Autor original: Mariana Loiola
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() Ilustração: Margaret Shear | ![]() |
Em 25 de novembro, comemora-se o Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher, com o objetivo de conferir visibilidade ao problema e apontar caminhos para o poder público. Neste ano, dois dias depois completam-se dez anos da ratificação pelo governo brasileiro da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará. O encontro representou um grande avanço ao definir a violência contra as mulheres e recomendar aos governos das Américas a adoção de medidas para erradicar esse tipo de violência. De lá para cá, muita coisa mudou. Os números, no entanto, ainda assustam. A cada segundo, 15 mulheres brasileiras são agredidas em seus lares. Estudo mais recente coordenado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no Brasil diz que a violência física e/ou sexual cometida pelo parceiro foi relatada por 29% das mulheres na cidade de São Paulo e 37% na Zona da Mata em Pernambuco. Segundo dados mundiais de 2002 da OMS, a violência doméstica responde por aproximadamente 7% de todas as mortes de mulheres de 15 a 44 anos.
Para tentar conter o aumento do tipo mais comum e mais impune de violência contra a mulher, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara aprovou, em agosto deste ano, o Projeto de Lei 4.559/04, que prevê medidas para combater a violência doméstica contra a mulher. De autoria do Poder Executivo, a proposta foi transformada em substitutivo pela relatora, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ). Outro aspecto importante é que a parlamentar ampliou o conceito de violência contra a mulher para além da agressão física. Ela incluiu a violência moral – que ocorre, por exemplo, quando a mulher sofre ofensas à sua dignidade – e a patrimonial, que acontece quando bens adquiridos pelo casal são retirados da mulher.
No Brasil, segundo Jandira Feghali, estima-se que apenas 2% dos acusados de praticar violência contra a mulher são condenados. De cada cem brasileiras assassinadas, 70 são vitimadas no âmbito de suas relações domésticas. “O que mostra que as mulheres perdem suas vidas no espaço privado, diferentemente dos homens”, analisa a deputada.
Jandira Feghali conta que percorreu o país em audiências públicas para debater o projeto e pôde comprovar que a legislação atual – Lei n.º 9.099, de 1995 – não oferece resposta às principais demandas das mulheres vítimas de violência doméstica. “Essas mulheres pedem proteção para ela e para os filhos, decisões imediatas sobre distância do agressor ou separação de corpos, habitação, alimentação e a garantia de inquérito e punição ao agressor”, diz.
Para Jacira Melo, diretora do Instituto Patrícia Galvão, o Projeto de Lei 4.559/04 poderá ajudar a acabar com a sensação de impunidade e, assim, coibir a violência contra as mulheres, além de viabilizar vários mecanismos de acolhimento à vítima. “É um projeto muito avançado. Se for aprovado, será um grande passo”, acredita.
A importância da denúncia
Veiculada recentemente na mídia, a campanha “Chega de esconder”, realizada pelo Instituto Patrícia Galvão, tem como objetivo encorajar as mulheres em situação de violência doméstica a romper o silêncio, escapar da solidão e encontrar saídas. Não trata exatamente da denúncia policial, mas da necessidade de a mulher falar sobre a violência que sofreu com outras pessoas, explica a diretora do Instituto. “Temos tido um grande retorno dessa campanha. A própria mídia nos procura, demos várias entrevistas para rádios de todo o país. Além disso, muitas mulheres em situação de violência procuram o portal”, diz. Jacira se refere ao Portal da Violência contra a Mulher, lançado há exatamente um ano pelo Instituto Patrícia Galvão, propositalmente no Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher de 2004.
Para Jandira Feghali, pesa na decisão de não denunciar os agressores a reação dos filhos e até o medo de perder a guarda em caso de processo judicial. “No Brasil, as mulheres, em média, só denunciam o agressor após a sétima agressão. Medo, vergonha e o sentimento de que a pena poderá ser o pagamento de uma cesta básica levam muitas a desistirem do processo no meio do caminho”, diz.
A denúncia é fundamental para interromper o ciclo da violência, mas não é suficiente, ressalta Mônica Maia, coordenadora de comunicação da Rede Feminista de Saúde. “Algumas pessoas acreditam que basta falar da violência para sair desse ciclo, mas isso não é verdade. Às vezes, a mulher leva anos para sair dessa situação. E não é porque ela gosta de apanhar, como muitos ainda pensam, mas porque é difícil para ela se dar conta de que essa violência não é natural”.
A incapacidade dos serviços de saúde para detectar casos de violência também dificulta a interrupção desse ciclo, alerta Mônica Maia. O impacto da violência sobre a saúde integral da mulher é o foco da campanha que a Rede Feminista de Saúde promove neste ano para lembrar a data comemorativa. A iniciativa integra a Campanha 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres – desenvolvida de 25 de novembro a 10 de dezembro (Dia Internacional dos Direitos Humanos) em cerca de 130 países – e inclui atividades realizadas pelas organizações filiadas à Rede, como manifestações públicas, eventos em assembléias, seminários, encontros etc.
Mudança de cultura
Segundo Barbara Musumeci Soares, coordenadora de Projetos de Gênero do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), mulheres de todas as classes sociais sofrem violência, mas as que recorrem às delegacias policiais são, freqüentemente, as mais pobres. Por isso as estatísticas criminais podem mascarar sua incidência nos grupos sociais mais favorecidos. “Os problemas associados à pobreza não são, em si mesmos, geradores de violência, mas podem favorecer a eclosão de episódios violentos. Para melhor compreender o problema é preciso levar em conta a interação de fatores individuais, relacionais, comunitários e sociais”.
As organizações que militam nessa causa defendem uma grande transformação da cultura da violência de gênero e a construção de um novo modelo de masculinidade em diferentes espaços, desde a família, passando pelas escolas, pela mídia, serviços de saúde, delegacias de polícia, até a Justiça. Segundo Lenira Politano da Silveira, psicóloga e pesquisadora do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, a violência contra a mulher tem origem nas desigualdades entre homens e mulheres, que ainda permanecem em muitas áreas da vida social.
“Apesar das inúmeras conquistas do movimento feminista nas últimas décadas, a mudança de mentalidades é um processo muito mais lento. Alguns homens vivem a crise pela perda do poder absoluto nas relações domésticas, perda do domínio da mulher e dos filhos como suas propriedades. Como não conseguem administrar este novo status, sentem-se ameaçados e reagem violentamente, como única estratégica para lidar com o conflito e tentar manter o controle. Assim, mudar as relações privadas entre homens e mulheres é fundamental para reduzir a violência nas relações afetivas.”
Lenira Politano da Silveira diz que tanto a Convenção de Belém do Pará como as demais conferências e convenções que ocorreram na década de 90 e foram ratificadas pelo governo brasileiro têm sido instrumentos importantes de negociação política para garantir a implantação de novos serviços e a implementação de estratégias de proteção dos direitos das mulheres vítimas de violência. Entre as conquistas obtidas de lá para cá, Lenira destaca a inclusão do tema da violência contra a mulher no Programa Nacional de Direitos Humanos, que resultou numa linha de financiamento para a reforma e construção de casas-abrigo e, depois, centros de referência, além da inclusão da violência como parte do Plano Nacional de Segurança Pública, garantindo recursos para o melhor aparelhamento das delegacias da mulher.
Uma das conquistas do novo PL - o 4.559 - que indica uma mudança de postura em relação à violência contra a mulher é a tipificação do crime de violência moral. “Esse tipo de violência é fruto de uma cultura ainda machista, que não se modifica com facilidade. Ao mesmo tempo em que podemos comemorar importantes vitórias, convivemos com práticas inaceitáveis numa sociedade que se diz igualitária”, critica Jandira Feghali.
A deputada lembra que as mulheres ainda têm salários menores no exercício da mesma função ocupada por homens e que, na hora de uma promoção, o fato de a mulher ser casada e com filhos pesa e acaba relevando a questão da competência profissional. “O enfrentamento dessas questões passa necessariamente pela atitude que adotamos frente a essas agressões. Não é fácil mudar uma mentalidade impregnada há séculos, mas acredito que as mulheres já se dão conta de que o caminho para a superação de preconceitos é a luta do dia-a-dia, é a participação no processo político, na fiscalização das ações das três instâncias de governo”, defende.
Segundo a deputada, a lei, quando aprovada, será a primeira no Brasil de combate à violência doméstica familiar contra a mulher, o que já é uma exigência internacional desde a ratificação da Convenção de Belém do Pará, há dez anos. “Realmente, foi um longo período entre a Convenção de Belém do Pará e o envio do projeto de lei para o Congresso. A demora se deve em função da falta de vontade política para enfrentar o tema. Acredito que, com a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, este cenário tenha se modificado”, afirma a deputada.
Por novas políticas públicas
Os governos e a sociedade ainda têm dificuldade para perceber a relevância desse tema, acredita Barbara Musumeci Soares, do Cesec. “Como a violência doméstica é quase sempre invisível, não gera medo coletivo nem traz muitos dividendos políticos, não é pensada como um problema importante, que exige um investimento social e cultural”, diz.
Ela acredita, no entanto, que a natureza das políticas públicas vem mudando nos últimos anos. “Acho que estamos conseguindo substituir uma abordagem que enfatizava a denúncia e a criminalização por um olhar que valoriza a prevenção da violência, a proteção efetiva das vítimas e as mudanças culturais que podem modificar o cenário da violência de gênero”, defende.
Nesse sentido, a SPM vem reorientanto as suas políticas, de acordo com a ministra. “Até 2002, o atendimento priorizava as casas-abrigo. Entretanto julgamos que essa política tem pouca sustentabilidade e baixa efetividade se desarticulada de outros equipamentos”, explica Nilcéa. E acrescenta: “Por isso a reorientação é para um atendimento em rede, onde cada serviço tem seu papel e cada caso deve ser avaliado segundo seu grau de complexidade e risco por profissionais treinados, capazes de apontar qual ponto da rede é o mais adequado para o próximo passo da mulher que está buscando acolhida e orientação”, diz.
Entre as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres da SPM, Nilcéa Freire destaca a inclusão de disciplinas de gênero e violência contra a mulher na matriz curricular das Academias de Polícia de todo o país, a criação de uma matriz interdisciplinar para o atendimento de toda a rede de serviços de apoio às mulheres em situação de violência e a difusão de campanhas e projetos que desconstruam as imagens discriminatórias e estereotipadas das mulheres.
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