Autor original: Fausto Rêgo
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“Seria fundamental que a reforma assumisse como um dos seus princípios fundamentais o de atingir coerência institucional e programática para o sistema das Nações Unidas. Porque a verdade é que, na atualidade, assistimos a atuações contraditórias entre as diferentes agências das Nações Unidas em casos concretos, designadamente em processos de construção de paz.
A declaração é do pesquisador português José Manuel Pureza, que esteve no Brasil recentemente para participar de uma série de conferências sobre a reforma da Organização das Nações Unidas (ONU) e a governança global. Doutor em sociologia, pesquisador do Núcleo de Estudos para a Paz da Universidade de Coimbra e consultor da Unesco (órgão das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), Pureza é especialista nos temas de relações internacionais e direito internacional, além de pesquisador das áreas de globalização e meio ambiente.
Em entrevista exclusiva concedida por correio eletrônico à Rets, ele fala da eficácia da proposta apresentada pelo ex-presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso sobre a relação das Nações Unidas com as organizações da sociedade civil. Também aborda temas como a viabilidade financeira da reforma, o novo cenário político internacional e a reforma temática da entidade. “A inimizade que os Estados mais poderosos exprimem relativamente à ONU diz bem do papel essencial que a organização desempenha”, afirma. “É mais do que tempo de deixar de considerar os assuntos das sociedades civis como low politics, reservando a high politic para os Estados. Se mantivermos o atual figurino institucional, pensado a partir do velho mundo dos Estados soberanos, deixar-se-á fora da organização o pólo mais dinâmico de debate e de formação de consciência do mundo. Isso seria um erro estratégico muito grave”.
Rets - A maioria das unidades que compõem a ONU e suas agências está sediada em países desenvolvidos. O senhor acha que isso induz à prevalência dos interesses desses países?
José Manuel Pureza - Não creio que seja a localizaçao das sedes o fator predominante. A questao central é a da agenda dessas instituições. As Nações Unidas, depois de uma prolongada fase em que exprimiram uma clara hegemonia dos países desenvolvidos no sistema internacional, assumiram-se como uma instituiçao da comunidade internacional no seu todo e deram voz às aspiraçoes dos países em desenvolvimento. Creio que, em diversos planos, há uma clara estratégia de domesticação da ONU, no sentido de fazer dela um instrumento de reforço do domínio dos países mais poderosos sobre todo o sistema internacional.
Rets - O senhor acha que o Brasil é um país sub-representado na ONU?
José Manuel Pureza - O Brasil é um país que, pela sua dimensão, mas sobretudo pelo seu potencial de crescimento e pela sua marcada importância regional, deve ter um papel de relevo nos órgãos principais das Naçoes Unidas. Seria um erro reduzir esta questão ao Conselho de Segurança. Em outros órgãos, como a Peacebuilding Commission [Comissão para Construção da Paz], a criar, o Brasil deve ter um relevo equivalente à sua importancia no terreno das relações internacionais.
Rets - Os esforços pacifistas da organização muitas vezes contrariaram interesses de países poderosos, mas são amplamente apoiados pela comunidade internacional, como aconteceu na guerra do Iraque. Os governos, em sua maioria, não apoiaram os EUA. O senhor acha que a guerra ajudou a emergir um novo ator no cenário internacional: a sociedade civil global?
José Manuel Pureza - Estou absolutamente convicto de que sim. A grande dinâmica do movimento pacifista deu origem ao funcionamento em rede de uma série de ONGs e de movimentos de opinião, com evidente capacidade de condicionamento das vontades dos governos. Este vastíssimo movimento mundial contra a guerra não foi, aliás, um movimento isolado, porque noutros domínios (designadamente a proteção do ambiente ou dos direitos humanos) há muito que a “multidão” (para usar a expressao de Antonio Negri) constitui um elemento destacado do debate e das decisões internacionais que contam.
Rets - Até que ponto o aspecto financeiro, ou seja, as cotas, influencia na reforma do Conselho de Segurança?
José Manuel Pureza - Não é, à primeira vista, um aspecto essencial da reforma. Na verdade, os diversos planos de reforma têm sublinhado fundamentalmente a necessidade de dar acolhimento, no Conselho de Segurança, à nova realidade geopolítica mundial e regional. Desse modo, o critério fundamental que está em causa é a projeção geopolítica de alguns Estados, sobretudo no plano regional, dando razao àqueles que vêm sublinhando a crescente tendência para a regionalizaçao da manutençao da paz e da segurança ou das tarefas de reconstruçao pós-conflito. Isto dito, é evidente que de há muito tempo a esta parte se vêm manifestando opiniões no sentido de aproximar a ONU do modelo de funcionamento das sociedades anônimas, isto é, de acordo com um sistema de voto ponderado em que cada Estado assume um peso na tomada de decisão proporcional ao capital social com que contribui para o coletivo, como sucede no Fundo Monetário Internacional ou no Banco Mundial. Não creio, no entanto, que este modelo venha a ser adotado, no futuro mais próximo, no que se refere aos órgãos principais da ONU
Rets - O senhor acha que a reforma do Conselho de Segurança é viável, ou seja, a curto prazo novos países poderão ser admitidos como membros permanentes e com poder de veto?
José Manuel Pureza - A atual composição do Conselho de Segurança é insustentável, no que diz respeito a assumir responsabilidades – quer em operações de manutenção da paz, quer em missões de reconstrução de países devastados por guerras internas – por países com clara capacidade de ordenamento regional das relações internacionais. No entanto, a persistência de velhos vícios soberanistas está a dificultar a formação de consensos acerca da identificação concreta desses países. Não deixa de ser significativo que o relatório do secretário-geral “In larger freedom”, ao apontar dois cenários possíveis para a reforma do Conselho, mantenha “em branco” a identidade dos países do alargamento. Creio, por isso, que levará algum tempo até que se formem esses necessários consensos.
Rets - O senhor acha que é necessária também uma reforma temática? A sociedade civil trabalha com temas relacionados a tortura, tráfico de crianças e mulheres e migração, entre outros. A ONU acompanha essas demandas?
José Manuel Pureza - Todos os temas que a pergunta menciona têm sido objeto de trabalho pelas Nações Unidas. Mas de uma forma periférica, quer em termos de agenda, quer em termos orgânicos. A ONU foi criada em 1945, com um objetivo principal: a manutençao da paz e da segurança internacionais. E, apesar de a Carta perfilhar um entendimento amplo dessa função, o certo é que tem sido na periferia do sistema das Nações Unidas que questões essenciais, como a proteção internacional dos direitos humanos, têm tido lugar. Nesse sentido, a criação de um Conselho dos Direitos Humanos como órgão principal das Nações Unidas e em substituição à desacreditada Comissão de Direitos Humanos seria um sinal renovador de grande alcance. Todavia os debates até agora ocorridos fazem crer que, também aqui, a inovação será muito escassa e corremos o risco de vir a ter apenas uma mudança superficial, com a Comissão de Direitos Humanos a passar da tutela do Conselho Econômico e Social para o âmbito da Assembléia Geral. Isso corresponderia a uma subalternizaçao temática destas questões essenciais.
Rets - É possível fazer com que metas e planos de ação de todas as conferências da ONU sejam respeitados pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Mundial e pela Organização Mundial do Comércio? O senhor acha que a reforma deveria levar esse aspecto em consideração?
José Manuel Pureza - Seria fundamental que a reforma assumisse como um dos seus princípios fundamentais o de atingir coerência institucional e programática para o sistema das Nações Unidas. Porque a verdade é que, na atualidade, assistimos a atuações contraditórias entre as diferentes agências das Naçoes Unidas em casos concretos, designadamente em processos de construção de paz. Não é raro vermos o Programa Alimentar Mundial ou o PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento] a tentarem pôr em prática políticas de prevenção estrutural e de capacitação das estruturas locais, ao mesmo tempo que o FMI impõe políticas de ajustamento econômico-financeiro que inviabilizam essas metas. Ora, a verdade é que a atual reforma não parece ir no sentido desejável. Por diversas vezes, os Estados – e sobretudo os Estados mais importantes – evidenciaram uma grande reserva relativamente quer à fixação de metas programáticas calendarizadas e quantificadas (os Objetivos do Milênio, por exemplo), quer a um rearranjo institucional que dotasse a organização de maior capacidade operativa em questões sociais.
Rets - África, Ásia e América do Sul não estão representadas no Conselho de Segurança. O senhor acha que isso abala a legitimidade da instituição?
José Manuel Pureza - Claro que sim! A ONU do século XXI nao pode ser a reprodução da ONU de 1945, o pequeno clube dos Estados vencedores da II Guerra Mundial. Tudo mudou, incluindo a agenda internacional, e isso impõe um claro reforço da legitimidade da organização. A presença dos paises africanos, latino-americanos e asiáticos no Conselho de Segurança é uma condição de credibilidade da organização.
Rets - A Assembléia Geral deveria envolver mais regularmente as organizações da sociedade civil nos seus assuntos, o diálogo da sociedade civil com o Conselho de Segurança deveria ser alargado e deveria ser criado um fundo especial para ajudar as organizações da sociedade civil nos países em desenvolvimento. Essas são algumas das orientações feitas pelo Grupo de Personalidades Eminentes sobre as Relações ONU-Sociedade Civil, presidido pelo ex-presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso. Qual é a sua análise dessas propostas?
José Manuel Pureza - Trata-se de propostas de mínimo bom senso. Penso até que se deveria caminhar num sentido mais radical, com a criação de uma segunda câmara, a par da Assembléia Geral, uma Assembléia dos Povos. Isso seria, afinal, o reconhecimento de que, a par dos Estados, as sociedades civis têm hoje um papel de enorme destaque na condução das relações internacionais. É mais do que tempo de deixar de considerar os assuntos das sociedades civis como low politics, reservando a high politic para os Estados. Se mantivermos o atual figurino institucional, pensado a partir do velho mundo dos Estados soberanos, deixar-se-á fora da organização o pólo mais dinâmico de debate e de formação de consciência do mundo. Isso seria um erro estratégico muito grave.
Rets - O senhor tem medo de um mundo sem a ONU?
José Manuel Pureza - A inimizade que os Estados mais poderosos exprimem relativamente à ONU diz bem do papel essencial que a organização desempenha. Diante de um mundo em que a assimetria de poder assumiu proporções inéditas, a existência de um mecanismo regulador constitui um fim em si mesmo. Eu acredito que a anarquia internacional nao é um dado, uma fatalidade, mas uma construção alimentada pelos Estados mais poderosos. Nesse sentido, os esforços por limitar essa tendência anárquica e por criar mecanismos próprios de uma sociedade internacional são expressões civilizatórias de primeira grandeza. Eu situo-me desse lado da história.
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