Autor original: Marcelo Medeiros
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Quando Nelson Mandela saiu da prisão, em 11 de fevereiro de 1990, o mundo parou para ver. Aquele que tinha se tornado o símbolo da resistência às formas mais desumanas de relacionamento acabava de vencer a batalha moral: até sua “caminhada para a liberdade” foi decidida por ele, numa demonstração de como a força ética de seus argumentos lhe tinham dado a liderança natural. Nos nove anos seguintes, comandou uma série de transformações que levou seu país a uma reconciliação racial inimaginável alguns anos antes. Sua capacidade de perdoar e a forma pacífica como destronou os pilares do sistema mais elaborado de racismo institucionalizado, o apartheid, encontraram no então presidente F.W. de Klerk um interlocutor à altura. Assim, foi natural que ambos recebessem o Prêmio Nobel da Paz em 1993 e que um cedesse o lugar ao outro, sendo Mandela o primeiro negro a assumir o posto mais alto nesse país majoritariamente negro.
Seu mandato, que terminou em 1999, foi marcado por uma característica que influenciou profundamente a luta anti-racista em diversas partes do mundo: Mandela acreditou num Estado multiétnico, numa democracia que tinha como objetivo assegurar direitos iguais a uma grande variedade de culturas – a “nação arco-íris”, como a batizou. Esse legado do líder sul-africano tem apelo num país como o Brasil, que, apesar de jamais ter experimentado um regime de segregação explícita como o apartheid, ainda está longe de assegurar direitos iguais a todos os seus cidadãos.
Uma demonstração do desafio que o Brasil tem pela frente foi dada na noite de 31 de março de 2005. Nesse dia, o estado do Rio de Janeiro registrou a maior chacina de sua história: em duas horas e meia, 30 pessoas – uma a cada cinco minutos – foram assassinadas nas cidades de Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense. Entre os mortos, havia mulheres, adolescentes de 13, 14 e 15 anos, travestis e um homem de 64 anos. Inédita, nesse massacre, foi a intensidade. O perfil das vítimas (pobres e, em sua maioria, negros) é semelhante ao de grande parte das cerca de 30 mil pessoas que morrem assassinadas no Brasil todos os anos. Apesar de no senso comum, e mesmo em grande parte dos veículos de comunicação, predominar a percepção de que a criminalidade afeta a todos da mesma maneira, são os negros as principais vítimas. Os dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (do Ministério da Saúde) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2001, a taxa de homicídios dos homens de 20 a 24 anos era, mesmo para brancos, escandalosa: 102,3 por 100 mil habitantes. Para os jovens negros, porém, a taxa era duas vezes maior: 218,5 a cada 100 mil deles foram vítimas de assassinato, um risco equivalente ao de morar em países em guerra civil. A maior parte dos jovens negros assassinados vivia em favelas, bairros periféricos e subúrbios das grandes cidades.
Enfrentar questões urgentes como essa é tarefa inadiável, e é por isso que este Relatório de Desenvolvimento Humano aborda os temas do racismo, da pobreza e da violência – problemas que se imbricam de tal forma que só podem ser confrontados conjuntamente, combinando tanto ações de cidadania e de participação como políticas públicas, sejam elas de caráter universalista ou focalizadas.
A falácia do conceito de "raça"
A situação de exclusão a que a população negra foi submetida no Brasil desde o século XVI é fruto de racismo. Como ideologia, o racismo foi fundado pelo pensador francês Joseph-Arthur de Gobineau (1816-1882) em seu Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas (1853-1855). Essa doutrina baseava-se em três pontos principais: a existência de várias raças humanas, a compreensão das diferenças entre as raças como fatores essenciais do processo histórico-social e a afirmação da existência de uma raça superior. Ela serviu de ponto de partida para que, no início do século 20, o britânico Houston Stewart Chamberlain (1825-1927) difundisse, na Alemanha, o mito da superioridade da raça ariana. Após o fim da Primeira Guerra Mundial (1918), essas teorias foram reinterpretadas por Alfred Rosenberg (1893-1946) – em especial na obra Mito do Século 20 (1930) –, que elaborou a doutrina da superioridade germânica e agregou um verniz pseudocientífico à política de Adolf Hitler, com as funestas conseqüências amplamente conhecidas: a perseguição a grupos considerados inferiores, como judeus, ciganos, eslavos e homossexuais.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os estudos em diversas áreas puseram em xeque os pressupostos das teorias racistas. Em quase todas as características humanas hereditárias estudadas pela ciência, observa-se que as diferenças entre indivíduos são mais relevantes que as diferenças entre populações. Pesquisas realizadas por cientistas brasileiros, por exemplo, evidenciaram que em uma cidade como São Paulo há pessoas de fenótipo negro sem marcadores genéticos tipicamente africanos e brancos com esses mesmos marcadores. Toda discussão sobre as diferenças “raciais” humanas se limita a no máximo 0,001% do genoma do Homo Sapiens. “Raça”, no sentido biológico do termo, não existe. Estudos feitos sob outras perspectivas e com outros métodos, nas ciências sociais e na antropologia, chegaram à mesma conclusão sobre a falácia do conceito de raça. As pesquisas nessas áreas mostram também que o discurso racial tem sido usado para manipular ideologicamente as diferenças fenotípicas entre os grupos humanos, de maneira a legitimar a dominação das “raças” supostamente superiores sobre as “raças” supostamente inferiores.
Todavia, embora o estatuto teórico-científico de raça tenha sido desmontado na segunda metade do século XX, o conceito permanece como uma construção social, uma categoria analítica que continua sendo usada para agregar indivíduos e coletividades que compartilham aspectos físicos observáveis, como cor da pele, textura do cabelo e compleição corporal.
A aplicação do conceito de “raça” é hoje uma necessidade teórica e prática nos estudos e nos processos sobre identidade étnica, conquista de direitos e justiça social de grupos fenotipicamente distintos.Nesse sentido, a erradicação do racismo e a luta contra raça como um critério de segregação social e de exclusão de oportunidades requer que o termo – ou conceitos correlatos, como cor e fenótipo – seja mantido nas coletas de dados e nos registros e notificações das instituições, públicas ou particulares, ao menos enquanto perdurar essa situação de flagrante desigualdade. Esse é o sentido que se dá à utilização de raça neste relatório. A classificação aqui usada, porém, não é das Nações Unidas, que não reconhecem nenhum sistema de classificação racial,mas a utilizada pelo Estado e pela sociedade brasileiros.
Racismo brasileiro
Se, como foi dito anteriormente, o racismo é uma estrutura de dominação baseada no pressuposto ideológico da existência de uma hierarquia entre as “raças” humanas, o sistema racial brasileiro apresenta singularidades. Nos Estados Unidos, por exemplo, o racismo fundou-se na ascendência – ou seja, é a herança genética que define a identificação racial –,o que levou a uma classificação bipolarizada das “raças”negra e branca.Enquanto isso,no Brasil,o racismo prende-se às características fenotípicas, como cor da pele e textura do cabelo. É uma espécie do racismo de marca, e não de origem4. Em função disso, o racismo brasileiro manifesta-se em gradação, atingindo mais as pessoas com um fenótipo mais próximo da ancestralidade africana e matizando as discriminações conforme a aparência se aproxime do fenótipo branco.
Esse sistema de classificação se explica por uma série de fatores históricos, demográficos, sociais e políticos, que construíram o padrão de relações raciais no Brasil. O principal deles é a miscigenação, que foi influenciada pelas condições demográficas do empreendimento colonial: prevalência de homens brancos escravistas procriando com poucas mulheres da mesma cor, mulheres indígenas e escravas negras.A miscigenação favoreceu uma percepção gradual da cor da pele e, ao mesmo tempo, tornou multirracial a sociedade brasileira, o que explica, segundo alguns estudiosos, a inexistência de uma cultura de ódio racial explícito no Brasil.
Outra característica associada à miscigenação que singulariza o racismo no Brasil foi a inexistência de leis e instituições segregacionistas – não se erigiu no país uma legislação determinando a separação de negros e brancos nos ônibus, escolas, igrejas e bairros.A segregação formal foi impossível por força de condições demográficas, pois a maioria da população brasileira era composta por negros e seus descendentes, e por razões políticas, visto que membros ilustres das elites eram mestiços e não fizeram uso de mecanismos de auto-exclusão. Isso não significa, contudo, que não havia – e não haja – uma sociedade racialmente dividida: informalmente, com o uso de mecanismos sociais – sobretudo o pertencimento de classe –, os negros foram segregados nas áreas mais degradadas dos centros urbanos e rurais e nas regiões economicamente menos dinâmicas do país.
Igualmente singular ao racismo brasileiro foi a construção de mitos como o da escravidão benigna e o legado da democracia racial de Gilberto Freyre.Essas teorias alimentaram uma historiografia que via no sistema escravista do Brasil características que o aproximariam de um modelo paternalista, de interações mais próximas entre senhores e escravos. Valorizavam-se o papel da população negra escravizada na formação da nação brasileira e sua influência na cultura, na produção econômica e na prestação de serviços – papel descrito mais detalhadamente pela historiografia atual –, mas deixava-se em segundo plano o dilaceramento da identidade étnica dos escravos pela Igreja e pelos senhores,o tratamento de negação e exclusão que os negros receberam do Estado e da sociedade após a abolição da escravatura, e as reações da população negra a essa situação, por meio de movimentos de resistência como os quilombos e as irmandades religiosas dos negros.
As teses da democracia racial começaram a ser combatidas na década de 50 do século passado por estudiosos ligados a Florestan Fernandes.Ainda assim, apenas a partir de pesquisas da década de 1980, realizadas por instituições tanto oficiais quanto não-governamentais, o governo brasileiro se viu obrigado a reconhecer a existência do racismo na sociedade. O movimento negro teve papel importante nesse processo. Com manifestações já nos anos 1930, sufocado nas décadas de 1960 e 1970 em virtude da ditadura militar, ele ganhou força após a redemocratização do país, a partir de 1985. Algumas conquistas importantes no âmbito do Direito efetivaram-se na Constituição Federal de 1988, que estabeleceu disposições genéricas antidiscriminatórias, transformou o racismo em crime inafiançável, protegeu a manifestação das culturas indígenas e afro-brasileiras, determinou a proteção legal aos documentos e locais dos antigos quilombos e garantiu o reconhecimento das terras ocupadas pelos quilombolas remanescentes. da flagrante desigualdade socioeconômica.
Se o racismo brasileiro é escamoteado no cotidiano de brasileiros e brasileiras, os diversos estudos e pesquisas do presente relatório revelam a existência de uma situação de desigualdade em diversos níveis: saúde, educação, emprego, habitação e renda. É nesta última que a disparidade é mais intensa.Ao longo das duas últimas décadas do século 20, a renda per capita dos negros representou apenas 40% da dos brancos.Os brancos em 1980 ainda teriam uma renda per capita 110% maior que a dos negros de 2000. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), uma adaptação do IDH para Estados e municípios brasileiros, da população branca em 2000 era melhor que o da Croácia, e o da população negra, pior que o do Paraguai.
O fenômeno da desigualdade evidencia-se também nos números sobre violência, como citado no início deste texto.As áreas de alto risco, como demonstram Nova Iguaçu e Queimados, são marcadas por ausência ou insuficiência de serviços públicos, falta de infra-estrutura comercial e isolamento ou acesso difícil. Nesses lugares, a violência física é parte do cotidiano, desagregando a vida comunitária e dificultando o exercício da cidadania. Essa ausência de cidadania demonstra que à pobreza de renda somam-se a pobreza política (falta de capacidade para participar da esfera pública) e a pobreza de direitos (impossibilidade de gozar os direitos formalmente estabelecidos na lei).
O viés racial também está presente nos diversos componentes da justiça criminal: na polícia, nos juizados e tribunais e no sistema prisional. A chance de sobreviver a um confronto armado com a polícia é superior para os chamados opositores brancos do que para os negros – tanto dentro quanto fora da favela. Em face da violência contínua (da escravidão até os dias atuais) a que está submetida a população negra, uma única abordagem não será eficaz para criar oportunidades iguais. É imprescindível que o Estado lance mão de duas formas de políticas públicas: universais, que são aplicadas sem distinção ou privilégio para o grupo beneficiário, e focalizadas, que têm como objetivo incluir os mais diversos grupos que compõem a sociedade brasileira.
Entre essas últimas, estão as ações afirmativas. Algumas medidas desse tipo têm sido usadas para compensar e reparar injustiças históricas que grupos raciais e étnicos sofreram, inclusive maiorias colonizadas, como se deu na África do Sul. Em outras situações – como a dos povos indígenas na América Latina – as medidas compensatórias assumem outra forma: não se trata da possibilidade de indivíduos conseguirem acesso a direitos e bens sociais e coletivos, mas da criação de instituições que sejam capazes de melhorar as oportunidades e os níveis de bem-estar de uma comunidade em constante situação de desvantagem.
As políticas de ação afirmativa justificam-se no Brasil porque as diferenças raciais persistem ao longo das décadas, seja em fases de crescimento, seja em fases de desaceleração da economia. Em vários casos, mesmo quando negros e brancos melhoram em algum indicador, os brancos melhoram mais e as desigualdades entre ambos persistem ou aumentam.
Três tipos principais de ação afirmativa têm sido implementados no país recentemente: bolsas de estudos para preparação ao ingresso de concursos públicos, cursos pré-vestibulares exclusivos para estudantes negros e indígenas e cotas para ingresso no serviço público e em universidades. Essas três formas não são excludentes e devem ser vistas de modo complementar, uma contribuindo para a eficácia da outra.Mas é preciso ir além. Entre as questões que o país precisa enfrentar urgentemente estão: corrigir a desigualdade dos investimentos sociais, para atingir a igualdade de oportunidades; reconhecer o direito a terra e modos de subsistência, no caso dos quilombolas, sobretudo; e agir afirmativamente em favor dos grupos prejudicados. Entre esses últimos, atenção especial deve ser dada aos jovens negros favelados – vítimas mais freqüentes da violência nas grandes cidades brasileiras. É fundamental que sejam elaboradas e implementadas políticas públicas envolvendo Estado e sociedade para proteger a vida e a integridade física desses jovens e para oferecer perspectivas de plena realização de seu desenvolvimento. Eles são parte do futuro.
Para além das políticas, sejam focalizadas, sejam universalistas, urge erradicar a pobreza e o racismo a partir de um contexto mais sistêmico e abrangente, no qual o norte seja o desenvolvimento humano da população negra e dos demais segmentos excluídos do país.Nesse contexto maior incluem-se políticas de longo alcance e estruturantes, como a macroeconômica, a fiscal e a reforma do sistema político. Caso contrário, os efeitos mitigados de políticas de ajuste fiscal e de expansão econômica sem crescimento proporcional do emprego tendem a minimizar o impacto positivo das medidas de ação afirmativa.
Para conciliar políticas universalistas e de reparação, ações estruturantes e ações pontuais, o Estado deve administrar a tensão existente entre a necessidade do reconhecimento das singularidades de determinado grupo e a exigência da superação da desigualdade. As experiências internacionais mostram que, na relação entre grupos diferentes, nem a segregação nem a assimilação produzem os melhores frutos. A melhor alternativa é uma política de diversidade cultural, que passa pelo reconhecimento oficial das diferentes identidades e pela adaptação das instituições públicas a essas diferenças.
Reconhecer a diferença cultural implica estabelecer uma democracia multicultural. Tal sistema político é a melhor forma de evitar o surgimento de toda e qualquer forma de discriminação baseada na raça.No Brasil, é a melhor maneira de responder a anseios como o expressado pelo geógrafo Milton Santos (1926-2001), um dos intelectuais brasileiros de maior reconhecimento internacional: “A grande aspiração do negro brasileiro é ser tratado como um homem comum”.
Esse é o sumário executivo do "Relatório de Desenvolvimento Humano 2005 - racismo, pobreza e violência", publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). A íntegra está disponível na área de Downloads desta página.
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