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Orgulho negro em cena

Autor original: Joana Moscatelli

Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor






Orgulho negro em cena
Divulgação

Novembro é o mês da Consciência Negra e dia 20 é o dia. Mas a luta pela valorização da cultura africana e negra, que tanto contribuiu para a formação do Brasil, não tem data marcada. Desde o início do ano passado, a Companhia Jovens Griôts busca romper com o preconceito e resgatar a cultura, a mitologia e a religião africana. Formado por jovens negros - na maioria mulheres - o grupo teatral tem que enfrentar não só o preconceito do público, ainda desacostumado com a temática de suas peças e histórias, mas os seus próprios.

Resultado de uma parceria entre as organizações Se Essa Rua Fosse Minha e Casa de Cultura da Baixada, seu próprio nome já reflete a principal missão. César Marques, coordenador do grupo, explica que Griôts é um termo do vocabulário franco-africano da época colonial e significa "aquele que pela tradição oral conta a história de personagens e famílias importantes". A base do trabalho da Companhia é exatamente o mesmo de um griôt africano: contar histórias. E esse trabalho é feito através da integração de técnicas teatrais, circences, música e danças afro-brasileiras.

Quando de sua formação, o primeiro passo do grupo foi estudar a história africana e suas contribuições para o Brasil além de terem aprendido também técnicas circenses, música, danças e folguedos de origem afro-brasileiros. Depois dessa fase, os jovens começaram a pesquisar sobre a história das próprias comunidades onde viviam a partir de entrevistas que faziam com os moradores mais velhos da região onde moravam. Assim, puderam conhecer um pouco mais da história que os livros não contam e valorizar a tradição oral de sua comunidade.

Com todo esse conhecimento adquirido, o grupo passou a partilhar essas histórias com outras crianças e adolescentes em escolas da região ou em oficinas na própria Casa da Cultura, localizada em São João de Meriti. Passaram a oferecer oficinas de artes e literatura que abordassem a questão da diferença de uma forma natural. Marques conta que apesar do estranhamento inicial, as crianças gostaram muito e se identificaram com histórias como a do livro “Menina Bonita do Laço de Fita”, que conta a fábula de um coelho branco que achava que, comendo jabuticaba, iria ficar negro igual à menina para quem estava olhando.

Após essa fase, a Companhia começou a produzir espetáculos e a participar de fóruns, conselhos e movimentos relacionados aos direitos das crianças e da população negra. No dia 6 de novembro, a peça “Igbadu, a cabaça da existência” teve sua estréia no Circo Voador, na Lapa, centro do Rio de Janeiro (RJ), durante o Festival Tangolomango. O espetáculo, baseado em poemas ou salmos que contam as aventuras dos orixás, lança um olhar sobre a criação do mundo diante dos encontros e desencontros do feminino e masculino presentes nos deuses, mortais através dos quatro elementos: Água, Terra, Fogo e Ar. A peça destaca a força e o poder de resistência das mulheres organizadas na sociedade matriarcal das Geledés. Trata-se de uma livre adaptação do livro homônimo de Adilson de Oxalá, com Orikis (salmos) de Pierre Fatumbi Verger e Reginaldo Prandi. Já nos dias 12 e 13 de novembro, o Grupo fez apresentações na própria Casa de Cultura da Baixada, em São João do Meriti (RJ).

Assim como para o público, a principal dificuldade de Cristiele Rosas, atriz que interpretou a deusa Oxum na peça, foi acabar com o próprio preconceito que tinha em relação à religião e cultura africana. Ela conta que aprendeu muito desde que passou a fazer parte do grupo. “Antes de fazer parte do Griôts eu tinha muito preconceito, achava que tudo relacionado à cultura e religião africana era macumba. Hoje tenho muito interesse pelas danças africanas e estou aprendendo a entender melhor as pessoas e o mundo.”

Já Gilciana Mello, de 17 anos, chegou até a faltar algumas aulas por desinteresse já que, por ser branca, achava que a temática não tinha relação com a sua vida. “Mas aos poucos, fui começando a ler sobre o assunto e mudar minha concepção. Passei a entender que a mitologia africana não é só macumba como pensava.”

A deficiência de nossas escolas

O que hoje chamamos de cultura brasileira é resultado de diversas misturas entre a cultura européia, a africana e a indígena. Mas, como ressalta Marques, nossa literatura e currículo escolar contam apenas uma versão dessa história: a dos europeus brancos. “Uma marca importante do preconceito existente na sociedade brasileira é a forma como a religião africana foi e ainda é demonizada pelas pessoas. A maioria das pessoas ainda associa a religião africana à macumba”.

A forma como a cultura africana chegou no Brasil é o que marca ainda mais os afrodescendentes de hoje. A escravidão é a principal referência dos jovens brasileiros afrodescentes, o que muitas vezes ajuda a reforçar a baixa auto-estima dessa parte da população.

“Quando indagamos aos jovens o que eles sabiam sobre seus antepassados eles logo se referiam a escravidão e não à riqueza cultural e religiosa que os povos africanos trouxeram para o Brasil. A escola lhes ensinou que seus antepassados eram escravos, covardes e preguiçosos e não contou que antes eram guerreiros, heróis e deuses africanos. Ou seja, a questão da perda da identidade é muito forte para esses jovens. Eles não se vêem representados pela história oficial que lhes contam na escola”, indigna-se Marques.

Ele explica o quão importante é, para esses jovens, resgatar a história de seus antepassados africanos e acabar com o estigma da escravidão. “A história oficial que eles aprendem na escola não os representa. Ela conta apenas uma versão branca do que aconteceu no Brasil nos séculos passados e não se preocupa em falar sobre as contribuições importantes que a cultura africana ofereceu para a formação do que hoje chamamos de cultura brasileira.”

Marques diz que a principal dificuldade do trabalho é justamente lidar com essa questão tão delicada do preconceito. Além disso, muitos jovens enfrentam dificuldades financeiras e são obrigados a sair do curso por causa de trabalho ou estudos. Porém, entre os resultados positivos que a Companhia vem alcançando, o coordenador aponta mudanças importantes da vida dos jovens como o despertar do interesse pela leitura e estudo e uma nova percepção de mundo, mais aberta e sem idéias preconcebidas.

No momento em que a lei que trata do ensino da história afro-brasileira nas escolas (Lei 10.639, link na área Links Relacionados desta página) está sendo implementada, o grupo entra numa fase de apresentações em escolas da região da Baixada Fluminense. Para o Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro, o grupo reservou uma apresentação em uma Escola de São João de Meriti seguido de um debate sobre o tema. O objetivo é, assim como em todas as ações da Companhia, partilhar as histórias entre crianças, adolescentes e jovens negros e brancos e contribuir para fortalecer o imaginário, a identidade e o respeito às diferenças.

Joana Moscatelli

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