Autor original: Maria Eduarda Mattar
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A aids infecta hoje 40 milhões de pessoas no mundo todo. O dado é do recém-lançado estudo do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre Aids (Unaids), divulgado já com vistas aos debates que cercam o Dia Internacional de Luta contra a Aids, celebrado em 1º de dezembro. A pesquisa comenta que, no Brasil, obteve-se bons resultados na prevenção junto a usuários de drogas injetáveis e nas taxas de transmissão vertical do HIV. Mas aponta o aumento de novos casos em outros grupos, como as mulheres casadas.
A Rets conversou com o diretor do Programa Nacional de DST e Aids, o médico Pedro Chequer, sobre o relatório do Unaids, a posição de protagonista mundial que o Brasil tem tido nas ações de prevenção e combate à aids, o papel das ONGs para o sucesso das iniciativas nacionais e as comemorações do 1º de dezembro.
Ele reconhece o caráter único da atuação da sociedade civil organizada - "têm um papel ímpar, realizando algumas ações essenciais, em cuja execução são únicas. Ao longo dos anos, o Estado tem que aprender muito com elas e incorporar alguns desses mecanismos" - e acredita que já se avançou muito em termos de aceitação e desmistificação da doença. "A Igreja arrefeceu os ânimos. Devem ter percebido que a voz da pseudo-moral estava fazendo uma pregação para si mesma. Até porque a política de abstinência é fadada ao fracasso. Nem o próprio clero consegue respeitar e manter."
Rets - O relatório do Unaids, lançado no dia 21 de novembro, indica que os jovens fazem sexo cada vez mais cedo, sem terem completa noção das formas de contaminação da aids, e cada vez mais mulheres casadas contraem o vírus. Pode-se falar em novos grupos de risco nos dias de hoje?
Pedro Chequer - Sim, é verdade que os jovens estão fazendo sexo cada vez mais cedo. Mas a informação sobre não saberem as formas de transmissão das DST/aids é baseada nas respostas espontâneas. Aliás, os dados citados lá são de uma pesquisa nossa. Vamos até escrever uma carta para o Unaids para fazer essa observação. Mas quando foram feitas as perguntas dirigidas, 92% sabem das formas de transmissão pelo sexo e 91% sabem das formas de transmissão por drogas injetáveis. Porém, independentemente disso, mais importante que o conhecimento é a prática. Apesar de os jovens começarem mais cedo, verificamos aumento no uso de preservativo na primeira relação. Em 1986, 9% das pessoas utilizavam camisinha na primeira relação. Em 1998, essa taxa foi para 48%. E em 2004 pulou para 62%.
Efetivamente, cada vez mais as pessoas estão usando preservativo. Se têm sexo precocemente, não tem problema. O importante é que usem as formas de proteção. É suficiente? Não, não é. Mas aumentou o uso do preservativo e diminuiu o estigma das pessoas que têm aids. Conseguimos reduzir de maneira brutal a transmissão vertical [de mãe para filho(a)]. Mas certamente a situação ideal ainda está por vir.
No conjunto, a população jovem é a que mais usa preservativo, diferentemente da adulta. É nesta faixa etária, a adulta, que mais cresce o número de novos casos.
Rets - Aproveitando que o senhor comentou sobre a transmissão vertical, no dia 22 o Programa Nacional de DST e Aids reafirmou, em conjunto com o Unicef, o compromisso de reduzir a zero a transmissão vertical até 2008...
Pedro Chequer - Reafirmamos, durante o lançamento da campanha "Unidos vamos vencer a aids", do Unicef, esse compromisso, que havia sido estabelecido em 2004, de até 2008 erradicar a sífilis congênita e fazer chegar a quase zero a taxa de transmissão vertical da aids, uma vez que chegar ao zero absoluto é difícil.
Rets - O relatório do Unaids ressalta também que os esforços de prevenção à aids foram mais eficazes entre usuários de drogas injetáveis. O que falta para que haja efeitos tão positivos em outros grupos?
Pedro Chequer - Nesse grupo os efeitos foram realmente ótimos, mas não houve bons resultados só entre eles. Como estávamos falando, reduzimos imensamente a taxa de transmissão vertical. Em 1997, quando implantamos a terapia para a gestante, havia 1.006 novos casos de transmissão vertical. Em 2005, esse número caiu para 400. Falando em termos de taxa, em 1996 ela era de 20%. Em 2004, passou para cerca de 3%, 4%. Nossa meta é chegar próximo de zero.
Houve uma mudança fundamental nos hábitos dos homens que fazem sexo com homens. Houve um aumento de 70% no uso de preservativos neste grupo.
Aliás, precisamos lembrar que a prevalência não é o indicador mais importante, mas sim a mudança de hábito. As pessoas, se tratadas, convivem com a aids. Ou seja, dizer que a aids é mais comum num determinado grupo de pessoas não é relevante, pois essas pessoas podem ter contraído o vírus lá atrás. Hoje em dia, ainda têm a doença, mas vivem com isso e com hábitos seguros. Porém, nos indicadores meramente de prevalência, estão lá. E essa mudança de hábitos que percebemos é resultado de um esforço coletivo dos governos federal, estaduais e municipais, da sociedade civil organizada, da mídia etc.
Mas ainda não é suficiente, como sempre digo. É preciso solidificar mais, até para evitar situações como a que houve em São Francisco, nos Estados Unidos. Lá, depois de se fazer um combate inicial forte, teve-se a sensação de estar tudo bem, estar tudo sob controle, e as pessoas passaram a não se proteger mais. Voltaram atrás. Ou seja, baixaram a guarda. No Brasil, felizmente, isso não houve, e esperamos que não se passe.
Rets - Ainda assim, o que falta para que, no conjunto da população, haja resultados tão bons quanto o que há em grupos específicos?
Pedro Chequer - Na população, em geral, o conhecimento tem melhorado. O estigma com relação a eles tem reduzido muito, o que é importantíssimo. A população brasileira amadureceu muito, houve uma "descriminalização" do paciente, por assim dizer. A Igreja arrefeceu os ânimos. Devem ter percebido que a voz da pseudo-moral estava fazendo uma pregação para si mesma. Até porque a política de abstinência é fadada ao fracasso. Nem o próprio clero consegue respeitar e manter.
Outra mudança importante que aconteceu foi a do paciente se mostrar mais, de se declarar doente. Isso ajudou a criar uma situação de auto-ajuda, de auto-aceitação e de união de forças para lutar. Além disso, percebeu-se que as pessoas conseguem conviver com a aids e manter uma vida normal com a doença, e isso é outro aspecto positivo.
Onde não conseguimos avançar foi nas campanhas de massa. Isso é uma dívida do Governo Federal desde a década de 90, não só de agora. As campanhas têm de contemplar aspectos tanto nacionais quanto regionais, utilizando as culturas locais, os costumes. Infelizmente, isso ainda não conseguimos fazer plenamente.
A rigor, o governo tinha que usar a verba da propaganda oficial para as coisas mais prementes, não para ficar fazendo auto-elogio. Tem que servir à população. E isso inclui fazer campanhas mais direcionadas, tanto de aids quanto de dengue, tuberculose etc. Ou investir em educação, em escolas etc. É pra essas coisas que devem ser usados os recursos públicos, não para fazer propaganda de si mesmo. Se está fazendo alguma coisa acertada, não faz mais do que a obrigação. Há milhões de reais sendo utilizados em propaganda institucional, ao mesmo tempo que falta recurso para fazer ações de prevenção à aids e outras doenças.
Rets - Ainda sobre o relatório do Unaids, ele diz claramente que o rápido acesso a medicamentos é essencial para um melhor tratamento. Isso pode reforçar a defesa da quebra de patentes no mundo, ainda mais por ser um órgão da ONU dizendo? Além disso, o senhor acha que essa é a tendência no cenário mundial?
Pedro Chequer - Não tenho dúvida. A tendência no mundo todo é ampliar o acesso. Um exemplo disso são os genéricos. Para se sustentar, um tratamento tem que ser de médio e longo prazo. As políticas públicas têm que ser políticas de Estado, não de governos, dos partidos que estão no poder. E para se propiciar um tratamento de médio ou longo prazo, temos que incrementar a produção nacional de remédios, resgatar a indústria nacional farmacêutica.
Rets - A tendência de quebra de patentes deixa a pesquisa de vacinas desinteressante para os grandes laboratórios? Além disso, eles são necessários, uma vez que normalmente investem mais dinheiro em pesquisas do que os governos?
Pedro Chequer - Não, porque o mercado desses grandes laboratórios é o Primeiro Mundo, não o Terceiro Mundo. Eles fazem pesquisas e desenvolvem remédios para as doenças do Primeiro Mundo, como depressão, obesidade etc. Além disso, existe um período a ser respeitado desde quando se cria um remédio até se poder fazer o genérico. E, nesse meio tempo, o lucro inicial que os laboratórios conseguem é exorbitante e suficiente para obterem retorno do que foi investido.
O que temos que fazer é pesquisa própria. No país, temos um fracasso da política pública de pesquisa científica. Pesquisa não é prioridade de governo. E um país que não se dedica à pesquisa, à produção própria de conhecimento, será sempre subserviente. Todos são necessários e complementares. Estimamos que, se o Brasil produzisse todos os medicamentos do coquetel [de remédios utilizados no tratamento das pessoas doentes de aids], economizaríamos U$ 700 milhões, que poderiam ser investidos em pesquisa, em prevenção.
Rets - Hoje sabe-se mais sobre aids do que sobre muitas outras doenças para as quais já existe vacina. O que falta, então, para se chegar à tão sonhada vacina para a aids?
Pedro Chequer - Infelizmente, só chegaremos à vacina no médio ou longo prazo. Pois depois de encontrada uma fórmula, ela tem de ser testada em humanos, o que leva um tempo, para se medirem as reações e os efeitos.
O investimento na vacina até hoje não foi suficiente. Poderíamos ter feito muito mais. Acho que estamos em um momento de conscientização também: os países desenvolvidos estão percebendo que poderiam e deveriam ter investido mais nisso. Os investimentos em remédios e em vacina não foram proporcionais. Se no passado tivessem investido tanto em pesquisa de vacina quanto fizeram no desenvolvimento de novas drogas, hoje provavelmente já teríamos uma vacina.
Também não houve investimento em microbicida, remédios de uso tópico que ajudam a matar o vírus no local.
Rets - Por ser referência mundial na prevenção e no combate à aids, o Brasil pode ser importante para estimular politicamente a pesquisa em vacina?
Pedro Chequer - Em termos de pesquisa científica da vacina, o Brasil não teria como comprometer muito. No entanto, politicamente, pode ajudar, sem dúvida. E, de algum modo, já está fazendo. Mas repito que o mais importante seria desenvolvermos a tecnologia aqui, desenvolver uma indústria farmacêutica nacional forte. Mas isso não tem sido foco. Hoje somos guiados por um monetarismo. O desenvolvimentismo é exercido a conta-gotas.
Rets - O que o programa brasileiro fez certo, em relação aos de outros países, para ter se tornado referência?
Pedro Chequer - Em primeiro lugar, a parceria com a sociedade civil. Visitei vários países, conhecendo seus programas de combate à aids. Em nenhum lugar vi essa parceria tão sólida. Buscamos implementar políticas que respeitam às reais demandas das pessoas – como deveria ser, aliás, toda política pública, toda ação de governo. O segundo aspecto é o fato de o Brasil ter, quando ninguém falava em tratar o doente de aids – apenas em prevenir novos casos –, implementado à revelia [dos outros países] o tratamento com anti-retrovirais. O terceiro fator é que, desde o início, conjugamos prevenção e assistência, até porque é necessário fazer a prevenção também entre os doentes. Isso é o que chamamos de integralidade de ações. E só em 2002 o mundo adotou, no âmbito das Nações Unidas, uma resolução que orientava as nações a adotarem a integralidade. E nós já fazíamos desde a década de 90.
Rets - Aproveitando o assunto da parceria com as ONGs, há alguns dias o governo aumentou o repasse de verbas para os estados, verbas essas que podem ser repassadas para as organizações não-governamentais. Qual tem sido o papel delas nos esforços nacionais para combater e prevenir a aids?
Pedro Chequer - Não podemos imaginar que as ONGs vão substituir o Estado – nem devem. Elas devem continuar tendo um papel de monitoramento, de proposição, de formulação de políticas públicas etc. Mas na questão da aids elas foram fundamentais. Primeiro, por gerarem novas tecnologias, no sentido de know-how, metodologias, intervenções de sucesso. Elas faziam bem e pensaram não só no que estavam fazendo, mas em como e por quê. Boa parte dessas práticas, se não todas, foi incorporada pela política nacional de prevenção à doença. Nós aprendemos e apreendemos o que elas fazem de bom.
Além disso, existe uma ação suplementar que é executada quase que exclusivamente pelas ONGs, muito por causa da estrutura dos serviços públicos de saúde. Dificilmente haverá funcionários do governo trabalhando junto a profissionais do sexo das 22h às 4h, como as ONGs fazem, por exemplo. Elas têm, portanto, um papel ímpar, realizando algumas ações essenciais, em cuja execução elas são únicas. Ao longo dos anos, o Estado tem de aprender muito com elas e incorporar alguns desses mecanismos, o que vai demandar uma mudança de cultura do próprio Estado.
Rets - O senhor já tocou no assunto, mas é bom reforçar: até que ponto se deve transferir a responsabilidade do Estado para ONGs? Que cuidados são tomados por parte do Programa Nacional de DST e Aids para que isso não ocorra?
Pedro Chequer - Não se deve transferir nunca. O Estado deve assumir e pode, sim, estabelecer parcerias. Mas não pode, em nenhum momento, se ausentar. Deve ensinar o que sabe e aprender também. Se dependermos só dos movimentos sociais, não teremos cobertura nacional, por exemplo. As ONGs são bastante comuns nas cidades, mas não em outros pontos do país.
Rets - No dia 1º de dezembro, comemora-se o Dia Internacional de Luta contra a Aids. Que ações estão sendo programadas pelo Programa Nacional de DST e Aids?
Pedro Chequer - Neste ano, as ações do Dia Internacional vão ser dirigidas à população negra. É uma realidade na epidemia: negros são mais acometidos pela aids. A mulher negra, mais ainda. Queremos conscientizar e provocar discussões sobre esse assunto, principalmente nos serviços de saúde. Há racismo nos serviços de saúde, sim, e sabemos que não é só por causa da renda, mas por causa da cor. Muitas vezes a pessoa pobre e branca é mais bem atendida do que a pobre e negra.
Haverá campanhas na TV, folders, cartazes, debates etc., em parceria com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e o movimento negro.
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