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Doença crônica

Autor original: Luísa Gockel

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Doença crônica


Mesmo com alguns avanços na área de saúde em 2005, alguns eventos, como a intervenção federal em hospitais municipais do Rio de Janeiro, mostram que ainda há muito a ser feito. Em meio à polêmica em relação ao orçamento que será destinado ao setor em 2006, causada pelo desvio de parte da verba para o financiamento de programas sociais, representantes da sociedade civil fazem balanço do que avançou na área no ano passado e se mostram cautelosos em relação ao último ano do governo Lula.

Enquanto alguns parlamentares reclamam da retirada de até R$ 5 milhões do orçamento da saúde para este ano - que serão desviados para programas sociais, como o Bolsa Família - o governo argumenta que medidas como o acesso à alimentação ajudam a diminuir o volume de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). Ainda assim, deputados da Frente Parlamentar de Saúde argumentam que a área mais afetada com os cortes seria justamente o financiamento da atenção primária à saúde e o atendimento ambulatorial.

Para a coordenadora do Centro de Promoção da Saúde (Cedaps) Kátia Edmundo, há uma apropriação de um tipo de discurso em favor de interesses de um grupo. “Nós dizemos que a saúde engloba um conjunto de variantes, mas isso não significa que podem tirar verba da saúde e destinar para outras áreas”, defende.

O projeto de lei do deputado Roberto Gouveia (PT-SP) que regulamenta a Emenda Constitucional 29 também trata da discussão sobre financiamento. Segundo ele, para derrubar os argumentos de que muito dinheiro é destinado para a área – que tem o segundo maior orçamento – basta fazer uma conta simples. “Se pegarmos os gastos da União com a saúde pública e mais os investimentos de estados e municípios, concluiremos que o gasto total do Brasil com saúde é de R$ 1 por pessoa, por dia”, diz, ressaltando que esse custo inclui todos os procedimentos possíveis, desde consultas, partos e exames até cirurgias.

Além de determinar um percentual mínimo de investimentos, o projeto também tipifica o que é considerado gasto com saúde. “É incrível, mas alguns governadores asfaltam estradas em frente a hospitais com recursos do SUS, alegando que estão favorecendo a acessibilidade à saúde”, critica, dizendo que não faz sentido usar dinheiro da saúde para financiar o Bolsa Família.

Apesar de admitir que alguns marcos foram importantes em 2005, como a realização do I Seminário Brasileiro de Efetividade da Promoção da Saúde, no Rio de Janeiro, a coordenadora do Cedaps acredita que as velhas questões continuam existindo. E cita o exemplo do aumento no número de casos de tuberculose.

Kátia Edmundo prefere apostar no fortalecimento dos movimentos sociais do que criar expectativas em relação à administração da saúde na reta final do governo Lula. “Precisamos desenvolver mecanismos para atuar antes que as coisas cheguem ao caos. A sociedade civil vem realizando esforços para melhorar as condições de saúde da população e acredito nesse movimento”, diz.

Combate à Aids

Uma das maiores estrelas da área de saúde do governo, o Programa Nacional de Combate a DSTs e Aids teve um bom desempenho no ano, mas o que veio mesmo à tona foi a velha briga pela diminuição dos custos dos medicamentos antiretrovirais. A bola da vez foi o Kaletra, remédio responsável por 30% do orçamento do programa no ano passado, que foi de R$ 807,057 milhões. Ou seja, gastou-se com o medicamento cerca de R$ 260 milhões.

Os gastos levaram o Ministério da Saúde a ameaçar por diversas vezes o laboratório responsável pela patente do remédio de licenciar compulsoriamente a fabricação se não houvesse diminuição no preço final. O ex-ministro Humberto Costa chegou a declarar o Kaletra um medicamento de interesse público, o primeiro passo para a quebra da patente. Porém, ele não levou a ameaça adiante e após sua saída a estratégia do ministério permaneceu a mesma - ameaçar para conseguir diminuição de preços.

Ativistas pedem ao governo para quebrar a patente e estimular a produção nacional de genéricos, mas o ministério afirma que não há condições técnicas de se produzir tais remédios por aqui. E ainda há o acordo sobre propriedade intelectual da Organização Mundial do Comércio, o Trips, que desautoriza países pobres a produzir genéricos a não ser em situações de emergência. Após muita negociação com o laboratório, o preço de cada unidade do medicamento caiu de US$ 1,17 para US$ 0,63.

“As ameaças servem como instrumento de pressão, mas são uma falácia, nunca há quebra de patente”, critica Renata Reis, advogada especialista em propriedade intelectual da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia). A organização entrou com uma ação civil pública com o Ministério Público no fim do ano passado para obter a licença, mas ainda não obteve resposta.

Para Reis, o maior desafio de 2006 será a manutenção do sucesso do programa de acesso universal a medicamentos de combate à aids. A partir deste ano, a Índia, principal fornecedora de matéria-prima para esse tipo de remédio, fará parte do Trips. Logo, não poderá exportar mais a fonte de seus genéricos. Por isso, e devido à decisão do ministério em não quebrar patentes, a advogada diz que “o futuro parece ser tenebroso".

Células-tronco

Um dos temas mais polêmicos do ano passado foi a possibilidade de manipulação de células-tronco, aquelas que têm a capacidade de se transformar em qualquer outra célula do corpo humano. A Lei de Biossegurança, que normatiza esse tipo de pesquisa, foi aprovada em março de 2005 após muitas discussões. Enquanto religiosos e alguns estudiosos afirmavam que a manipulação de células deveria ser proibida por ser perigosa, cientistas afirmavam que sua utilização representaria a possibilidade de melhorar o tratamento ou até mesmo a cura de algumas doenças como o câncer e o mal de Parkinson.

Para o pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Sílvio Duailib, a aprovação da lei foi positiva, mas o texto poderia ter sido melhor. “A Lei de Biossegurança normatizou procedimentos que antes não tinham nenhum controle. Porém, alguns de seus pontos são confusos e precisam ser repensados para ficar bem claro o que pode ou não pode”, afirma.

Duailib foi um dos beneficiados pelas bolsas de estudo em células-tronco anunciadas pelo governo federal que totalizaram R$ 11 milhões, oriundos do Ministério da Saúde e da Ciência e Tecnologia. Segundo ele, os recursos foram recebidos e muito bem-vindos, mas ainda são pequenos se comparados com o resto do mundo. “Essa é uma viagem sem volta, são pesquisas necessárias, mas ainda não se investe o suficiente para podermos acompanhar os estudos que estão sendo feitos lá fora”. Cingapura, por exemplo, gastou US$ 1 bilhão em 2004 com empresas e estudos de biotecnologia. “É uma área que pode dar independência financeira e tecnológica por causa das patentes. Por isso deveria ser vista como prioridade, pois a médio prazo diminuirão gastos com saúde”, analisa. O pesquisador lembra, entretanto, que em ciência “não é possível prever com exatidão quando virão os resultados”. A ressalva se deve à grande expectativa criada em torno do sucesso das pesquisas com células-tronco não só no país como no exterior.

Na opinião de Duailib, os investimentos deveriam ser feitos tanto em grupos de pesquisa já estabelecidos, como os existentes nas universidades federais da Bahia, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo, além da Universidade de São Paulo (estadual), quanto em instituições menores com pesquisadores emergentes. A vantagem seria uma maior competição ao mesmo tempo em que há colaboração entre os estudos. Das bolsas destinadas pelo governo em agosto, 30% foram para as regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste.

Entre os resultados esperados das pesquisas estão avanços no conhecimento dos princípios fundamentais da terapia celular, no uso das células para o tratamento de doenças, melhoria no conhecimento dos sistemas biológicos e, ainda, prevenção, detecção e tratamento de doenças.

Saúde da mulher

O ano de 2005 representou um marco no campo da saúde da mulher. Mesmo sem ser votado na Câmara, o projeto de lei que propõe a descriminalização do aborto no país animou o movimento de defesa dos direitos das mulheres e causou muita polêmica. Diante do risco de ver a proposta derrubada, a frente parlamentar favorável à liberação da prática conseguiu adiar a discussão para este ano. Mas a secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde, Fátima Oliveira, que também é médica, não acredita que o Legislativo vá mexer em um assunto desses em ano eleitoral. “O Congresso Nacional é conservador. Parte expressiva dos parlamentares assumiu, em suas cidades de origem, compromissos com igrejas de feição machista e misógina, de extração católica ou evangélica. Isso tem inviabilizado uma postura de maior independência nas votações de temáticas pertinentes ao chamado campo das moralidades, inclusive de parlamentares que pessoalmente apóiam o direito de decidir das mulheres”, avalia.

Mesmo diante da postura conservadora dos parlamentares, Fátima acredita que o movimento feminista vem conseguindo pautar de forma importante na sociedade o tema da liberalização do aborto. “Continuaremos a tratar da questão com vigor, inclusive durante o período eleitoral, pois trata-se de um tema relevante para ficar fora do debate público”, garante.

De maneira geral, 2005 foi um ano positivo em relação aos direitos da mulher, segundo Fátima. “A Rede Feminista de Saúde avalia que no governo Lula avançamos muito em relação à elaboração de diretrizes nacionais - o que é obrigação do Ministério da Saúde - para a saúde da mulher, direitos sexuais e direitos reprodutivos”, afirma, citando como exemplo a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, da qual destaca duas iniciativas: o Pacto Nacional de Combate à Morte Materna e Neonatal e a Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos.

Luísa Gockel e Marcelo Medeiros

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