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Hong Kong: nenhum acordo é melhor que um mau acordo

Autor original: Joana Moscatelli

Seção original: Artigos de opinião

Rebrip*

Às vésperas da VI Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), que ocorrerá de 13 a 18 de dezembro próximo em Hong Kong, China, os impasses que vinham se desenhando nos últimos meses parecem indicar que dificilmente se viabilizará a tentativa dos governos de chegarem a um acordo que dê sentido e substância a Rodada Doha. Mais do que isso, para se viabilizar o acordo os diversos governos terão que impor pesadas perdas às suas sociedades, já que entre os principais negociadores é voz corrente que o acordo não sairá de graça para ninguém.

Após os fracassos das reuniões ministeriais de Seattle (1999) e de Cancún (2003), um provável desfecho vazio da reunião de Hong Kong não deixa dúvidas que a mais poderosa instituição criada para fazer avançar ainda mais os processos de liberalização, desregulamentação, privatizações, e regras em prol das transnacionais, criada no ápice do período de hegemonia das idéias neoliberais no mundo, enfrenta um ambiente de crescente resistência, por parte dos movimentos globais e de vários governos, para fazer avançar sua agenda, e vive um problema estrutural de falta de legitimidade. A tentativa de se chegar a um acordo de última hora também está resultando em uma extrema concentração do processo decisório nas mãos de pouquíssimos governos – Brasil, Índia, EUA, União Européia e Japão – o que contribui ainda mais para a corrosão da legitimidade da OMC e para o aprofundamento de sua crise sistêmica.

A conclusão da atual Rodada Doha estava prevista para a reunião ministerial de Hong Kong. Porém, diante dos desacordos apresentados até agora, os negociadores já falam abertamente em estender o debate desta fase até 2006, com o objetivo de tentar alcançar dois terços da agenda prevista inicialmente. O impasse central continua concentrado nas negociações agrícolas, que é o principal tema de reivindicação dos governos dos chamados países em desenvolvimento e onde os governos representantes dos principais mercados (EUA, Canadá, União Européia e Japão) – principalmente a União Européia – encontram-se impossibilitados de fazerem concessões que não têm o apoio político de suas sociedades. Não havendo acordo em agricultura, todos os demais temas deverão seguir travados. Porém, ao mesmo tempo, os governos dos países do Norte insistem em pressionar os países do Sul para que ampliem a abertura nas áreas de bens industriais e serviços (muitas vezes cobrando essa abertura em troca de nenhuma concessão efetiva), visando obter ganhos por meio de fórmulas de rebaixamento de tarifas ou da imposição de “parâmetros” para a ampliação das ofertas em serviços.

Diante de um cenário de provável falta de acordo e de alargamento do prazo do processo negociador, corre-se ainda o risco de serem incluídos temas que haviam sido rechaçados anteriormente. Este é o caso das compras do setor público, que foram excluídas da agenda em Cancún e que agora alguns governos tentam empurrar com ênfase através de cobranças nas negociações de serviços.

Para a Rebrip, o processo negociador na OMC é mais um dos elementos da disputa por um projeto de país. Não aceitamos que, em nome de eventuais ganhos para um ou outro setor econômico (especialmente para a grande agricultura comercial de exportação) sejam impostas perdas para a ampla maioria da sociedade. Nos opomos a que o Brasil faça mais concessões na área de bens industriais – como já sinalizado pelo governo brasileiro em negociações no âmbito do grupo restrito que engloba EUA, União Européia e Índia, além do Brasil – e que podem complicar ainda mais a já difícil situação do emprego no país. Essas concessões também podem gerar novas pressões para redução dos salários, uma vez que reforçarão o chamado “discurso de competitividade”. Tampouco é aceitável fazer novas concessões na área de serviços, quando o país ainda se debate com o processo de desregulamentação dos anos 90, que gerou enormes prejuízos na prestação de serviços públicos de qualidade, e resultou em um grande e indefensável aumento de tarifas que apenas garante os lucros das empresas que participaram das privatizações. A mudança das regras das negociações em serviços – modificando a estrutura negociadora com a inclusão de um sistema plurilateral que “carteliza” as demandas dos países desenvolvidos, ao lado da aceitação de “parâmetros mínimos” para as negociações, objetivando quantificar e colocar pressão em uma negociação que envolve basicamente regulação doméstica e atendimento de direitos básicos das populações - seria mais um passo para transformar cidadania em negócios.

É claro que os governos dificilmente reconhecerão um eventual fracasso em Hong Kong. O projeto de declaração apresentado no último dia 26 de novembro pelo diretor geral da OMC Pascal Lamy é revelador do vazio em que caíram as tentativas de se chegar a algum acordo, deixando os prazos em aberto e acenando com algumas medidas de trato especial e diferenciado para os países menos desenvolvidos. Os governos buscam neste momento salvar as aparências de um acordo vazio, ganhando tempo com o alargamento do prazo para tentar avançar rumo à conclusão da Rodada. Mas a verdade é que Hong Kong marcará mais uma vitória das redes, organizações e movimentos sociais que lutam pelo direito dos países terem políticas nacionais, de escolherem processos de integração soberanos; de formularem políticas industriais e de geração de empregos; de defenderem e protegerem a agricultura familiar e camponesa e a segurança alimentar; de defenderem o acesso, autonomia e controle social sobre os serviços públicos e essenciais; de defenderem o meio ambiente e de defenderem a saúde pública, a indústria nacional e o amplo acesso da população necessitada a medicamentos básicos. Depois de Hong Kong, devemos seguir nosso caminho de resistência, debate e mobilização.


*Rebrip é a Rede Brasileira pela Integração dos Povos, composta por 35 organizações da sociedade civil, entre elas a Fase, o Ibase, o Inesc, o MST e a CUT.






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