Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Artigos de opinião
Sueli Carneiro*
![]() Ilustração: Peter Kuper | ![]() |
Em 1995, quando da realização da Marcha Zumbi Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, afirmávamos na separata que divulgou o documento oficial da marcha que ela era o “ato político mais importante realizado pelo Movimento Negro Brasileiro nos últimos 20 anos. A Marcha demonstrou que somos capazes de dar à luta contra o racismo um caráter unitário e nacional, respeitando as diferentes perspectivas em ação política existentes no Movimento Negro. Esta ação unitária e nacional nos habilita como interlocutores dos poderes constituídos de nossa sociedade e nos coloca como agentes de transformação das condições de vida do povo negro deste país. Nesse sentido estamos diante de um desafio histórico: consolidar esta perspectiva política aberta pela Marcha ou retornar às velhas práticas que, a serviço do racismo, têm nos transformado em inimigos uns dos outros. Que os Orixás nos iluminem para que estejamos à altura dos desafios que o avanço de nossa luta nos coloca hoje.”
Passados dez anos estamos novamente diante dos mesmos desafios, porém numa conjuntura significativamente diferente daquela. Costumo usar abusivamente de frase cunhada por Jurema Werneck e que já transformei em bordão para ilustrar diferentes situações. Diz ela: “a era da inocência se acabou, já vai tarde”. Se, de um lado, essa frase expressa os desencantos e desesperanças em relação à conjuntura política atual, de outro, ela equivale também a uma oportunidade de libertação dos mecanismos que historicamente vêm tutelando a ação política dos negros brasileiros, anunciando a possibilidade de sairmos da minoridade política para alcançarmos o patamar de autonomia e autodeterminação que caracteriza qualquer movimento social maduro e consciente do papel histórico que lhe cabe cumprir em defesa dos interesses dos seus.
Isso requer coragem política de afastar-se das formas consentidas e subordinadas de resistência; das agendas políticas que exigem sujeição e fidelidade a pactos políticos estranhos aos nossos interesses, da cultura política que se contenta com as migalhas que os poderes instituídos reservam aos considerados politicamente irrelevantes.
Diferentes atores hegemônicos vêm vocalizando propostas de novos pactos políticos à revelia dos atores sociais que expressam as dimensões mais agudas da dívida social. Esses ensaios de concertação político-social pelo alto adensam novas e inusitadas dimensões à Marcha de 16 de novembro próximo, que exigem de nós não apenas uma definição conseqüente e competente da agenda política capaz de inscrever efetivamente a nossa racialidade nos quesitos básicos da cidadania e que tem no Estatuto da Igualdade Racial, tal como proposto pelo senador Paulo Paim, a sua melhor tradução, como também exige uma leitura da atual conjuntura e de seus possíveis desdobramentos no futuro imediato, sobretudo no que diz respeito ao desafio de tornar o ativismo negro em sujeito político relevante nos processos de construção dos novos contratos sociais que começam a ser ensaiados na sociedade brasileira.
Dentre as muitas questões que temos a responder para que a Marcha Zumbi+10 encontre seu ponto mais elevado de expressão do protagonismo negro estão: quais são os cenários políticos que se delineiam? Qual o espaço político em cada um deles para nossas reivindicações? Quais as possibilidades de seu atendimento? Para quando? Com quem? A agenda de políticas públicas que temos a propor é para agora ou para o próximo mandato? Quais são as condições políticas para a pressão pela aprovação do estatuto e demais pleitos?
Em qualquer dos cenários que identifiquemos, é certo que já é hora de o Movimento Negro resgatar a iniciativa política, numa demonstração de que não se dispõe a aceitar passivamente ou se limitar a apenas referendar arranjos políticos entre velhas e novas elites políticas. É hora de sair da condição de reféns, de recusar a tutela como modo de subjetivação política, de encarar a trágica realidade de que estamos sós, por nossa própria conta e que, se não fizermos por nós, ninguém o fará. É hora de ousar e exigir lugar nas mesas de negociação que pretendem refundar os dispositivos de poder da República sem a participação republicana de todos.
*Sueli Carneiro é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra (www.geledes.org.br). Este artigo foi publicado originalmente na edição nº 11, do jornal Irohin.
A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer