Autor original: Maria Eduarda Mattar
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As áreas de fronteira, onde é grande a circulação de pessoas, costumam ser cenário de vulnerabilidade para crianças e adolescentes. Na Tríplice Fronteira, a situação é semelhante. Apesar de todo o esforço dos governos e da sociedade civil, muitas são as situações de violação de direitos de crianças e adolescentes na Argentina no Brasil e no Paraguai.
Em função disso, e estimulados pelos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio, pelo marco ético e legal da Convenção dos Direitos da Criança, os Escritórios do UNICEF da Argentina, Brasil e Paraguai, com o apoio da Itaipu Binacional, tomaram a decisão de realizar uma Análise da Situação das Crianças e Adolescentes na Tríplice Fronteira. O objetivo é conhecer melhor a realidade que elas vivem, a violação dos seus direitos e, a partir disso, estabelecer recomendações para superar as dificuldades encontradas.
De junho a outubro de 2005, pesquisadores dos três países analisaram a situação da criança e do adolescente em 62 municípios da Tríplice Fronteira (15 argentinos, 32 brasileiros e 15 paraguaios). As informações foram obtidas em bancos de dados nacionais, regionais e locais e durante a realização de oito seminários, nos três países, para os quais foram convidadas autoridades locais e regionais, dos três poderes, representantes de conselhos, igrejas e organizações não-governamentais.
Identificou-se que nos 62 municípios estudados, vivem 1,9 milhões de pessoas (entre elas mais de 13 mil indígenas), cerca de 880 mil com menos de 19 anos e 220 mil menores de cinco anos. Ou seja, quase 45% da população da Tríplice Fronteira é formada por crianças e adolescentes.
Os municípios argentinos selecionados são os que mais têm, proporcionalmente, população de crianças e adolescentes (50,2%), seguidos pelos municípios paraguaios (44,2%) e pelos brasileiros (39,8%). Em 30 destes municípios (48% do total), os indicadores de pobreza são maiores que a média estadual, apontando para uma realidade de milhares de crianças e adolescentes vivendo em situação de pobreza ou com Necessidades Básicas Insatisfeitas.
Em contrapartida, governos, sociedade civil e organismos internacionais se unem visando dar melhores condições de vida a esta população. Diversos programas estão sendo desenvolvidos nos três países; alguns deles, juntam esforços bi ou trinacionais para enfrentar problemas associados à falta de acesso a serviços sociais básicos de qualidade e a mecanismos de proteção integrais.
Entre os desafios a serem enfrentados para garantir os direitos das crianças e adolescentes à sobrevivência e ao desenvolvimento estão: mortalidade infantil, desnutrição, inadequado saneamento básico, falta de registros de nascimento e documentação.
Não existem dados atualizados nos municípios argentinos sobre a quantidade de crianças não registradas e sem documentos. No Brasil, a taxa de sub-registro de nascimento em 2002, era de 15,3%; já a do Paraná, 7,3%; e a do Mato Grosso do Sul, 12,9%. Apenas dois municípios paranaenses estudados têm um percentual de cobertura de registro menor de 75%, Santa Tereza do Oeste e Matelândia.
A experiência do Hospital Ministro Costa Cavalcanti, inédita na região, merece destaque por propiciar que as crianças nascidas no estabelecimento, localizado em Foz do Iguaçu, tenham seu primeiro direito resguardado. Desde dezembro de 2003, a instalação de um posto avançado de registro civil dentro do hospital, garante que os recém-nascidos sejam registrados antes da alta hospitalar.
Nas questões ligadas à saúde, a problemática do HIV/Aids requer particular atenção. Se é verdade que em nenhum dos três países existem altos índices de prevalência do HIV/Aids, em comparação a outras regiões do mundo, por outro lado, os índices observados se encontram em aumento, afetando principalmente as mulheres.
Desde maio de 2005, existe a proposta de uma política conjunta que, além dos três países, envolve também Bolívia, Chile e Uruguai, para combater o HIV/Aids nas regiões de fronteira. A idéia é que os seis países usem a mesma metodologia para vigilância epidemiológica do HIV, a prevenção, o tratamento e a assistência.
Além do HIV/Aids, as doenças prevalentes na infância (especialmente doenças do aparelho respiratório, infecciosas e parasitárias), em graus diversos de incidência, ainda preocupam nos três países, o que demonstra a necessidade de se ampliar os programas de promoção da saúde e de prevenção de doenças; e de se melhorar a qualidade dos serviços de atendimento de saúde e de assistência social, além de ampliar sua cobertura para as zonas rurais.
A maior parte dos departamentos argentinos e paraguaios selecionados têm uma taxa de mortalidade infantil superior à média nacional (14,4 por mil nascidos vivos na Argentina, em 2004; e 19,4 no Paraguai, em 2003), enquanto, na maior parte dos municípios brasileiros selecionados, esta taxa é inferior à média nacional (27,5 em 2003).
A mortalidade infantil abaixo da média nos municípios se deve principalmente à atuação da Pastoral da Criança, bastante forte na região. A isso, soma-se o esforço da Itaipu Binacional que, em parceria com o UNICEF, disponibilizou a 28 municípios do Oeste do paranaense o Kit Família Brasileira Fortalecida, e propiciou a capacitação de agentes comunitários de saúde e de líderes da Pastoral da Criança para a utilização do material.
Se os problemas pós-nascimento estão sendo minimizados devido às ações citadas acima, as questões relacionadas ao período perinatal merecem destaque. Nos três países é preciso melhorar a atenção ao pré-natal, parto e pós-parto. Além disso, a gravidez na adolescência é um problema a ser enfrentado, pelo risco que representa para a saúde da mãe e do bebê.
Outro ponto que preocupa é o fato de haver uma proporção considerável de crianças que vivem em domicílios sem saneamento e sem água potável, o que representa uma grave ameaça à sua saúde e bem-estar. A falta de estrutura causa as chamadas doenças prevalentes na infância (diarréias e infecção do aparelho digestivo e respiratório).
A desnutrição também preocupa. A falta de dados estatísticos atualizados nos municípios argentinos causa imprecisão nas informações referentes ao tema no país. No Brasil, entre os municípios estudados, apenas um tem taxa de desnutrição maior que a nacional. No Paraguai, os dados disponíveis, por departamento, apontam para taxas de desnutrição maiores que as nacionais e em ritmo de crescimento.
Para combater o problema da desnutrição, a melhor ferramenta é o aleitamento materno exclusivo até seis meses de idade e complementar até os dois anos. No entanto, há carência de informações sobre os benefícios do aleitamento na região estudada e é necessário que se trabalhe para reverter essa situação.
Para tal, o papel dos hospitais é importante. Dois municípios brasileiros pesquisados contam com hospitais que possuem o selo Hospital Amigo da Criança, concedido pelo Ministério da Saúde a instituições que cumpram os “Dez Passos para o Incentivo do Aleitamento Materno”. A iniciativa do selo é da Organização Mundial de Saúde (OMS) com o UNICEF. Em Foz do Iguaçu, o Hospital Ministro Costa Cavalcanti possui o selo, e em Cascavel, o Hospital Universitário do Oeste do Paraná.
O direito das crianças à educação vê-se mais criticamente afetado pelo desamparo escolar predominante nos adolescentes, pela repetência e pelo trabalho infantil. Preocupa a diminuição da freqüência à escola no grupo de 15 a 17 anos na área rural, especialmente nos departamentos Guaraní, San Pedro e General Manuel Belgrano, na Argentina. Estes mesmos departamentos têm taxas de repetência altas em relação à média nacional.
No Brasil, existem problemas de evasão escolar no ensino médio (mais de 15%) em 65% dos municípios selecionados e as taxas de reprovação da 1ª à 4ª série do ensino fundamental, maior que 10% em 18 municípios. No Paraguai, há uma preocupação da população dos municípios estudados com a baixa porcentagem de adolescentes com acesso à educação e com as altas taxas de analfabetismo. Os municípios dos três países demandam mais vagas em creches e na educação infantil, assim como cursos profissionalizantes para adolescentes.
O trabalho infantil é uma das causas devido às quais crianças e adolescentes deixam de freqüentar, ou de freqüentar regularmente, a escola. Também é um fator que provoca atrasos na aprendizagem e, portanto, contribui para aumentar os índices de repetência.
Na Província de Misiones, crianças e adolescentes trabalham principalmente em atividades agrícolas e agroflorestais, mas não existem estatísticas atualizadas. Nos municípios brasileiros selecionados, é precária a situação de crianças que trabalham nas ruas e em serviços domésticos.
No Paraguai, as crianças trabalham no campo e na cidade e preocupa a questão das “criaditas” domésticas. Brasil e Paraguai têm, na Ponte da Amizade, um grande desafio, dada a atração que exerce sobre crianças e adolescentes, cooptadas para todo tipo de trabalho.
Para ajudar a resolver tais problemas, os três países desenvolvem diferentes programas de transferência de renda. Na Argentina, vale destacar os programas: “Jefas e Jefes de Hogar Desempleados”, “Ingresso para el Desarrollo Humano” e o “Plan Nacional de Familias por la Inclusión Social”. No Brasil, há o “Bolsa Família”, o “Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI)” e o “Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano”. No Paraguai, há o “Programa Abrazos”.
Outro grave problema enfrentado na região estudada são os diversos tipos de abuso, exploração e violência. A existência de exploração sexual comercial associada a atividades de turismo e tráfico de drogas é reconhecida por diversos setores da população entrevistada durante o trabalho de campo. Não obstante, não existem dados estatísticos sobre o tema em nenhum dos países.
Nos municípios argentinos selecionados existe desde o recrutamento de jovens para prostíbulos mais ao Sul do país, até a combinação de trabalho na rua e atividades sexuais. Nos brasileiros, crianças e adolescentes são explorados sexualmente nas ruas, em hotéis e em prostíbulos.
A região é rota de tráfico internacional de seres humanos, o que significa que crianças e adolescentes estão vulneráveis ao recrutamento para exploração sexual comercial na Argentina, Brasil, Paraguai e Europa. A situação no Paraguai é similar à do Brasil, tanto nas situações de exploração sexual, quanto na vulnerabilidade a rotas de tráfico de seres humanos.
Várias iniciativas foram articuladas, especialmente após 2001, quando a Organização Internacional do Trabalho (OIT), se instalou na região, com o Programa de Prevenção e Eliminação da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes, na Tríplice Fronteira entre o Brasil, Argentina e o Paraguai. Além de investir recursos, a OIT formou parcerias com diferentes setores da sociedade – governos, organizações não-governamentais e empresas, com destaque para a Itaipu Binacional.
A violência contra a criança e o adolescente é preocupante nos municípios selecionados dos três países. Na Argentina, os dados não são sistematizados, mas levantamento feito no Juizado de Menores de Eldorado aponta para 850 registros de violências em 2004, sendo mais freqüentes os de abuso sexual, incesto, espancamento e abandono.
Apenas o Brasil conta com um sistema nacional de notificações (SIPIA), que de janeiro de 1999 a outubro de 2005 registrou 20.504 denúncias de violências contra crianças e adolescentes, em 24 dos 32 municípios brasileiros selecionados. Cerca de 44% das denúncias se referem à violação do direito à convivência familiar e comunitária. A violência física, psicológica e sexual é a segunda mais registrada, com 25% dos casos.
Em relação ao Paraguai, existem dados do Ministério Público referentes a Ciudad del Este, que indicam que de 2002 a 2004 foram denunciados 140 casos de abuso sexual, 49 casos de tentativa de abuso sexual, 186 casos de maus-tratos, 44 de estupro e 33 de cafetinagem.
Finalmente, a situação resumida até o momento apresenta desafios para as políticas públicas, não apenas no âmbito de cada país, mas também no conjunto destes. Estes desafios serão melhor abordados com a ação das autoridades dos diversos níveis de governo, mas também com a iniciativa das diversas representações da sociedade civil organizada e de empresas privadas. A participação das próprias crianças e adolescentes neste processo será fundamental.
A seguir, algumas recomendações que poderiam contribuir para responder aos desafios mencionados. Recomendações mais específicas se apontam no capítulo 7. Entre as recomendações mais gerais, para os três países, vale a pena ressaltar a necessidade da região de:
• Possuir uma rede ampliada de atendimento materno-infantil, que ofereça às mães e às crianças serviços de qualidade no pré-natal, no parto e pós-parto e nos cuidados com o recém-nascido e na atenção às doenças prevalentes na infância;
• Estabelecer uma oferta regular do registro civil em hospitais e maternidades e realização de campanhas que divulguem a gratuidade do serviço e a importância do registro civil para os direitos de cidadania da criança;
• Implantar em hospitais e maternidades procedimentos, atividades e iniciativas, tais como o Hospital Amigo da Criança, que estimulem o aleitamento materno, dando continuidade deste trabalho em postos de atenção básica, divulgando a importância do aleitamento materno exclusivo até os seis meses de idade para a saúde da criança e continuado até os dois anos de idade;
• Oferecer dentro das rotinas do pré-natal o aconselhamento e testagem do vírus HIV, assim como do tratamento adequado, quando necessário. Isso é urgente dada a crescente feminização da epidemia. Da mesma forma há necessidade de atenção em relação à sífilis nessas gestantes;
• Ampliar os serviços de saneamento básico, com definições de atribuições municipais, estaduais-departamentais-provinciais e garantia de execução orçamentária;
• Uma das etapas mais críticas para o desenvolvimento pleno das capacitadades das crianças e adolescentes se dá nos primeiros anos de vida. O fortalecimento das famílias em sua capacidade de cuidado, alimentação e proteção, no contexto de programas de desenvolvimento infantil integral, merece toda a atenção e apoio;
• É preciso, igualmente, que os três países invistam numa educação de qualidade, que incorpore crianças de 0-5 anos e crianças das zonas rurais, e que mantenha as crianças nas escolas, diminuindo os indicadores de evasão e repetência, particularmente de adolescentes;
• É preciso ampliar experiências como a do Grupo de Operadores de Direito da Tríplice Fronteira, criado a partir da atuação regional da Organização Internacional do Trabalho no combate à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, para sua atuação também no enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes e do tráfico de seres humanos.
Tendo como base estas recomendações, o UNICEF entende ser necessário a construção de uma agenda de trabalho conjunto dos três países, com metas, ações e mecanismos de monitoramento para responder aos problemas identificados no estudo, de maneira global e integral.
Promover os direitos da criança e do adolescente nesta região é uma oportunidade para fortalecer a cooperação e integração com ações concretas no âmbito do Mercosul.
Crianças vulneráveis numa região insegura precisam de redes de proteção construídas em conjunto por governos e sociedade civil, com o apoio de organismos internacionais quando se considere necessário e pertinente. Somente uma grande mobilização desses setores poderá transformar a realidade e garantir a proteção de todas as crianças e todos os adolescentes da Tríplice Fronteira.
Este trabalho inicial de diagnóstico pretende ser uma contribuição a mais para esta tarefa urgente e necessária.
Este é o resumo executivo do relatório Situação das Crianças e dos Adolescentes na Tríplice Fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai: Desafios e Recomendações, realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), com apoio de Itaipu Binacional. O estudo analisou 62 municípios da região, sendo 15 argentinos, 32 brasileiros e 15 paraguaios. A íntegra do documento pode ser obtida na área de Downloads desta página.
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