Autor original: Joana Moscatelli
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Desde sua criação em 1995, o principal papel da Organização Mundial do Comércio (OMC) tem sido expandir seu poder de regulamentação em 147 países, o que significa exercer grande influência no cotidiano de milhões de pessoas. Apesar de difundir a ideologia do “livre comércio”, a OMC possui uma complexa estrutura de regras utilizada na defesa dos interesses de grandes multinacionais. A abrangência dos acordos contidos na OMC vai muito além de temas relacionados ao comércio internacional.
Algumas dessas regras estão contidas no acordo conhecido como Trips (Trade-Related Intellectual Property Rights), que regulamenta a propriedade intelectual. Esse acordo possui uma abrangência maior do que a maioria das leis de patente dos países-membros da OMC e beneficia principalmente as poderosas indústrias farmacêuticas norte-americana e européia. A concentração do controle de patentes por meia dúzia de multinacionais, na área de biotecnologia, é considerada hoje uma terceira fase no processo de colonização, iniciado no período das conquistas territoriais, durante os séculos XV e XIX, e passando pelo controle dos mercados financeiros nas últimas décadas.
Países como Brasil e África do Sul questionaram o TRIPS para garantir o direito de fabricar medicamentos genéricos. Essa questão tem sido debatida desde que os Estados Unidos processaram o Brasil por fornecer remédios genéricos para o tratamento do vírus HIV. A vitória brasileira nesse caso abriu um importante precedente contra as regras de patente na OMC. Mas, atualmente, a proposta estadunidense só inclui a quebra de patentes em casos de crise de saúde pública e limita a lista de medicamentos para o tratamento da AIDS, da malária e da tuberculose. Mesmo com essa limitada possibilidade, raramente as patentes são quebradas, pois os grandes laboratórios exercem forte influência sobre os governos.
Os acordos da OMC representam também um grande risco para a soberania alimentar de comunidades rurais, através da possibilidade de grandes empresas controlarem patentes de recursos genéticos e conhecimento tradicional indígena em relação, por exemplo, à produção de grãos nativos como milho, arroz e feijão.
Outro tema polêmico é a abertura dos setores de serviços para empresas estrangeiras, através do acordo chamado GATS (General Agreements on Trade in Services). O resultado dessa política, representada principalmente pelo processo de privatização de serviços públicos, foi o aumento do desemprego e a diminuição de investimentos em setores estratégicos da economia. Esse acordo representa ainda um grande perigo para a garantia de direitos fundamentais, como saúde e educação.
O chamado “livre comércio” criou também regras estritas contra o controle do Estado a investimentos externos, inclusive contra a possibilidade de os governos estabelecerem leis de proteção ao meio ambiente e ao bem-estar social que possam afetar os lucros dos investidores.
Os acordos de livre comércio não são implementados de forma equilibrada entre países do Norte e do Sul. Por esse motivo, as negociações da OMC vivem sob ameaça de fracasso. As únicas possibilidades de se evitar um novo impasse dentro da OMC seriam: (1) se os países industrializados deixassem de proteger suas indústrias, sua agricultura e suas economias; ou (2) se os países periféricos se submetessem, definitivamente, às regras dos mais fortes. Diante desse dilema e dos crescentes protestos de organizações sociais, a OMC dificilmente terá condições de superar sua crise de credibilidade.
A reunião ministerial realizada em Cancun, México, de 9 a 13 de setembro de 2003, foi considerada um fracasso por setores conservadores e um sucesso por movimentos sociais. O lema das organizações que prepararam os protestos em Cancun era “tirar a OMC dos trilhos” - o que realmente ocorreu.
Esse não era o objetivo do representante comercial dos Estados Unidos, Robert Zoellick, que na véspera da reunião anunciou, “Queremos resultados ambiciosos, não estamos aqui para conseguir apenas um acordo no papel. Queremos abertura de mercados”. Porém, os EUA saíram da reunião sem motivos para comemorar.
Os movimentos sociais reconheceram a importância do conflito gerado na negociação sobre agricultura, onde o chamado G-20 resistiu às imposições dos Estados Unidos e União Européia para que os demais países abrissem seus mercados para produtos industriais e serviços, sem abrir mão da abertura dos seus próprios mercados aos produtos agrícolas do sul. Esse grupo concentra 63% dos produtores agrícolas do mundo e é formado por mais de 20 países, entre eles Brasil, México, Argentina, Índia, China, África do Sul e Egito.
Apesar de sua relevância nas negociações de Cancun, a agenda do G-20 prioriza acesso a mercados e não inclui propostas para o fortalecimento do mercado interno, do desenvolvimento rural e da soberania alimentar. Nesse contexto o grande vilão é o subsídio, mas não se questiona problemas causados por monopólios agrícola monopólios agrícolas e pelo modelo de produção voltado para o mercado externo.
“Defendemos o direito e o dever dos Estados em apoiar e promover seu próprio setor agropecuário, especialmente a agricultura camponesa, porque dela dependem a qualidade de vida de amplos setores da população, o equilíbrio territorial e ambiental, e a capacidade de definirem suas prioridades e estratégias comerciais”, explica a Via Campesina.
O aumento das exportações não significa melhores condições de vida no campo. Com a implementação do NAFTA (Tratado de Livre Comércio da América do Norte), o México triplicou suas exportações agrícolas e, ao mesmo tempo, três milhões de camponeses foram arruinados. Atualmente, a produção mexicana de milho é controlada por grandes multinacionais. Na Ásia, a exportação de arroz é dominada pela Cargill que, junto com a General Foods e a Nestlé, controla cerca de 70% do mercado internacional de alimentos.
A destruição da economia rural promovida por políticas de “livre comércio” tem gerado uma nova forma de protesto, como no caso do agricultor coreano Lee Kyung Hae, que tirou a própria vida durante a manifestação contra a OMC em Cancun. Ao contrário da imagem de desespero ou desequilíbrio difundida pela mídia conservadora, o gesto de Lee representa um sacrifício consciente contra a opressão de milhares de camponeses.
Desde a criação da OMC, cerca de 600 mortes têm sido registradas por ano na Índia. Os camponeses preferem morrer a ver suas terras confiscadas por não conseguirem cobrir os custos da produção, principalmente em períodos de seca. Por essa razão, o principal lema das manifestações em Cancun passou a ser “A OMC mata camponeses”. A tentativa de privilegiar os interesses de empresas multinacionais não acontece somente nas negociações agrícolas. Os Estados Unidos e a União Européia buscam também a privatização e o enfraquecimento do setor público através de acordos sobre serviços, investimentos e compras governamentais. Mais de 70 países, liderados pela Malásia, Índia e Tailândia, formaram um bloco de oposição capaz de bloquear essas negociações em Cancun. O Brasil não participou desse grupo, já que o governo propôs negociar esses temas na OMC como forma de evitar sua inclusão na agenda da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas).
Para a Campanha Brasileira contra a Alca, a propaganda do “livre comércio” representa uma perigosa armadilha. Após a realização de um plebiscito popular com mais de 10 milhões de votos contra a participação do Brasil na Alca, a campanha reivindica que o governo defenda os reais interesses do povo brasileiro.
Por isso, é muito importante que as organizações brasileiras participem das mobilizações contra a próxima reunião ministerial da OMC, que será realizada em dezembro de 2005, em Hong Kong. Em preparação para essa reunião, ocorrerão diversos momentos de negociação entre os países, que precisam ser acompanhados de perto pela sociedade. O que está em jogo é a possibilidade de nosso país definir os rumos de sua economia, seu modelo de desenvolvimento e seu próprio futuro como nação soberana.
No caminho até Hong Kong, a Campanha Brasileira Contra a Alca reforçará as mobilizações contra as políticas propostas pela OMC e, ao mesmo tempo, fará avançar o debate sobre propostas alternativas de integração. Consideramos que processos soberanos de integração entre os povos possam originar um forte movimento contra-hegemônico e anti-imperialista. Por este motivo, esta cartilha apresenta sugestões para a construção de alternativas de integração voltadas às necessidades e interesses dos povos.
Esta é a Introdução da cartilha "OMC: 10 anos bastam! Ações e estratégias rumo a Hong Kong", organizada pela Campanha Brasileira contra a Alca e pela Via Campesina. A íntegra do documento está disponível na área de Downloads desta página.
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