Autor original: Maria Eduarda Mattar
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Misto de artista e engenheiro, o norte-americano Christopher Csikszentmihályi dirige o grupo cultural de informática do Media Lab, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), um dos centros mundiais de produção tecnológica. Porém suas principais preocupações não são bytes, robótica ou software. São injustiça, liberdades civis, autonomia de cidadãos. E é para tentar resolver, ao menos em parte, esses problemas que ele e seus alunos têm realizado projetos tão inusitados quanto robôs-jornalistas e sistema de informações sobre congressistas norte-americanos.
Ele esteve no Brasil durante os dias 8 e 9 de novembro para participar do evento Tangolomango. Na ocasião, contou à Rets que procura criar, com sua equipe, projetos que busquem justiça social e estimulem o uso alternativo de tecnologias como a Internet. Para Csikszentmihályi (que se pronuncia "ticsentimirrái"), tudo vem sendo criado segundo padrões do mercado, da indústria e dos governos e, para se opor a isso, é necessário que as pessoas tomem para si a concepção e construção de tecnologias, segundo valores mais humanos e humanizadores. Ele critica a radicalização da individualidade que certas tecnologias permitem e diz que, hoje em dia, o que o move é reagir ao mundo cataclísmico que percebe ao seu redor.
Rets - Em sua palestra, você falou sobre o acesso da sociedade à tecnologia. Como acha possível ampliar esse acesso?
Christopher Csikszentmihályi - Todo mundo tem acesso à tecnologia, dependendo da tecnologia. Se falamos de computadores, isso é uma coisa. Mas se falamos de telefones celulares, a história é bem diferente, muitas pessoas usam celulares hoje em dia. O problema é que há uma razão mercadológica por trás da concepção de todas as tecnologias que temos. Cada canção é feita por uma razão de mercado, cada filme, cada romance... e o que realmente importa é que a humanidade é afetada pelo trabalho de indivíduos, de pessoas com diferentes motivações. E, por alguma razão, aceitamos a idéia de que tudo que temos em casa ou no escritório tenha sido feito dessa forma: por causa do mercado.
A questão é aumentar o número de pessoas capazes de produzir tecnologia, aumentar a variedade de motivações e estilos de produção de tecnologia. É disso que procuro tratar: não tanto da questão do acesso ao uso da tecnologia, mas do acesso a formas de produzi-la. Uma coisa que tem se tornado absolutamente clara é que o software livre provocou uma enorme mudança no cenário de quem está desenvolvendo softwares. O problema, até o momento, é que, ainda que esteja crescendo o número de pessoas internacionalmente envolvidas em novos programas, linguagens, sistemas ou técnicas, tudo isso está ficando muito disperso. Isso aumentou tremendamente a capacidade de compartilhar projetos internacionalmente. O interessante é que a oferta tem sido muito grande em termos de produção, e as pessoas que fazem software livre também estão ganhando dinheiro em consultorias. E, em geral, estão reproduzindo aqueles tipos de software que competem com a Microsoft, com a Oracle. Então ainda não vimos aquela grande explosão da diversidade de tipos de softwares. Essa é uma questão muito mais de estilo e cultura de quem programa computadores do que uma questão de país, geografia ou o que quer que seja. A gente vê novos bancos de dados para bancos, programas de correio eletrônico, aplicações para escritório, ou seja, tudo ainda muito relacionado a trabalho, a negócios.
Duas coisas precisam mudar. Uma delas é a reeducação das pessoas que não se vêem fazendo uma coisa “técnica”, isto é, tentar fazer com que gente de diferentes perfis se interesse por tecnologia. E a outra, que é o trabalho que eu faço, é reeducar engenheiros e quem sabe tentar corrompê-los [risos] com idéias de humanismo e questões sociais.
Mas isso é uma metade. A outra metade do que acho que deve acontecer é um olhar sobre produtos e hardwares, essas coisas que exercem um poder material em nossas vidas. O software é uma parte disso, assim como automóveis, bicicletas, cafeteiras, todas essas coisas que nos rodeiam. E acredito que muitas dessas coisas poderiam tirar proveito dessa mesma compreensão “open source” [livre, aberta]. Seria algo como uma mudança do padrão colaborativo de software livre baseado na Internet para um padrão colaborativo de hardware livre baseado na Internet.
Rets - Quando se fala em produzir tecnologia, pode-se considerar também uma questão de produção de conhecimento e do que fazer com ele. Como atingir esse padrão e fazer com que pessoas pobres, por exemplo, tenham acesso ao conhecimento e o produzam também?
Christopher Csikszentmihályi - Acesso ao conhecimento e produção de conhecimento são duas coisas diferentes. Para produzir, você tem que ter acesso. Não é o que venho pesquisando diretamente, mas acredito que seja uma questão de governança, de política, e o que tento fazer é recolocar a política dentro da tecnologia. O que motivou, em parte, os movimentos sociais nos EUA, principalmente após os anos 60, e em Paris, com os estudantes de 1968, foi uma reação à tecnologia, à tecnocracia, onde decisões sobre o conhecimento, a forma como ele era adquirido e como a sociedade seria dirigida eram tomadas por burocratas. Os protestos eram contra a tecnocracia que governava o mundo. Isso é ótimo, as manifestações estavam corretas, mas o problema é que em determinado momento começou a ficar "fora de moda" as pessoas de esquerda se envolverem com tecnologia. Então vimos um retorno à velha sociologia, aos limites da humanidade.
Acontece que o desenvolvimento não pára. O problema, agora, é que os novos estudantes de engenharia não estão nisso para melhorar a sociedade ou pelos velhos valores da engenharia. Eles estão entrando nos cursos por causa do dinheiro. Por isso estou tentando criar, com minha equipe, projetos que busquem justiça social e estimulem o uso alternativo de tecnologias como a Internet ou de "softwares sociais". Tento fazer, por exemplo, projetos que melhorem as condições das favelas. Não pretendo criar polêmica em torno disso, mas quero reenergizar a imaginação da esquerda e, em parte, do mundo através da tecnologia, e não só por meio de literatura e filosofia francesa. Podem atingir os mesmos objetivos, mas por meio da tecnologia. A pergunta central é: "pode-se desenvolver tecnologia de uma forma que não seja voltada para os negócios, como faz o movimento de software livre?".
Rets - E você tem a resposta?
Christopher Csikszentmihályi - As respostas são os projetos que fazemos. Eles atuam em diferentes níveis. Um deles procura expor a ideologia desse tipo de tecnologia, mostrando o que seu sucesso inclui ou esconde e desenvolvendo evidências de tecnologias alternativas. Elas não serão produzidas em massa, não têm o marketing que esse tipo de produção possui, mas há várias razões para fazê-las, mesmo assim. Em primeiro lugar, sua existência diz algo; em segundo, diz tanto quanto um livro. Em essência, um livro é um grande ato simbólico que diz “é dessa forma que devemos pensar, é assim que devemos direcionar nossa atenção”. Então, de certa forma, publicamos algo ao fazer tecnologia.
Há também a tentativa de convencer novos engenheiros de que eles podem trabalhar de uma maneira diferente. Há muitos alunos - de 18, 19 anos - que não percebem quão conservador seu trabalho com tecnologia será. Por isso tentamos mostrar como eles serão daqui a alguns anos e como eles podem atingir novos campos. Um exemplo disso é a existência nos EUA, atualmente, de um grande esforço para o desenvolvimento de sistemas cada vez melhores de informação visual. São satélites, telescópios, sistemas de processamento de imagens etc., que podem, por exemplo, ler uma placa de automóvel nas ruas do Rio de Janeiro. O quanto disso é verdade eu não sei, acho que muito é verdadeiro, sim. São óculos de visão noturna e outros sistemas, entre eles a possibilidade de verem o que quiserem em qualquer lugar do mundo e que servem a pessoas com muito dinheiro. É uma idéia bastante reveladora essa questão de usar a visualização como poder.
Pode-se argumentar isso, mas acredito que, fisicamente, esses sistemas dão, sim, poder às pessoas. Elas matam pessoas em países remotos sem arriscarem suas vidas. E isso, de certa forma, é poder. Então, o que tenho feito é ver as sombras causadas por todo esse trabalho dos sistemas militares de imagens. Ao mesmo tempo, nos últimos 40 anos, os americanos têm cada vez menos acesso às imagens das guerras que os EUA começam. Isso é uma contradição louca. Toda a energia tem sido posta no desenvolvimento de sistemas com os quais os militares podem controlar o espaço, e os jornalistas não têm como fugir disso. Se você olha a tecnologia que os repórteres possuem, é praticamente a mesma desde a invenção do telefone. Existem telefones celulares e via satélite, mas, na realidade, os militares detêm os satélites que controlam os aparelhos. Então, essas tecnologias não ajudaram no Afeganistão, por exemplo. Os militares compraram todo o espaço aéreo do país, alegando que precisariam dele, mas na verdade queriam ter privilégios sobre conversas de telefones via satélite. É muito bom ter toda essa tecnologia disponível, mas, por outro lado, não tem havido um uso democrático. Por isso, ao construir os exóticos robôs-jornalistas, nós do Media Lab pudemos apontar essa disparidade entre desenvolvimento tecnológico e a falta de informação que persiste.
Rets - Quando você e sua equipe estão concebendo um projeto, sempre pensam no aspecto social que a tecnologia deve ter? E, se querem que o projeto tenha uma finalidade social, vocês podem tomar medidas para garantir isso?
Christopher Csikszentmihályi - Esse é um dos problemas mais interessantes e críticos relacionados à tecnologia, e gasta-se pouco tempo falando disso. Trata-se dos usos potenciais e abuso de uso das tecnologias. Não é tão diferente do que pode acontecer com livros ou filmes. Li recentemente um ótimo artigo do editor do filme Apocalipse Now, de Francis Ford Copolla. Ele fala sobre um novo filme que está sendo feito, que é contra a guerra. Este novo filme foi escrito em parte por uma pessoa que serviu na primeira Guerra do Golfo e relata como os soldados assistiam ao filme Apocalipse Now para se animarem antes das batalhas, especialmente a cena em que os helicópteros sobrevoam a praia. Copolla e o editor haviam feito de Apocalipse Now um filme que se mostra contra a guerra. Mas os soldados adoravam a cena, animavam-se com ela. Esse é um exemplo de uso subvertido de uma obra. Se Copolla soubesse que serviria para isso, não sei o que ele teria feito.
Ou seja, ao ver uma determinada obra ou documento, se você já estiver convencido de alguma coisa, terá interpretações diferentes, de acordo com o que você pensa. Tecnologias são muito parecidas com isso. O interessante é que, assim como um filme ou um livro, a tecnologia também tem efeitos profundos claros, o poder dessas obras é indiscutível. O que é muito estranho: você pode olhar para a tecnologia e consegue ver a ideologia e, normalmente, se a tecnologia estiver funcionando direito, ela é um tanto quanto invisível, e a ideologia funciona intrinsecamente à tecnologia.
Em alguns casos, a tecnologia pode ser dramaticamente usada de forma incorreta. Em casos extremos, quanto se trata de uma tecnologia absolutamente nova, esta pode ter efeitos enormes, que não se poderiam prever e não necessariamente têm a ver com uso incorreto ou abuso. Por exemplo, a Internet. Ela tem alguns dos usos que se esperava, mas outros que ninguém imaginou. Não chega a ser abuso ou uso incorreto, é um uso alternativo. Há até exemplos de abuso, mas está funcionando do jeito que os autores pretendiam.
Já o toca-discos, por exemplo, tem a ideologia de que a música seja vendida, que se torne algo que as pessoas escutem e consumam. Mas nos guetos, na Jamaica, em Nova Iorque, as pessoas começaram a usar esse aparelho, que tem originalmente a ideologia de reproduzir músicas e fazê-las serem “consumidas”, para fazer música, ao começarem a usar o scratching [técnica utilizada por DJs que consiste em segurar e soltar um disco de vinil para produzir ruídos como se o disco estivesse sendo arranhado]. Este é um exemplo de subversão que cria um uso interessante e alternativo da tecnologia.
E, finalmente, há aquelas tecnologias que promovem a ideologia sem nós percebermos. Por exemplo, elevadores. Ninguém usa o elevador sem ser com o fim para o qual foi feito. Talvez para coisas muito estranhas... [risos] De qualquer forma, é uma tecnologia raramente subvertida, e a ideologia é transportar pessoas para cima e para baixo em edifícios.
Ou seja, há graduações de como a tecnologia funciona e de como a ideologia pode ter um papel mais de pai ou mãe da tecnologia.
Quando fazemos nossos projetos, gastamos algum tempo pensando nisso. Mas somos humildes, pois sabemos que não vamos sempre saber e ter controle de como vai ser usado.
Rets - Entre os projetos de sua equipe, há algum que possa facilmente sofrer essa subversão?
Christopher Csikszentmihályi - Uma das minhas alunas fez um projeto que é um sistema que desativa telefones celulares. Seu objetivo era marcar uma posição sobre como as pessoas se tornam rudes quando estão com celulares. Sua tese era sobre como a tecnologia individual enfraquece o senso de sociedade, de coletividade. E isso é importante pois o público-alvo da tecnologia, nesses casos, é o consumidor. Quando se imagina vender algo, imagina-se convencer uma pessoa e vender para ela, pois tem o poder de consumo etc. Há exceções: a tecnologia de defesa é voltada para as Forças Armadas; tecnologia educacional é voltada para escolas.
Mas, de maneira geral, a tecnologia é concebida tendo em mente um único indivíduo. A promessa que tecnologias como o telefone celular encerram é que você como pessoa vai ficar mais poderoso, relaxado, seja o que for. Mas o elas escondem é que vivemos juntos, em sociedade. Relativamente, estuda-se muito pouco o impacto das tecnologias individuais no todo da sociedade.
A opinião dessa minha aluna, então, era que os celulares são um ótimo exemplo disso. Muitas pessoas não sabem medir a altura da voz para falar ao telefone, atendem as ligações no meio de uma platéia, sussurrando, ou correm para fora etc., coisas que nunca fariam quando não havia celular. Isso as fortalece isoladamente, mas esvazia e enfraquece a experiência de estar num cinema ou situação semelhante.
Assim, ela inventou um dispositivo que desativa os celulares num raio de três metros, recobrando, assim, o controle sobre o espaço sonoro e social ao redor. O interessante é que – e, como ela era uma estudante de mestrado, se safou – seu grande erro foi conceber algo que era um erro ainda maior do que o uso de celular. O invento pode ser usado para impedir que as pessoas façam ligações celulares em uma emergência, ou uma pessoa pode deixar de receber um telefonema que era tremendamente importante
Rets - E erra também ao, mais uma vez, servir a apenas um indivíduo...
Christopher Csikszentmihályi - Exato, esse é o erro. Passa do limite ao servir a um indivíduo, assim como faz um celular. Ela se formou, mas não deveria. Celulares são usados pelas mais variadas razões. E podem-se imaginar inúmeras situações em que seria inapropriado uma pessoa ter o poder de desativar os celulares ao redor.
Mas o inesperado nesse projeto foi que, dois meses depois que ela publicou na Internet o trabalho – é ilegal vender essas invenções e provavelmente também é ilegal usar (apesar de ser muito difícil descobrir se alguém está usando), mas é permitido publicar – ela recebeu um email de um coronel do Exército. Ele estava trabalhando na área de segurança telefônica no Departamento de Energia em algum tipo de projeto secreto de espionagem. Ele escreveu agradecendo e dizendo que o projeto dela era melhor do que o deles e que eles, então, passariam a usá-lo. E isso é totalmente verdade. [risos] Ela é muito boa engenheira. Ele escreveu dizendo “parece que você liberou todo o código do seu projeto, então acho que só estou te escrevendo para agradecer.”
Rets - Você tem alguma invenção preferida?
Christopher Csikszentmihályi - É mais ou menos como quando você vai à casa de bons pintores e vê todas as pinturas empilhadas. Eles parecem não se importar muito depois que estão prontas, só o que conseguem ver são as falhas. Isso acontece comigo também. Olho para os projetos e, em 90% do tempo, penso “poderia ter feito isso ou aquilo”; nos outros 10%, fico orgulhoso.
Mas acho que o mais emocionante foi o Government Information Awareness, que é um sistema para espionar membros do governo norte-americano. É bem complicado, foi feito majoritariamente por um dos meus alunos, com muita orientação minha. É uma tecnologia que nós não queríamos realmente ver pronta, mas sentimos que devíamos fazer, pois o outro lado – ao qual estávamos reagindo – era muito forte. Ela foi concebida em 2003, depois que o governo norte-americano aprovou uma série de leis que... aliás, antes eles entraram em guerra, ao invadir o Iraque, mas domesticamente também estavam mudando muito. Reduziram drasticamente a quantidade de informação que liberavam para a população sobre o que estavam fazendo.
Por exemplo, há a Lei da Liberdade de Informação, segundo a qual um cidadão pode requisitar documentos sobre as coisas do governo. O chefe do Departamento de Justiça, John Ashcroft, determinou que qualquer funcionário governamental que tivesse que responder a algum pedido pela Lei de Liberdade de Informação teria que se reportar a ele. E isso foi como um recado para os funcionários de que eles não precisariam mais cumprir as requisições. E aconteceram várias outras coisas como essa. Ocorreram reuniões com os diretores das indústrias de petróleo para ajudar a esboçar a nova legislação na área de energia. E eles se recusavam a dizer quem estava nessas reuniões, o que é ilegal. Isso mostra metade da situação em que nos encontrávamos lá, com o governo ficando menos transparente.
A outra metade era o governo aprovando leis que os permitia obter informação sobre o cidadão comum, por exemplo, investigando o que ele leu na biblioteca, lendo seus emails. Depois dos anos 1960 e 1970, quando se descobriu que o FBI estava assassinando membros dos Panteras Negras, foram criadas leis que tornavam muito difícil esse tipo de espionagem. Mas após os acontecimentos de 11 de setembro tudo isso desapareceu e se tornou incrivelmente fácil para o FBI ou outro tipo de polícia investigar sua conta telefônica etc.
Então, de um lado, é difícil saber o que o governo está fazendo; de outro lado, é fácil o governo saber o que você está fazendo. E isso é uma contradição completa, ainda mais quando se pensa nos motivos que levaram à fundação dos EUA. Assim, esse meu aluno me mostrou seu projeto. Ele tinha analisado um sistema muito perigoso chamado Total Information Awareness (TIA), um projeto da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa (Darpa), a mesma agência que criou a Internet. Uma instituição amada e odiada no Departamento de Defesa, que se dedica a pensar em pesquisas 20 anos para frente. Em 1960, inventaram a Internet. Ou seja, estavam realmente 20 anos à frente. Eles são muito bons no que fazem. Depois de 11 de setembro, o foco deles começou a ficar cada vez mais perto da atualidade, contratando pessoas para projetos de muito curto prazo.
A Darpa estava envolvida no TIA, que envolve U$ 500 milhões por ano. A idéia era desenvolver um sistema com o qual se pudesse espionar todo mundo, a todo momento. Não só os americanos, mas todo o planeta, espionando seus telefonemas, seus emails. Usariam o que você compra nas lojas, seus registros médicos, mesmo que você estivesse em outro país. Eles não tinham uma forma legal de juntar toda essa informação. Mas, mesmo assim, estavam montando a garagem na qual ela estacionaria. É amedrontador.
E há duas razões pelas quais nos opomos ao TIA. A primeira é que sabemos que, toda vez que um governo faz isso, haverá problemas. Não faltam exemplos sobre o que acontece quando um governo tem muito poder, e eles foram eloqüentemente previstos por James Madson e as outras pessoas que fundaram os EUA. Os Estados Unidos deveriam, então, estar se opondo a isso e dando às pessoas mais poder. Para os governos, é muito fácil conseguir mais poder. Mas o oposto não acontece.
A outra razão que nos levou a querer construir nosso sistema de espionagem dos membros do governo foi a noção de que, tecnicamente, o TIA nunca funcionaria. Não há um sistema que consiga calcular tudo isso. Eu uso quantidades semelhantes do meu tempo visitando sites de grupos fascistas e de grupos liberais. A que conclusão se poderia chegar sobre mim com esses dados?
A intenção, então, já que o governo não nos estava dando informação, era pegar o modelo deles e inverter as coisas. Queríamos ver o que o cidadão comum pode conseguir de informações sobre o que o governo está fazendo sem a sua permissão. Então, se todo político tem uma farmácia preferida, um conselheiro financeiro, uma prostituta da qual é cliente, uma lavanderia onde lava suas roupas, todas essas informações poderiam ser colocadas online anonimamente e, assim, seriam criados arquivos sobre cada político, dizendo o que ele está fazendo, aonde está indo e coisas desse tipo. E poderíamos criar uma espécie de agência de informações dos cidadãos, formada por eles.
Ou seja, em linhas gerais, desenvolvemos uma forma de as pessoas contribuírem anonimamente com informações sobre membros do governo. Estava previsto também o uso de robôs de busca na Internet, que iriam aos sites de ONGs puxar informações e organizá-las de uma forma excelente.
Certamente este não é um sistema bom, pois todo mundo merece privacidade. Mas se os oficiais do governo estavam nos negando nossos direitos, então devíamos usar isso contra eles. E se usarmos um sistema ponto-a-ponto (P2P) e tivermos um servidor central em outro país, o governo não teria muito o que fazer contra nós.
Esse projeto levou nove meses para ficar pronto e se mostrou incrivelmente poderoso. Sete horas depois de o colocarmos no ar, já tínhamos o endereço residencial do direto da CIA [Agência Central de Informações], a lista telefônica interna do Departamento de Justiça completa e acesso a documentos fenomenais. Foi muito amedrontador, aterrorizante.
Sabíamos que eles tinham consciência do que estávamos fazendo, pois a Agência Nacional de Segurança (NSA), que é supersecreta e poderosa, financia o nosso laboratório. E é até engraçado, pois volta e meia eles nos visitam e a mesma pessoa que hoje te apresenta um cartão com um nome volta daqui a três meses com um cartão com nome diferente. E, certa vez, uma agente que estava nos visitando admitiu que nosso projeto incomodava. “Nos deixa muito desconfortáveis”, disse ela.
Uma coisa boa foi que conseguimos atrair muita atenção para o projeto original. Mas, no fim, o Senado retirou o financiamento. Não foi só por nossa causa, foi por causa de muitas e muitas pessoas que trabalharam duro, jornalistas, políticos etc., que colocaram as informações no sistema. Sei que tivemos um efeito nisso, não sei de qual proporção, mas sei que ajudamos nesse produto.
O projeto poderia ter dado certo, mas era muito visível. Atualmente ele está dividido e muito menos aparente. Ele foi dividido em partes pequenas, delegadas a universidades, empresas, aqui e acolá, o que o torna muito mais difícil rastrear. O meu aluno que fez este projeto está trabalhando hoje em dia em um banco de dados para tentar rastrear pesquisas secretas de armas de inteligência. Assim, qualquer pessoa que souber de algum projeto secreto e que queira submeter anonimamente pode fazê-lo através desse sistema. A intenção é mapear esses projetos. Ele também está trabalhando em um sistema que funciona como um sistema de código aberto de hardware, chamado Instructables, que funciona como um repositório de invenções simples para outras pessoas conhecerem e aproveitarem. Pessoas de todo o mundo podem contribuir. Nas ruas, as pessoas têm muito menos recursos, porém surgem soluções incríveis e criativas.
Rets - Você menciona, em suas palestras, o uso político e o uso poético das tecnologias. Você poderia explicar um pouco melhor essa distinção?
Christopher Csikszentmihályi - Muito do trabalho do nosso grupo de arte é analisar o modo como os militares e o governo definem tecnologia e poder. A outra grande parte é ver como as empresas a definem. Segundo a lógica desses grupos, o valor das pessoas, a contribuição delas é o que elas produzem e o tempo que elas gastam criando valor na sociedade consumista.
Há esferas que produzem um trabalho muito valioso fora desse sistema, como escrever um livro ou filmar um documentário fora do circuito comercial. Artistas são normalmente péssimos para conseguir dinheiro para o que fazem. Então o que está faltando é este outro aspecto da atividade humana: coisas que não podem ser vendidas, que não ganham valor ao serem vendidas, mas enriquecem nosso mundo de alguma forma. É isso que chamo de lado poético.
O que quero dizer é: quais são as tecnologias que não têm a função de melhorar a produtividade no sentido tradicional e, mesmo assim, são essenciais? Um dos exemplos que normalmente dou são os projetos de uma aluna fenomenal do grupo, chamada Kelly Dawson. Ela tenta imaginar o que é necessário e não está sendo suprido pelos objetos de que normalmente dispomos. Por exemplo, as pessoas que se importam com elegância são facilmente satisfeitas por um aparelho de som ou um sofá de couro; pessoas que gostam ou precisam de recreação mental são satisfeitas por videogames; pessoas que precisam de música para estar bem são satisfeitas por DVDs e CDs. Mas ela olha para o espaço emocional das pessoas que não se encaixam nos padrões comerciais – que, aliás, são incrivelmente pobres: parte-se do princípio que as pessoas vão para o trabalho, voltam pra casa, escutam música e vêem TV, ou seja, são sozinhas – e tenta identificar suas necessidade. Um dos sentimentos que ela tentou trabalhar foi o de frustração.
Para suprir esse tipo de sentimento, é muito difícil vender qualquer coisa que não seja um medicamento, uma droga. Porém, ela criou um invento com o qual, se você estiver imensamente frustrado, pode gritar dentro dele. O invento silencia o grito, ninguém ouve. O grito fica gravado e, posteriormente, pode-se liberá-lo. Todo mundo que vê este invento se identifica com esse sentimento, mas nunca viu nada que o satisfizesse. Esse seria um uso poético da tecnologia. Há um outro projeto, também dela, que é um liquidificador que, para que ele funcione, você tem que gritar como se estivesse rosnando.
Rets - O que te impulsiona ao pensar em novos projetos?
Christopher Csikszentmihályi - Minha vida mudou incrivelmente depois que fui para o MIT, quatro anos atrás. O único jeito de ser um artista nos Estados Unidos é ou ser uma das duas mil pessoas que são muito famosas e que trabalham para galerias, ou se tornar professor. Há muito pouco financiamento privado e a maior parte acaba sendo governamental. Na média, um professor de arte que começa a dar aulas em uma universidade ganha cerca de U$ 33 mil por ano. Já um engenheiro que começa a lecionar ganha em média U$ 75 mil por ano. O crescimento é geométrico e, depois de dez anos, os valores passam para U$ 60 mil e U$ 200 mil, respectivamente. Ou seja, não se dá muita importância a artistas.
No MIT, um artista se vê cercado por um ambiente muito diferente do seu tradicional, com o que há de mais moderno em tecnologia ao seu redor. Meus colegas são impressionantemente generosos, meu salário é igual ao de um engenheiro, as oportunidades que dou aos meus alunos são muito diferentes do que eu poderia dar se fosse um professor de arte convencional. Mas o interessante é que, neste processo, ver essa cultura é notável, mas deixou meus sentimentos profundamente desorientados.
O que me move atualmente é um senso de injustiça, um senso de que as coisas estão erradas. E, de certa forma, me sinto compelido a reagir a isso, através dos projetos que faço, a responder a essa percepção, de uma maneira que eu não sentia sete anos atrás, quando eu já era um artista. Naquela época, fazia coisas que eram muito mais intelectuais, que provocavam o raciocínio, que sintetizavam as coisas que eu via. Mas, agora, não consigo escolher o que pensar, pois estou cercado por este sistema que considero tão cataclísmico. Se há um caminhão enorme vindo na sua direção, você não pensa em outra coisa, apenas se preocupa em sair dali, resolver a situação. É assim que eu me sinto. Minha motivação como artista hoje em dia é muito diferente da que eu tinha ao longo do meu treinamento, da dos meus professores. O que me move é tentar pular para longe do caminhão, pará-lo, ou alguma coisa assim. Não é divertido, é estressante. Não sou tão criativo ou motivado como era anos atrás. Mas tenho uma clareza do que preciso fazer como nunca antes.
Maria Eduarda Mattar. Colaboraram Fausto Rêgo e Marcelo Medeiros.
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