Rets – O senhor disse que o rio agüenta a transposição. Mas o São Francisco é assoreado em diversos pontos, tem uma série de problemas. Não há mesmo nenhum risco se não for feita a revitalização?

Paulo Canedo – O Rio São Francisco é, em relação aos outros rios brasileiros, meio ruim, meio abandonado? Não. O Paraíba do Sul é muito pior. O Tietê é muito pior. E por que não estamos dizendo que nada no mundo pode ser feito sem antes revitalizar o Paraíba do Sul? O Rio São Francisco precisa em demasia de revitalização, tanto quanto outros inúmeros rios brasileiros também precisam. Qual o rio que encabeçará a lista da revitalização fluvial no Brasil? Não sei. Temos de sentar e discutir. É possível que o São Francisco esteja entre os dez primeiros, mas me surpreende um pouco essa absoluta firmeza de que é o São Francisco, sequer se fala nos demais rios. Acho que tem de ser revitalizado, sim, mas não vejo nenhuma razão pra condicionar uma coisa à outra, a não ser o fato da oportunidade: já que o governo vai investir tanto na transposição, não custa investir um pouco na revitalização do rio. Esse é um argumento que eu aceito, mas que carece de respaldo técnico. Não é jogar dinheiro fora, porque o São Francisco precisa, mas talvez estejamos cometendo uma injustiça com outros rios que precisariam mais.

Rets – A obra de transposição deve demorar dois anos, e já estamos na reta final do governo Lula. Que garantia se pode ter de que ela não se tranforme em um “elefante branco”?

Paulo Canedo – Nenhuma garantia. Pode perfeitamente virar um “elefante branco”. O governante seguinte pode interromper a obra.

Rets – O próprio ministro [da Integração Nacional] Ciro Gomes deu uma entrevista ao jornal O Globo recentemente em que falava das perspectivas futuras da transposição caso o presidente Lula não seja reeleito.

Paulo Canedo – É por isso que eu acho que a discussão boa, sobre a garantia de que os investimentos produzirão riqueza no Semi-Árido setentrional, tinha de estar com a sociedade, não poderia estar com o governo. Não basta um governo bem intencionado.

Suponhamos que o ministro Ciro seja a pessoa mais bem intencionada do mundo, o ser perfeito: ainda assim, não podemos garantir que depois do seu exercício um governante mude. Se envolvermos a sociedade e esse assunto for discutido, amadurecido, o próximo não terá alternativas, ou diminuirá a possibilidade de ele cometer o impropério de interromper o projeto. Isso é fundamental, senão corremos o risco de termos um “elefante branco”. Não será nem a primeira, nem a última vez.

Rets – O senhor acha que houve falha de ambas as partes, por não saberem focalizar o ponto mais importante desse debate?

Paulo Canedo – Começou errado por culpa do governo. E não desse governo, que esse assunto já vem de longa data. Os governantes sempre puseram luz na transposição, o que fazia o caldo propício para uma discussão emocional, porque a própria conceituação do problema é emocional. Como deveria ser o título que represente o objetivo-fim desse projeto? Promover o desenvolvimento econômico e social em uma região que tem desvantagens comparativas em relação às demais do Brasil. Dar igualdade de oportunidades. Essas desvantagens devem ser retiradas, isso faz parte de uma política pública das mais corretas. Esse é o projeto! Pra isso eu vou usar a transposição. O objetivo não é transpor, o objetivo é equilibrar as relações das regiões brasileiras. E porque deu-se o nome errado – isso pode ser uma das explicações – estamos penando em uma discussão emotiva, não racional.

Rets – E a própria sociedade civil não soube trazer o assunto para esse foco?

Paulo Canedo – É que, em geral, a sociedade acompanha, a sociedade não guia. Os líderes é que conduzem, e nós fomos mal conduzidos. Agora temos dificuldades de reverter.

Fausto Rêgo

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer