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Consumo verde

Autor original: Luísa Gockel

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Consumo verde
Divulgação

Até que ponto os consumidores devem ser responsabilizados pelas conseqüências ambientais do ato de consumir? Essa é a questão central do livro “Sustentabilidade ambiental, consumo e cidadania” (Cortez Editora) de Fátima Portilho, doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Segundo a autora, existe hoje um discurso ideológico que tende a culpar os consumidores pelas mazelas ambientais. “Geralmente as críticas ao consumo são moralistas e autoritárias”, defende Fátima. “Como vamos confiar nos consumidores para resolver todos os problemas ambientais?”, questiona.

Para a pesquisadora, é preciso encontrar um meio-termo. Não se trata, segundo ela, de isentar completamente o consumidor de responsabilidade. Mas acredita que é um bom momento para conscientizá-lo de que o ato de consumir faz parte do exercício da sua cidadania. “Ninguém consome de forma objetiva. É um ato politizado”, enfatiza.

Já existiria, então, o “consumidor verde”? “Não sei ainda. Mas existe uma discussão boa sobre a diferença entre consumidor e cidadão”, diz. A pesquisadora quer chamar a atenção para a indissociabilidade dos dois conceitos. E, sobretudo, para a importância para o meio ambiente de se politizar o cotidiano e racionalizar o ato de consumir.

Rets - Qual é a idéia principal do livro?

Fátima Portilho - A questão central do livro é analisar a construção da idéia de que o consumidor é o principal responsável pela questão ambiental. Observamos atualmente um deslocamento discursivo sobre os problemas ambientais, da produção para o consumo. Sabemos que é uma construção social e cada grupo a percebe de forma diferente.

Até a década de 70, por exemplo, a crise ambiental era associada principalmente à explosão demográfica. Acreditava-se que o crescimento populacional nos países do terceiro mundo gerava uma grande pressão humana sobre os recursos naturais. A solução estaria, portanto, no controle da natalidade. A partir da década de 70, cresceu a percepção de que não importa o número de pessoas de uma sociedade e sim como elas vivem. Os movimentos ambientalistas começaram a mostrar que a pobreza não era a causa e sim a conseqüência dessa situação e que o problema estaria no modelo de produção industrial dos países desenvolvidos.

Quando houve esse deslocamento discursivo, as políticas ambientais também se deslocaram do sul para o norte. Assim como as propostas, o que fez surgir diversas políticas de controle da poluição produzidas pelas indústrias, além de sistemas de gestão ambiental, ecoeficiência, certificação ambiental, entre outros.

Rets - Quando aconteceu esse deslocamento da causa da crise ambiental da produção para o consumo?

Fátima Portilho – A partir da década de 90 e da Conferência Rio 92, observa-se um novo deslocamento. De acordo com esse novo discurso, o problema não estaria mais na produção e sim no consumo e no estilo de vida das sociedades mais afluentes. Até então, o consumo não era percebido de forma relacionada ao meio ambiente.

Rets – Esse discurso não é interessante para as empresas?

Fátima Portilho - As empresas dizem que já implantaram sistemas como o ISO 14.000, o selo verde, tecnologias limpas, e que, por isso, já estariam fazendo a sua parte. De acordo com esse discurso, agora seriam os consumidores que teriam de fazer a parte deles. Um bom exemplo é a indústria de automóveis: não adiantaria simplesmente produzir carros mais limpos ou ecoeficientes se os consumidores não mudarem sua forma de consumir e utilizar o automóvel.

A questão central do livro é justamente analisar quais as conseqüências dessa transferência de responsabilidade e desse deslocamento das políticas ambientais da produção para o consumo. Trata-se de uma forma de despolitização e individualização das soluções? Ou será que esse deslocamento contribui para aumentar o senso de participação e interesse das pessoas comuns pela questão ambiental?

Rets – Você vê algum ponto positivo nessa mudança?

Fátima Portilho - O que eu defendo é que esta pode ser uma oportunidade de politizar o ato do consumo. O interesse por questões ambientais cresceu na sociedade. O governo, as empresas e os movimentos sociais se preocupam hoje com a questão. E, agora, as pessoas comuns estariam incorporando a questão ambiental no seu dia-a-dia, ambientalizando, assim, o cotidiano. A agenda ambiental seria incorporada à “mesa da cozinha”, ou seja, à vida diária. A partir daí, seria interessante associar a isso uma discussão sobre consumo e cidadania.

Rets – E qual é a diferença entre consumidores e cidadãos?

Fátima Portilho - Eu acho que não tem sentido falarmos em consumidor ou cidadão de forma diferenciada. Não dá para separar as duas coisas. O consumo não é só uma atividade alienada e manipulada. Consumir é um ato político. Escolher, consumir e usar uma mercadoria é mostrar a sua visão de mundo. O uso dos bens está ligado à posição e à hierarquia social. Ninguém consome de forma objetiva e neutra. Ninguém come só para matar a fome ou se veste só para se proteger do frio. Consumir bens não significa apenas ir ao supermercado fazer compras. Consumir é comprar, usar, mostrar. O lado simbólico é importante. E quando as pessoas param para pensar nos hábitos de consumo acabam enfrentando diversos dilemas.

Rets – Que tipo de dilemas o consumidor pode enfrentar?

Fátima Portilho – O consumidor/cidadão tem que escolher, por exemplo, se fará um sacrifício pessoal se for de ônibus para a cidade, para reduzir a poluição, ou se dará prioridade ao conforto individual, indo de carro. Há sempre esse confronto entre o individual e o coletivo. Às vezes, podemos pensar que o custo pessoal é tão grande e o benefício é tão pequeno, que entramos num dilema.

Ninguém é racional, consciente e politizado o tempo todo. Nem é alienado e irracional o tempo todo. O consumo é ambíguo. Hoje eu opto por uma atitude consciente, amanhã posso optar por priorizar meu conforto pessoal.

Rets – Mas de uma maneira geral o consumismo é visto pelos movimentos ambientalistas de forma negativa...

Fátima Portilho - Geralmente as críticas ao consumo são de cunho moral, ético e religioso. Mas o consumo não é só alienação. É também reprodução de relações e valores sociais. O ambientalismo sempre adotou um discurso muito restritivo. Apesar de ser bem-sucedido e ter muitos adeptos por todo o mundo, ganhou resistência porque acabou se baseando num discurso moral.

Rets – Você acha então que é preciso achar um meio termo? Não é possível jogar toda a responsabilidade para cima do consumidor nem eximi-lo totalmente dela?

Fátima Portilho - Não dá para confiar no consumidor como o único responsável pela solução de todos os problemas. Essa idéia tem limites. Mas, ao mesmo tempo, podemos pensar em possibilidades de politizar e ambientalizar o cotidiano e saber que cada ato de consumo pode influenciar gerações futuras e a natureza como um todo.

Um bom exemplo disso são os transgênicos. Até os cientistas que têm acesso a muitas informações não chegam a um consenso. Imagine os cidadãos que não têm acesso a tantas informações técnicas e controversas. Como vamos atribuir ao consumidor toda a responsabilidade de resolver os problemas ambientais? Todos os outros atores, Estado, mercado etc. têm de fazer a sua parte.

Luísa Gockel

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