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Uma década de polêmica

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Uma década de polêmica
Divulgação

A cidade chinesa de Hong Kong, por décadas, foi conhecida como um porto livre, onde mercadorias podiam ser comercializadas livremente e os capitais tinham grande liberdade para ir e vir. De 13 a 18 de dezembro, a ilha receberá a sexta reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), entidade que pretende justamente liberalizar as trocas internacionais e estabelecer regras que evitem distorções comerciais. Como acontece desde que foi criada, há dez anos, o encontro será palco de várias polêmicas.

Desde 1995, quando nasceu, após oito anos de muitas discussões na Rodada do Uruguai, a OMC tem sofrido críticas de governantes de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Uns acham que as regras criadas pela entidade beneficiam apenas os mais ricos; outros acreditam que as normas não podem interferir em suas políticas internas. Foram poucas as vezes em que os países pobres saíram vencedores dos debates, custosos e demorados para quem tem pressa na resolução de problemas. A falta de consenso nas rodadas de negociação e a insistência de muitos países desenvolvidos em não cumprir os acordos dos quais são signatários têm levantando muitos questionamentos acerca da legitimidade e força da OMC.

Um exemplo disso é a própria reunião de Hong Kong. Teoricamente, ela deveria ser a última etapa da rodada de Doha, iniciada em 2001, mas a própria OMC já admite que será necessário adiar o início da vigência de algumas normas para o fim de 2006.

A disputa fez com que o diretor-geral da entidade, Pascal Lamy, pedisse aos negociadores que redobrassem seus esforços para que haja sucesso. “Peço a todas as delegações que exercitem sua boa vontade e redobrem seus esforços para encontrar todas as possíveis convergências nas poucas horas que nos restam”, declarou. Na agenda de negociações estão a liberalização do mercado de bens agrícolas e não-agrícolas, serviços e outros itens ligados ao desenvolvimento.

Agricultura

O assunto mais polêmico a ser discutido na cidade chinesa será a agricultura. Desde 2001, em Doha, reunião que deu início à atual rodada de negociações, não se consegue chegar a um consenso sobre o tema. Países em desenvolvimento reclamam da política tarifária e de subsídios adotada por integrantes da União Européia e pelos EUA, que é ilegal, segundo as regras da OMC. A negociação está se desenrolando pela atuação de cinco partes interessadas (Austrália, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Índia, além da União Européia). Segundo eles, isso faz com que os preços caiam no mercado internacional e ainda dificulta o acesso de seus produtos a áreas de grande consumo. Europeus e norte-americanos alegam ser necessário manter os subsídios para proteger seus agricultores.

Estudo da ONG britânica Oxfam lançado no dia 30 de novembro revela o tamanho do prejuízo causado por essa política. O relatório, chamado de “Verdade ou Conseqüências”, mostra que os subsídios concedidos por UE e EUA somam US$ 13,5 bilhões. A UE concede US$ 4,2 bilhões e os EUA, US$ 9,3 bilhões. A ONG afirma que 38 países sofrem com essa política – de grandes produtores, como Brasil e México, a pequenos, como Moçambique e Malawi (pequeno país da África oriental).

Um exemplo do prejuízo é a produção de sucos de fruta. A União Européia concede subsídios de 250 milhões de euros para produtores da Itália e Espanha, principalmente. O valor corresponde a 300% do valor do suco. Agricultores da Argentina, Brasil, Costa Rica e África do Sul poderiam faturar US$ 40 milhões a mais por ano se a UE suspendesse essa política. Os preços mundiais subiriam 5%, beneficiando agricultores.

Tabela 1: Casos potenciais contra a União Européia











































Produto Usuário principal Reclamante potencial
Tomates Grécia, Itália, Espanha, Portugal Chile, China, México, Marrocos, África do Sul, Tunísia
Pêssegos enlatados Grécia, Espanha Argentina, Chile, China, África do Sul
Pêras enlatadas Itália, Espanha, França Argentina, Chile, China, África do Sul
Suco de frutas cítricas Itália, Espanha Argentina, Brasil, Costa Rica, Marrocos, África do Sul
Vinhos e bebidas alcólicas França, Espanha, Itália Armênia, Chile, Malásia, México, África do Sul
Tabaco Espanha, Itália Brasil, China, Guatemala, Índia, Indonésia, Malawi, Moçambique, Sri Lanka, Tanzânia, Uganda, Zimbábue
Manteiga França, Alemanha Argentina, Brasil, Egito, Marrocos, África do Sul, Uruguai
Leite desnatado França, Alemanha República Dominicana, Egito, Indonésia, Malásia, México, Nigéria, Tailândia, Venezuela


Tabela 2: Casos potenciais contra os Estados Unidos



















Produto Reclamante potencial
Milho Argentina, Equador, El Salvador, Colômbia, Honduras, Guatemala, México, Paraguai, Peru, África do Sul, Venezuela
Arroz Costa Rica, Gana, Guiana, Haiti, Índia, México, Paquistão, Peru, Suriname, Tailândia, Uruguai, Venezuela, Zâmbia
Sorgo Quênia, México, África do Sul


O diretor da Campanha de Comércio da Oxfam, Phil Bloomer, diz estar decepcionado com o andamento das negociações. "É muito decepcionante ver o quanto os membros da OMC estão longe de chegar a um acordo que ajude os países pobres. Essa rodada foi lançada com grandes promessas, mas quatro anos depois o desenvolvimento foi jogado para o fim da agenda. Países ricos têm buscado seu próprio interesse e devem ser responsabilizados por esse fracasso".

A Oxfam pede, entre outras medidas, que a UE e os EUA cumpram os acordos da OMC e parem de distorcer os preços internacionais. Já os países em desenvolvimento deveriam ser autorizados a manter políticas de subsídios. A disputa, no entanto, não deve ser fácil. O G20 (grupo de 20 países em desenvolvimento) afirma que para haver um corte real de subsídios, os EUA deveriam reduzir o total de seu apoio distorcivo em 75% e a UE, em 80%.

Porém isso dificilmente acontecerá. “As longas negociações da Rodada de Doha há muito apontam que a abertura agrícola multilateral não será radical. Os ganhos em acesso a mercados dos países desenvolvidos, até mesmo para os principais exportadores agrícolas entre os países em desenvolvimento, como Argentina e Brasil, serão limitados”, prevê Mário Presser, coordenador do curso de Diplomacia Econômica do Instituto de Economia da Unicamp.

Para ele, o importante para o Brasil e outros países em desenvolvimento é assegurar seu espaço político não aceitando qualquer proposta, ao menos “enquanto não for formado um novo consenso internacional sobre o desenvolvimento mais favorável aos seus interesses de longo prazo”. Mais especificamente em relação ao Brasil, Presser acredita que o governo Lula tem uma das melhores diplomacias comerciais do mundo, mas estaria faltando um projeto de inserção na globalização. “O país está dividido entre uma visão livre-cambista da Agricultura, uma visão neoliberal da Fazenda e uma visão nacional-desenvolvimentista de outros setores do governo. Não há competência diplomática que supere essa fragmentação de agendas”, afirma.

Na opinião da professora de Direito do Comércio Internacional da Faculdade de Direito da Uerj Ana Cristina Pereira, o problema da OMC está no processo de negociação, nem sempre justo. “Apesar de no papel todos terem os mesmos direitos e os votos terem peso equivalente, tem poder quem tem dinheiro”, analisa. As decisões na entidade que rege as trocas internacionais são tomadas apenas se há consenso em torno delas. Por isso, diz a professora, os países mais desenvolvidos podem pressionar os menores para fazer com que seus interesses sejam atendidos.

Segundo ela, a agricultura é um tema polêmico por mexer com não só com a economia, mas também com a cultura dos países. “Em muitos lugares da Europa”, exemplifica, “a agricultura é um símbolo. Às vezes, ela nem é tão importante economicamente, mas carrega uma carga simbólica muito grande, o que leva dirigentes a pensarem duas vezes antes de mexer com o campo. É um problema mais político do que econômico”.

E é justamente o papel político da OMC que tem incomodado representantes de movimentos sociais e ONGs. Para eles, a entidade não cumpre a promessa de trabalhar em prol da diminuição da desigualdade econômica do mundo, mas sim em favor do interesse de multinacionais e de governos de países desenvolvidos – o que estaria minando sua legitimidade.

Legitimidade







Ficha


No dia 1º de novembro, organizações da sociedade civil de vários países enviaram uma carta aberta ao diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, criticando a falta de transparência no processo de elaboração dos documentos que serão apresentados no encontro de Hong Kong. De acordo com a carta, “estão sendo incluídos elementos que claramente não são unânimes e que, para serem retirados do texto, requerem o consenso dos membros”.



Francisco Figueiredo de Souza, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), explica que, diferentemente da ONU, a OMC é baseada na regra do consenso, que muda a maneira como as negociações se dão. Segundo ele, às vezes esse procedimento pode ser menos democrático do que a regra da votação, porque, além dos motivos alegados pelo documento assinado pelas organizações, os países podem ser pressionados por outros membros a concordar com a maioria. A falta de transparência e um processo de tomada de decisões pouco democrático não são os únicos problemas enfrentados pela organização. “Em 1995, falava-se que a OMC era a solução para a pobreza. Desde 2001 estamos na rodada do desenvolvimento e achamos na época que alguns temas poderiam começar a ser discutidos, como as barreiras alfandegárias. Isso não aconteceu. É preciso ter um pouco de ceticismo em relação aos organismos internacionais, pois eles dependem dos países e os países têm poderes diferentes”, destaca Souza, que é um dos organizadores da cartilha “OMC: o que isso tem a ver com você?”, lançada pelo Idec.






Reuniões da OMC


O objetivo da cartilha é traduzir para uma linguagem acessível para o publico as decisões que o Brasil vem tomando na área de comércio internacional e, segundo ele, mostrar os exemplos práticos de como essas decisões têm influência no bolso das pessoas. Para Mário Presser, a OMC vem perdendo legitimidade e cada vez mais tem dificuldade em formular novos consensos. Para ele, o papel da OMC foi desenhado numa época em que os países desenvolvidos queriam derrubar barreiras internas dos países em desenvolvimento para abrir caminho para expansão de suas empresas transnacionais. Além de defender a redefinição do papel da organização, Presser acredita que a principal lição de uma década de OMC é a necessidade de uma maior fiscalização de suas deliberações. “Suas promessas devem ser monitoradas por indicadores objetivos e ações mandatórias em caso de insuficiência”, defende.

E a sociedade civil?

Praticamente não há participação da sociedade civil na OMC. Esse é o diagnóstico da professora Ana Cristina Pereira, da Uerj. “Algumas ONGs já foram consultadas quando o assunto envolvia o meio ambiente, mas parou por aí. Elas não tiveram nenhum poder decisório”, analisa. A professora admite, no entanto, que a opinião pública tem grande poder de influência no processo de justiça social dentro de cada Estado.

Não há consenso, no entanto, sobre como seria essa participação. “A OMC é uma organização intergovernamental e deve ter, como tal, canais de diálogo com a sociedade civil cada vez mais ágeis. A organização tem hoje mais transparência nas suas decisões graças à luta das ONGs. Mas sou contrário à participação de ONGs diretamente nas decisões da OMC. Acho que devem atuar indiretamente, como têm feito com grande competência até agora”, acredita Presser.

Francisco de Souza, pesquisador do Idec, concorda que essa participação deve ser discutida. “Inicialmente algumas entidades de defesa do meio ambiente e alguns sindicatos tinham a percepção de que, já que a OMC era a única organização com poder coercitivo criada pós-guerra fria, poderia estabelecer ganhos não só comerciais. Mas hoje há uma percepção de que não adianta incluir outras pautas que não o comércio se a lógica da organização é justamente favorecer o comércio”, afirma Souza. Para ele, isso seria inviável. “Sem dúvida, queremos mais democracia, controle social e transparência, mas a maneira como vamos participar deve ser discutida”, defende, lembrando que hoje as empresas influenciam muito mais na OMC do que toda a sociedade civil.

A principal crítica de organizações da sociedade civil é que a OMC tende a negociar coisas que têm conseqüências muito além do lado comercial. “A transferência de tecnologia é um desses temas que não sabemos se deve ser tratado como assunto comercial”, lembra Souza, que ainda ressalta o problema da propriedade intelectual. A Convenção sobre Diversidade Biológica, realizada durante a Eco-92, no Rio de Janeiro, determina que as populações tradicionais têm direito sobre seus produtos e meios de produção. “Os grandes laboratórios usam essa sabedoria de anos. Colocam dentro de uma pílula e patenteiam. Não é o Trips [acordo da OMC sobre propriedade intelectual] que deve regulamentar isso. Ele passa por cima de muitas regras”, critica.

Luísa Gockel e Marcelo Medeiros

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