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Em busca do paraíso perdido

Autor original: Luísa Gockel

Seção original: Artigos de opinião

Nurit Bensusan*







Em busca do paraíso perdido


Na quinta-feira passada, 12 de janeiro, o jornalista Marcos Sá Corrêa, um dos diretores do site O Eco, publicou no jornal O Estado de S.Paulo um artigo com críticas ao Plano Nacional de Áreas Protegidas. Em fase de elaboração, o plano, que estabelece objetivos e metas para a consolidação de um sistema ampliado de áreas protegidas do país, está aberto à consulta pública até 30 de janeiro em www.mma.gov.br/forum.

Chama atenção no texto de Marcos Sá Corrêa, entre outros, o seguinte trecho: “Como está, ele (o plano) tende a consagrar a prioridade das reservas indígenas, dos territórios quilombolas e das comunidades extrativistas na conservação da natureza”.

A frase não é neutra. Relacionado a outros argumentos do texto, o fragmento explicita a posição, notória, defendida pelo jornalista em relação às medidas a serem privilegiadas quando se trata de proteger a biodiversidade brasileira: a criação de unidades de conservação de proteção integral - espaços onde não há uso direto dos recursos naturais, nem tampouco é permitida a presença humana. Entre essas unidades, estão os parques nacionais, onde pelo menos a visitação e a pesquisa científica são permitidas.

A conservação da biodiversidade é uma tarefa complexa, principalmente por causa de sua forte relação com o uso dos recursos naturais e da terra. Não são poucos os interesses que orbitam ao redor desses recursos e, principalmente, das possíveis destinações dadas à terra. Conciliar tais interesses é difícil, e o estabelecimento de unidades de conservação de proteção integral tornou-se um dos instrumentos mais freqüentemente adotados.

Parece uma boa solução. Apartar áreas da sanha destruidora da espécie humana, algo como o paraíso perdido. Porém, algumas nuvens negras pairam sobre tal paraíso. A primeira dessas carregadas nuvens é a constatação – já feita de maneira exaustiva por biólogos e outros pesquisadores – de que os processos ecológicos e evolucionários ocorrem numa escala que transcende os limites das unidades de conservação. Ou seja, não adianta somente apartar essas áreas, pois o acontece fora de seus limites influencia e condiciona o que acontece dentro. O resultado dessa constatação é que o esforço de conservação nessas áreas pode ser perdido se outras medidas de manutenção da biodiversidade não forem adotadas no resto do território.

Outras nuvens ameaçadoras estão relacionadas à idéia de que o estabelecimento dessas unidades de conservação, além de apartá-las espacialmente, também as aparta dos processos políticos e de outros processos que movem o mundo. Como se fosse possível, efetivamente, resgatar o paraíso: um lugar onde não houvesse interesses múltiplos pela posse da terra; onde o avanço das grandes corporações – tanto pelo lado do agronegócio, quanto pelo lado da total mercantilização da biodiversidade – não existisse; onde toda a população bem alimentada e feliz visitaria e se orgulharia de seus parques-paraíso.

O parágrafo final do artigo de Sá Correa é dedicado a descrever a situação dos tão sofridos parques nacionais brasileiros. A situação crítica desses parques mostra a crônica incapacidade do Estado brasileiro em preservar a integridade dessas áreas, mas revela também quão pouco adequado esse modelo é à nossa realidade. Uma realidade de pouca ou nenhuma importância atribuída à nossa vastíssima biodiversidade. Uma realidade de ausência do Estado nas questões mais básicas em grandes porções do território nacional. Uma realidade de privilégio a interesses privados em detrimento àqueles de toda a sociedade.

A angústia revelada pelo jornalista e compartilhada por todos se preocupam com o futuro da biodiversidade brasileira não será aliviada pela receita por ele sugerida: a execução de medidas já concebidas para garantir a integridade das unidades de conservação. Será, sim, mitigada. Diante da realidade nacional, a preservação total dessa integridade soa como a busca do paraíso perdido. Sem perder de vista, além disso, que não é possível a manutenção da integridade biológica de um fragmento de área natural mergulhado em um mar de ambientes devastados. Tradução: é preciso, sim, melhorar a situação dos parques e de outras unidades, mas só isso não basta.

Não há mais possibilidades de pensar nas unidades de conservação de forma separada do resto do mundo, sob pena de ficarmos na chuva, ou melhor – diante das mudanças climáticas, que também influenciarão essas áreas – de sermos vítimas de um furação gigante, depois do qual apenas nos restará lamentar o fracasso de nossas estratégias de proteção da biodiversidade. Urge conectá-las ao restante do planeta e criar respostas rápidas aos efeitos colaterais da globalização. Não apenas com outras áreas, mas com outras políticas, com outras estratégias e com outras idéias.

O Plano Nacional de Áreas Protegidas é um primeiro passo na direção dessa conexão. Quando completo, tratará de diversos espaços especialmente protegidos - as unidades de conservação, as terras indígenas e as terras de quilombo. Colocar todas essas áreas numa mesma matriz de planejamento da paisagem é o mínimo necessário para o êxito da conservação da biodiversidade.

Contar com o apoio de comunidades que podem usar racionalmente seus recursos naturais, evitando a interrupção dos processos ecológicos e evolucionários faz parte do receituário básico para a conservação da biodiversidade. Se há aqueles que nem isso reconhecem e que ainda acreditam que a conservação da biodiversidade se fará apenas por meio de parques-paraíso, temos, pela frente, lamentavelmente, ainda um longo caminho a percorrer e muita biodiversidade a perder.

*Nurit Bensusan é mestre em Ecologia, integrante do Grupo de Trabalho Sociobiodiversidade do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento.


Este texto foi escrito em resposta ao artigo do jornalista Marcos Sá Correa "A reforma da natureza", publicado originalmente no dia 12 de janeiro de 2006, no jornal O Estado de São Paulo. Veja aqui o artigo do jornalista.






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