Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() Ilustração: Peter Kuper | ![]() |
Um relatório que faz sugestões para a implementação da reforma agrária no país como meio de deter a violência no campo e outro que classifica o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de terroristas e pede o indiciamento de membros da coordenação do movimento. O primeiro é apresentado à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Terra e não é aprovado por seus integrantes, cuja maioria era formada por deputados da bancada ruralista, grupo de parlamentares conhecido por defender a propriedade rural e o agronegócio. No lugar do texto original, é aprovado o segundo, considerado um retrocesso por quem defende os movimentos sociais.
O resultado foi a confusão vista na sala da CPMI no dia 29 de novembro, quando o relatório final foi aprovado por 12 votos a 1. O texto do deputado João Alfredo (PSOL-CE), relator da CPMI, e primeiro a ser apresentado, foi derrotado por 13 a 8. Deputados do PT e de partidos de esquerda como o PSOL, revoltados, gritavam contra a decisão do presidente da CPMI de aceitar o relatório final e enviar os projetos de lei nele contidos para votação na Câmara. A senadora Ana Júlia Carepa (PT-PA), por exemplo, rasgou o relatório e, chorando, acusou os parlamentares que votaram a favor do documento de serem cúmplices de assassinos de trabalhadores rurais. Enquanto isso, outros deputados e senadores comemoravam a vitória dos ruralistas.
“A única intenção do relatório aprovado é desmoralizar e criminalizar o MST”, afirma o deputado João Alfredo (PSOL-CE). Segundo Alfredo, que já foi advogado do MST, o documento aprovado é tão radical em suas propostas que ele mesmo se desmoralizou perante os demais deputados. “Não acredito que nenhum dos projetos de lei seja aprovado”, diz.
O relatório aprovado foi escrito pelo deputado Abelardo Lupion (PFL-PR), ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), e criminaliza os movimentos sociais de luta pela terra. “O setor produtivo não agüenta mais ser desrespeitado”, desabafou o congressista do Paraná no dia da votação de seu relatório. Para ele, o relatório de João Alfredo ameaçava o direito à propriedade e defendia os sem-terra. O deputado cearense, porém, afirma que a causa dos conflitos é justamente a falta de reforma agrária.
Indignado com a recusa de seu relatório, João Alfredo o entregou à representante da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, Hina Jilani, que está visitando o Brasil para produzir uma análise sobre a situação no país. “O conteúdo pode influenciar no relatório da ONU”, diz Alfredo. “Precisamos da pressão internacional para resolver a questão agrária brasileira”.
O presidente da CPMI, senador Álvaro Rodrigues (PSDB-PR), lamentou a disputa. Para ele, a comissão se perdeu no embate ideológico e terminou sem um bom texto aprovado. “Nenhum dos dois relatórios era o melhor. O ideal era uma composição dos dois. O segundo relatório foi aprovado porque a representação dos proprietários de terra era maior que a outra representação. O que houve aqui foi um confronto de natureza ideológica, uma exacerbação dos debates, que tornou difícil a administração dos antagonismos”, disse no encerramento das atividades.
Ou seja, após dois anos de discussões e prestação de depoimentos, pouco será acrescentado à política agrária nacional – o que não significa que os dois lados tenham se manifestado.
Repercussão
A aprovação do relatório de Lupion repercutiu bastante. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) declarou, em nota, que “o dia 29 de novembro de 2005 ficará para a história do nosso país como mais um dia em que os senhores da terra e do agronegócio impuseram à nação a sua vontade. A aprovação do relatório de Lupion consagra a prática da violência de quem historicamente se considera ‘dono e senhor’ das terras e da vida e os isenta de qualquer responsabilidade”.
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão ligado à Presidência da República e que reúne representantes de diversos ministérios e entidades da sociedade civil, classificou o relatório de retrógrado, “por não levar em conta a violência sofrida pelos que lutam pela terra e por criminalizar suas lideranças”. Para o Consea, essa posição está em desacordo com a Constituição em relação à reforma agrária e à função social da terra.
Já o ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, Luiz Dulci, classificou o relatório de “contra-senso”.
Por outro lado, a Sociedade Rural Brasileira (SRB) defende o relatório de Lupion. “A CPMI colaborou muito ao desnudar as relações pouco transparentes dos chamados ‘movimentos sociais’ e seus verdadeiros financiadores, colaborou ao mostrar à sociedade em geral que esses movimentos muitas vezes agem de maneira inalcançável pelas leis brasileiras, pois se escondem atrás de cooperativas e não possuem personalidade jurídica que possa ser responsabilizada por suas atitudes positivas, se houver, e negativas”, disse à Rets o presidente da SRB, João Sampaio. “Se não tomarmos alguma medida mais forte que iniba definitivamente as invasões, nunca conseguiremos ter paz no campo. Os agricultores brasileiros precisam ter segurança para trabalhar e, principalmente, morar em paz”, complementa o agricultor, enfatizando a questão da segurança na moradia.
Primeiro relatório
O conteúdo do texto aprovado está concentrado na análise da atuação do MST no país. A ela é reservado o maior capítulo, o qual afirma existirem dois movimentos – um real e outro virtual. O virtual, segundo o texto, é uma “figura simpática, que um dia lutou de forma pacífica contra desigualdade social, reivindicando de forma pacífica a propriedade de grandes latifúndios improdutivos”.
Essa figura teria perdido espaço para outra, real, à qual o relatório se opõe. “O verdadeiro MST”, afirma, “é um movimento revolucionário de esquerda, que é contra toda e qualquer grande propriedade, produtiva ou não. O MST real não reluta em desviar recursos, públicos ou privados, se for para fortalecer sua organização e alcançar o poder”.
Para o relatório, o Movimento dos Sem Terra é um grupo econômico que não assume suas atividades e possui diversas irregularidades. Entre elas, a cobrança de “pedágio” sobre recursos repassados pelo governo federal a assentados que fazem parte do movimento. Há também acusações de apropriação, pelo movimento, de áreas destinadas a agricultores e de irregularidade em alguns convênios. O relatório recomendava a suspensão de repasse de recursos federais para os convênios firmados com a Associação Nacional de Coooperativas Agrícolas (Anca), a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab) e o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra), entidades ligadas ao MST. A recomendação foi retirada da versão final.
Tudo isso, aliado à prática de ocupação de terras adotada pelo MST, faz com que o movimento tome feições terroristas, segundo o relatório. Por essas razões, o documento chegou a pedir o indiciamento de cinco pessoas com cargo de direção no movimento por crimes de formação de quadrilha e extorsão. O pedido, porém, foi retirado da versão final depois de apelos dos senadores Eduardo Suplicy (PT-SP) e Heloísa Helena (PSOL-AL), que também negociaram a retirada da recomendação de suspensão de repasses de recursos.
Os senadores também conseguiram convencer Lupion a alterar o texto que pedia à Polícia Federal a formação de uma força-tarefa para investigar "organizações que incentivam e promovem a violência no campo, especialmente aquelas ligadas ao contrabando de armas e sua utilização na invasão de propriedades privadas". Segundo Heloísa Helena, a ação poderia ser direcionada apenas ao MST, se o texto fosse mantido. “O MST, todos nós sabemos, é uma grande quadrilha", afirmou Lupion. "Mas não tínhamos prova. Achamos por bem atender o pedido de Heloísa Helena e Eduardo Suplicy porque a atuação deles foi muito ética", disse o deputado. Na nova redação, a recomendação de ação da força-tarefa se restringe “às organizações que incentivam e promovem a violência no campo".
Por outro lado, foi mantido o pedido de indiciamento de dois diretores da Associação Nacional de Coooperativas Agrícolas (Anca), José Trevisol e Pedro Christóffoli, e um diretor da Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab), Francisco Dal Chiavon, todos ligados ao MST. Também foi mantida recomendação de investigação, pela PF, de ligações entre o Movimento dos Sem Terra e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Além disso, o relatório propõe dois projetos de lei. Um enquadra a invasão de terras na Lei de Segurança Nacional e afirma, em sua justificativa, que “esse tipo de terrorismo não deve ser aceito e deve ser punido com o mesmo rigor que as outras formas de atos terroristas”. O outro classifica a invasão de propriedades como crime hediondo, tendo como pena prisão de três a dez anos.
MST diz que relatório é retrógrado
Os sem-terra afirmam que todas as explicações sobre os problemas apontados pela comissão já foram dadas e que o relatório apenas reflete os interesses da bancada ruralista. Em nota oficial, o movimento se diz indignado com a aprovação do substitutivo de Abelardo Lupion. “O relatório aprovado se desmoraliza por si próprio. A bancada ruralista, retrógrada, impediu o debate com a sociedade sobre a necessidade da reforma agrária no Brasil. Como dar credibilidade a um relatório escrito pelo ex-presidente da UDR?”, pergunta o coordenador nacional do MST, João Pedro Stédile, que acusa a CPMI de ter feito o “trabalho sujo da UDR”.
O ativista acredita que os projetos de lei não serão aprovados pelo Congresso e afirma que o MST continuará a promover ocupações de terra, por ser um direito garantido pela Constituição. “Esperamos que o Congresso Nacional tenha mais sensibilidade e capacidade de distinguir e compreender os movimentos sociais, como tem feito o Judiciário. Esperamos que o Congresso não se preste a fazer o trabalho sujo da UDR, como fez a CPMI”, declara.
O relatório aprovado também recebeu críticas por não se aprofundar em alguns dos pontos que a CPMI se propunha a investigar. Entre eles, a utilização de trabalho escravo em fazendas e conflitos fundiários. “A bancada ruralista trabalhou a idéia de fazer a ‘CPI do Boné’, contra o MST, quando deveria examinar a questão da posse da terra no Brasil. Vários deputados não participaram das sessões, apesar de suas assinaturas constarem na lista de presença. O Lupion, por exemplo, só visitou o Paraná e o Pontal do Paranapanema”, reclama o deputado João Alfredo.
Desde que foi criada, em 2003, a CPMI visitou nove regiões consideradas as mais problemáticas quando o assunto é a luta pela terra: Pernambuco, Pará, Pontal do Paranapanema (SP), Rondônia, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso, Ceará e Amapá.
Primeiro relatório
O relatório de João Alfredo possui grandes diferenças em relação ao de Lupion. Para começar, além de analisar os movimentos sociais que lutam pela reforma agrária, como o MST, também pesquisou os ruralistas. Fez também uma análise mais detalhada da situação da disputa pela terra nos diferentes estados visitados. Resumindo, enquanto o relatório aprovado defende a propriedade privada acima de tudo e busca criminalizar o MST, o do deputado cearense exalta a reforma agrária e a luta dos movimentos sociais por ela, além de criminalizar a UDR.
Segundo o texto de Alfredo, a questão agrária brasileira pode ser resumida em três pontos: concentração fundiária, violência e resistência de trabalhadores. Por isso, ao contrário do relatório aprovado, pede a agilização do processo de assentamento e desapropriação de terras improdutivas e a prisão de assassinos de ativistas. Também traz recomendações a governos estaduais para que punam responsáveis por crimes e agilizem o processo de reforma agrária em seus estados. O relator havia pedido o indiciamento de ruralistas, entre eles o atual presidente da UDR, Luiz Antônio Nabhan Garcia.
O relatório determina que as metas do 2º Plano de Reforma Agrária sejam cumpridas. Uma dessas metas seria o assentamento de 400 mil famílias – mas apenas 45% dessa meta foi atingida até agora. Para facilitar o processo de assentamento, há uma recomendação de que se agilize o programa de legitimação de posses de famílias ocupantes de terras públicas com área de até 100 hectares.
O texto também pede que o Ministério Público e a Polícia Federal protejam ativistas ameaçados de morte em diversos estados, principalmente no Pará, além de investigar milícias privadas sustentadas por grandes proprietários rurais – o que irritou os ruralistas, que afirmam se armar para defender suas propriedades.
Em relação às propostas de lei, o relatório sugere a aprovação de uma legislação que defina o que é uma propriedade produtiva, de outra que agilize o julgamento de casos de disputa de propriedade, dando prazo de 90 dias para que ações de determinação de posse sejam julgadas. O deputado João Alfredo garante que apresentará todos esses projetos à Câmara assim que possível.
A CPMI
A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Reforma Agrária e Urbana, cujas atividades começaram no fim de 2003, ficou mais conhecida como a CPMI da Terra. Seu objetivo era “realizar amplo diagnóstico sobre a estrutura fundiária brasileira, os processos de reforma agrária e urbana, os movimentos sociais de trabalhadores (que têm promovido ocupações de terras, áreas e edifícios privados e públicos, por vezes com violência), assim como os movimentos de proprietários de terras (que, segundo se divulga, têm se organizado para impedir as ocupações, por vezes com violência)”. A presidência ficou a cargo do senador Álvaro Dias (PSDB-PR), a vice-presidência com o deputado Ônix Lorenzoni (PFL-RS) e a relatoria foi entregue ao deputado João Alfredo (PSOL-CE).
O resultado da Comissão reflete sua composição. A maioria dos 24 integrantes (12 senadores e 12 deputados) faz parte da chamada “bancada ruralista” ou a ela está ligada.
A Comissão se reuniu 43 vezes e realizou dez viagens a nove estados, onde realizou audiências públicas e colheu depoimentos. Os estados visitados foram: Pernambuco, Pará (duas vezes), Goiás, São Paulo, Rondônia, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso e Ceará.
Foram entrevistados diversos líderes de movimentos sociais e ruralistas. Entre eles, o coordenador nacional do MST, João Pedro Stédile; o presidente da UDR, Luiz Antônio Nabhan Garcia, e Manoel José dos Santos, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), além de acadêmicos e pesquisadores. Ao todo, foram ouvidas 125 pessoas: 25 agricultores e representantes de movimentos sociais de trabalhadores; 19 fazendeiros e representantes de movimentos de proprietários; sete pesquisadores e profissionais liberais; 50 agentes públicos e 24 representantes de organizações da sociedade civil, além de vários depoimentos colhidos em segredo de justiça.
Os projetos seguem agora para a Câmara e para o Senado, onde serão debatidos. Não será estranho se nenhum dos dois acabar aprovado.
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