Você está aqui

Cooperação que vem da terra

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original:






Cooperação que vem da terra
www.thp.org
Para a moçambicana Celina Cossa, a chave do sucesso dos países africanos e do Brasil está no desenvolvimento local. Ela, que já recebeu um prêmio internacional em reconhecimento à sua liderança em Moçambique - onde foi uma das fundadoras da União Geral das Cooperativas, que reúne cinco mil pessoas - defende a colaboração entre as comunidades, e até mesmo países, para que a miséria seja superada.

Cossa sabe das dificuldades para que isso aconteça, mas afirma ser persistente. “Desde criança gosto de desafios”, diz, lembrando da história de sua vida, marcada por diversas superações.

A moçambicana esteve no Brasil em outubro participando da quarta edição da Expo Brasil Desenvolvimento Local, evento que apresenta diversas iniciativas baseadas no desenvolvimento local. Cossa veio conhecer experiências brasileiras e também participar do lançamento do site do projeto Cooperar em Português. A página reúne textos e documentos relacionados a economia solidária, desenvolvimento rural e comunitário, além de metodologias de trabalho produzidos por países de língua portuguesa.

Na ocasião, ela conversou com a Rets sobre a situação política de seu país e sobre a necessidade de fomentar o desenvolvimento local e a colaboração entre os países de língua portuguesa.

Rets - Explique um pouco de seu trabalho na cooperativa e sua trajetória.

Celina Cossa - Meu nome é Celina Cossa, sou camponesa e presidente da União Geral das Cooperativas, organização criada pelos próprios membros das cooperativas em Moçambique. Ela congrega cinco mil pessoas de 185 cooperativas. Por causa da própria natureza da organização, temos várias atividades, como agricultura, carpintaria, olaria e, na área social, temos nosso centro de formação profissional, que consideramos o segredo de nosso desenvolvimento. Também temos escolas de todos os níveis, inclusive de ensino técnico.

Consideramos o microcrédito como o setor mais importante para nosso desenvolvimento. Iniciamos os empréstimos de uma maneira não reconhecida pelo Banco Central, mas agora já somos reconhecidos, com todos os requisitos de um banco. Mas trabalhamos mesmo para atender carências, pessoas que não têm nada, que não têm como pagar sua hipoteca...

Criamos um sistema que nos garante um retorno de 99%. Existem técnicos e pessoas que acompanham as pessoas quando elas tomam empréstimos. Quando pegam um microcrédito, recebem uma preparação para gerir melhor seu negócio.

Apoiamos também quem não faz parte de nossa organização, pois nosso objetivo é o desenvolvimento local. Nossas escolas e postos de saúde não são para atender apenas os associados e seus filhos, mas a todos. Quando começamos, era só para atender os membros da cooperativa, mas vimos que na localidade onde estamos não podemos dividir. Afinal, para podermos comercializar nossos produtos, precisamos de pessoas saudáveis e que tenham como consumir. São nossos clientes que garantem nossa sustentabilidade.

A União é uma experiência de 25 anos, foi fundada em 1980. Quem manda nela, apesar de eu ser a presidente, é a assembléia. Nós do conselho de direção apenas implementamos as decisões tomadas nas reuniões. E temos também uma rádio comunitária que permite nos comunicar entre nós e com a sociedade. Isso nos permite ser conhecidos mesmo fora de nossa área.

Rets - E em relação a você?


Celina Cossa - Comecei a trabalhar na organização como coordenadora, mais tarde fui caixa e fiel [ajudante de tesoureiro]. Depois fui eleita presidente. Devo o que sou a este movimento, onde me inspiro para trabalhar. Não consigo ficar um dia sem me comunicar com as pessoas, principalmente com os conselheiros, os presidentes das cooperativas.

Este é meu segundo mandato e agora também faço parte da Assembléia Municipal [o mesmo que [Câmara Municipal]. Pedi aos conselheiros para que me deixassem ir para a política, mas sem largar a organização. Já ganhei um prêmio de US$ 50 mil, dedicado aos líderes de combate à pobreza e o investi na União Geral, o que me deixou muito honrada. Em agosto recebemos um prêmio, voltado para a empresa que mais elevou suas exportações de castanha de caju. Foi um estímulo muito grande. Ainda assim, não estou satisfeita com os resultados, quero mais. A luta contra a pobreza é permanente, sobretudo em nosso país, onde há grande desemprego.

Rets - Voltando um pouco no tempo, como foi sua infância, sua adolescência e como surgiu a cooperativa?

Celina Cossa - Desde criança gosto de desafios. Me lembro que quando tinha 12, 13 anos, substituía professores quando eles faltavam, pois diziam que eu era inteligente. Às vezes eram pessoas maiores do que eu, mas nunca tive medo.

Cheguei a pensar em ser freira, mas me disseram para escolher e acabei não seguindo esse caminho. Quando informei minha decisão a uma freira com a qual conversava muito, ela disse “não podemos perder a Celina”. Então me mandaram para um curso de formação de professores.

Mais tarde tive meu primeiro filho, meu marido foi para a tropa [exército]. Fui obrigada a largar a tarefa de ensinar e cuidar do meu filho para tomar conta da loja do meu marido. Tive ainda que tomar conta da minha avó, que me deu mais educação que minha mãe. Até hoje não aceito idade como desculpa para não fazer alguma coisa.

Cada um de nós é capaz de fazer algo. Temos que tirar essa mentalidade de que não somos capazes de fazer nada. Por isso quando me chamaram para ser presidente da assembléia municipal, aceitei. Afinal, fui a pessoa mais votada de Maputo.

Com o prefeito, criamos a “presença aberta”, um espaço nos bairros e nos distritos para ouvirmos os munícipes, deixá-los mais próximos de nós. Para nós isso não é marketing, é contato direto para decidirmos o que é prioridade. Assim vamos superar os obstáculos à burocracia.

Rets - Como você analisa a atual situação política de Moçambique?

Celina Cossa - Creio que está caminhando bem. Apesar de nossas divergências políticas, há um respeito mútuo, por isso não há espaço para muitas intrigas. O povo também tem uma certa maturidade, por não querer mais a guerra.

O presidente [Armando Emílio Guebuza] e seu partido também fazem um esforço, não fazem discursos longos, incompreensíveis, mas sim com linguagem compreensível.

Rets - É possível dizer que em Moçambique já há uma cultura de solução de conflitos de maneira pacífica?

Celina Cossa - Sim, a oposição não quer guerra. E nem há mais espaço para isso, pois as guerras, principalmente nos países africanos, são um atraso. É importante consolidar cada vez mais essa paz, pois há espaço para todos.

Há um desastre acontecendo hoje, principalmente na África. As pessoas morrem de qualquer maneira: por guerra, de fome, outros querem o poder à força. É preciso seguir o exemplo de Mandela [Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul], que depois de dois mandatos disse não querer mais o poder. É difícil alguém largar o poder, mesmo sabendo que não está fazendo o bem. A pessoa pensa que está no caminho certo, mas não quer se esvaziar de seu eu. Não é possível, não vai de acordo com nossa realidade. Por isso apelo a todos os que ainda estão nessa situação a pararem.

Nosso país ainda é virgem, com muito a fazer. Logo, por que não fazem algo ao invés de só pensarem em se manter no poder? Mas também é preciso tirar lições dos erros, os políticos precisam pensar nos locais. Eu sou política e estou há 25 anos numa organização porque me querem lá. Porém, se querem me manter como figura, ainda assim preciso dar espaço a outras.

Rets - Sobre o Fórum de Língua Portuguesa criado oficialmente na última Expo Brasil Desenvolvimento Local, qual sua opinião sobre ele? Você estará no Brasil ano que vem para levar adiante a idéia?

Celina Cossa - É uma iniciativa muito importante. Nunca sentei em uma cadeira de universidade, mas discuto com pessoas da Academia, pois minha universidade são esses fóruns. Para mim, a universidade é o mesmo que fazer uma viagem muito longa na qual testa suas capacidades, fala com várias pessoas ao mesmo tempo, admite seus erros etc. O intercâmbio ajuda a valorizar nosso trabalho. Gosto de escrever quando estou dando palestras, pois penso no que posso ter falado errado, em novas idéias.

Aprendi que não se pode copiar modelos, e essa é uma oportunidade de conhecermos outros modelos de desenvolvimento. Trabalhar em grupo desenvolve muitas das nossas capacidades, e esse espaço de comunicação serve para sabermos o que acontece no Brasil, em Moçambique.

Rets - O que você tirou de melhor desse encontro?

Celina Cossa - Fiquei encantada com algumas apresentações. Muita gente diz que não pode fazer isso ou aquilo por falta de dinheiro, e vimos pessoas contarem casos de sucesso obtido sem recurso algum. Também é bom para fazer contatos, conhecer novas realidades.

Nosso problema é ter uma idéia para concretizar e depois pensar naquele monstro grande que é o procurar dinheiro. Não tem que pensar nisso, mas em como fazer as coisas, senão fica parado. É preciso começar e depois chamar as pessoas para ver, pois as pessoas aceitam estender a mão quando vêem coisas concretas. Temos que fazer acontecer.

Esse é um grande erro dos governantes. Muitas vezes não querem fazer um projeto por ser de outro político, mas esquecem que têm apenas quatro anos, o que é muito pouco. Esse, aliás, foi um erro dos legisladores. O primeiro ano é de aprendizagem, para se familiarizar com o terreno, no segundo vai começar a fazer os projetos, no terceiro a procurar amigos, no quarto, quando vê, não fez nada. Daí cada um tenta tirar seus proveitos das situações e o povo vai ficando assim.

Rets - Você gosta de ser política?

Celina Cossa - Sim, gosto muito de falar com as pessoas, por isso achei a política um bom caminho. É preciso ter esse sentimento de não ficar satisfeito só com aquilo de que está a usufruir, com o bom salário. É preciso chegar em casa no fim do dia e fazer exame de consciência e pensar no que se pode fazer. Não somos salvadores, mas temos que lutar e aceitar desafios.

Rets - Acaba de ser lançado o site Cooperar em Português, que pretende reunir conteúdos sobre desenvolvimento local de vários países lusófonos. Como é o acesso à Internet em Moçambique?

Celina Cossa - Há muitas pessoas em Moçambique e poucas têm acesso à Internet. Acho muito importante para nossos países de língua portuguesa começarmos a colaborar, pois a minha parte na produção de conteúdo pode servir a outras pessoas. Todos estamos a trabalhar para melhorar a vida das pessoas. O que cada um de nós faz serve para complementar as ações do governo. Só assim podemos acabar com a pobreza do mundo. Isso é o que significa o desenvolvimento local, pois a comunidade é o começo de tudo.


Luísa Gockel. Colaborou Marcelo Medeiros

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer