Autor original: Marcelo Medeiros
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A Bolívia, um dos países mais pobres da América Latina, está passando por um momento histórico. As eleições realizadas em 18 de dezembro levaram o líder cocaleiro (cocaleiros são os cultivadores de folhas de coca) Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS), à condição de novo presidente do país. Pela primeira vez um indígena ocupará o cargo mais alto do Executivo boliviano. Morales assume o posto no dia 22 e promete fazer com que o país, principalmente a maioria indígena, passe a lucrar com a principal riqueza de seu território – o gás natural.
Para o filósofo Hugo Fernández Aráoz, diretor executivo da União Nacional de Instituições para o Trabalho de Ação Social (Unitas), ONG local nascida em 1976 para combater a ditadura, esse é “um momento de grandes expectativas, uma mudança fundamental”. Diz isso por considerar que pela primeira vez os pobres bolivianos terão um presidente voltado para eles, por ser um deles. Isso, porém, não faz com que ele dê um voto em branco ao novo presidente.
Apesar de ter uma grande força popular, Morales, na análise de Aráoz, vai ter trabalho para evitar a corrupção e realizar suas promessas de campanha. Isso porque as estruturas do Estado boliviano, segundo ele, ainda são da época colonial, quando os índios não tinham direitos e eram inclusive vendidos como parte de uma propriedade. “O país precisa investir em seu capital humano para alcançar uma mudança de fato, que pode levar 20 anos para ser feita”, diz.
A estatização das reservas de gás, de acordo com o filósofo, não será obra do novo presidente, pois já há uma lei prevendo isso. O problema, diz, será fazer as empresas se adequarem ao novo sistema. E elogia a Petrobras por sempre ter sido “compreensiva” com os bolivianos
Nesta entrevista, Aráoz fala sobre o momento político de seu país, sem deixar de lado a questão do uso da folha de coca pelos bolivianos.
Rets - Há uma grande expectativa em relação à chegada de Evo Morales à presidência, mas ainda não estão claras as mudanças que ele poderá fazer. Qual é a sua expectativa?
Hugo Aráoz - Certamente é um momento de grandes expectativas, mas não diria que é algo inusitado. Há muitas organizações da sociedade civil atuando na Bolívia, a maioria das quais com camponeses indígenas. A presença desses grupos é um fator muito forte e seu fortalecimento institucional nos últimos anos tem sido muito grande. É uma mudança fundamental, causada por diversos fatores. Entre eles, o último censo, que reconheceu a presença majoritária do grupo indígena campesino, que se deu por meio de reconhecimento pessoal - 62% da população boliviana tem origem campesina e indígena.
Isso dá a Morales uma força muito grande, assim como às organizações. É o que pode dar transparência a essas eleições, que refletiram a vontade popular.
Rets - Morales terá condições de realizar as mudanças que prometeu durante a campanha?
Hugo Aráoz - Essa é a pergunta de sempre, se é capaz ou não. Faz tempo que digo que a Bolívia é comparável à África do Sul, e não é por acaso que uma das escalas da viagem de Morales [a alguns países antes da posse] tenha sido naquele país. Se os negros na África do Sul foram capazes [de realizar mudanças] então creio que os índios da Bolívia também são.
Em relação à capacidade técnica, os indígenas estão menos dotados, mas isso pode ser resolvido por meio de alianças com os setores urbanos e profissionais. Por outro lado, penso que o processo de mudança deva estar nas mãos dos indígenas, desde as reivindicações locais até uma visão de país novo, que é o que estamos esperando que aconteça.
Rets - No Brasil e no resto do mundo há muita desinformação sobre a folha de coca e sua importância para os andinos. O novo governo conseguirá resistir às pressões econômicas contrárias a seu cultivo e impulsionar o desenvolvimento econômico que a Bolívia tanto precisa?
Hugo Aráoz - É um tema difícil de compreender. Para nós é algo muito natural, pois todos temos acesso à coca desde pequenos, mesmo nas áreas urbanas. A folha de coca está presente em todos os aspectos da vida. No resto do mundo não há uma diferenciação tão clara quanto a que fazemos entre a folha de coca e a cocaína – tratam como se fosse a mesma coisa. Aqui não.
A Bolívia é muito atrasada em termos industriais e a folha de coca pertence ao setor não industrial. Já a cocaína pertence ao setor industrial, que a produz em grande quantidade. É muito difícil continuar com essa política de erradicação da folha de coca.
O presidente Morales já disse não ter nenhum problema com programas de erradicação do narcotráfico e da cocaína. Porém a folha de coca não tem nada com isso, nem os cocaleiros. Morales já foi presidente das seis federações de cocaleiros de Cochabamba [estado no centro da Bolívia cuja capital está a 380 km de La Paz], que não abrangem todos os produtores, pois a coca se produz no norte do país e também pelo camponês, como parte de sua produção familiar.
Para o resto do mundo, essa diferença é difícil de compreender, por isso pedimos apenas que entendam que cocaína é uma coisa e folha de coca, outra.
Rets - Morales já declarou que estatizará as reservas de gás. Isso pode acontecer?
Hugo Aráoz - Acredito que sim, pois isso já está previsto e regulamentado por uma lei aprovada pelo último governo, de Carlos Mesa (2003-2005). A mudança da lei dos hidrocarburetos já tinha sido feita. As empresas petrolíferas acreditavam que, dada a conjuntura, isso poderia ser revisto. Porém, com o mandato dado pelo povo boliviano ao MAS isso se torna irreversível, pois não depende da posição de um partido, mas da vontade do povo boliviano. As empresas precisarão se adequar à nova situação.
O problema é como isso se dará na prática e até que ponto elas entenderão como as mudanças como uma agressão. É verdade que será necessário modificar os contratos. A Petrobras, e aí se percebe a influência de Lula, sempre foi mais compreensível com a Bolívia, um país tão pobre, que já foi saqueado diversas vezes e nunca teve força em processos de negociação. A hora é de fazer com que as empresas tenham participação importante na produção do gás.
Esse é o ponto: até onde o país pode se beneficiar de uma riqueza tão importante.
Rets - A eleição de um indígena em um país onde os indígenas são maioria e também os mais pobres representa o que para a Bolívia?
Hugo Aráoz - Há uma mudança conceitual, mas não se sabe se o mais importante é a mudança conceitual ou simbólica. Há o regime colonial, que é muito antigo, mas o colonialismo ainda pode estar nas estruturas econômicas e também na cabeça das pessoas. O colonialismo privilegiava como classe o setor branco, enquanto no setor baixo da sociedade estavam os indígenas. Apesar da independência, em 1825, isso não mudou.
Já se quis mudar quando Bolívar [Simon Bolívar, líder da independência de vários países sul-americanos] redigiu a primeira Constituição. Ele quis incorporar elementos reconhecendo os indígenas como iguais, mas tanto o Estado colonial quanto o que se formou depois financiavam-se com os impostos pagos pelos indígenas. Por isso a Constituição de Bolívar vigorou por pouco tempo e se adequou ao que o Estado colonial sempre havia feito. O Estado boliviano era uma das principais fontes de renda da época colonial por causa da exploração das minas, que só podia ser feita por mão-de-obra indígena. Havia todo um sistema de recrutamento de mão-de-obra. E isso seguiu assim na cabeça das pessoas.
Então, a primeira mudança é essa – simbólica. Agora todos somos iguais perante a lei. E também é simbólica quando o presidente não tem preparação formal para isso, mas foi indicado pela maioria de camponeses e indígenas, que estão se reconhecendo nele.
Agora, fora dessa mudança simbólica e dessa nova atitude, é preciso pôr o país em dia – as mudanças, a integração com o mundo moderno etc. Isso já é algo maior e pressupõe programas massivos de desenvolvimento de capital social nesse setor indígena, que nunca foi muito considerado e do qual o país até mesmo se envergonhava. Isso também existe em outros países. O Brasil é um caso especial, pois a Funai vigorou por muito tempo [a fundação ainda está ativa] e protegeu essas populações, muito marginalizadas dentro da sociedade brasileira.
Mas, em geral, os países da América Latina tenderam a ocultar seus indígenas. O Chile, que é um dos países mais avançados da região, tem uma grande dificuldade de reconhecer uma boa parte de sua população. Ela não é tão grande quanto na Bolívia, mas é marginal e pode alcançar 10% do total de habitantes. São mapuches que querem se identificar como mapuches. Os argentinos aprenderam a dizer que não há indígenas por lá. Ou seja, há uma vergonha dos indígenas na América Latina desde o século XIX. Só no final do século XX surge uma consciência de que o indígena é um valor.
Ou seja, o país precisa investir em seu capital humano para alcançar uma mudança de fato, que pode levar 20 anos para ser feita.
Rets - Evo Morales agora é “dono” da maior reserva de gás da América Latina e já se aproxima de Chávez, “dono” da maior reserva de petróleo. O que pode sair dessas conversas?
Hugo Aráoz - É preciso ser realista nesta questão. Não se pode ser ingênuo de pensar que cada país não cuidará de seus interesses. Está sendo criado um clima para uma integração mais produtiva e mais firme da América Latina. A Europa brigou anos por causa do carvão e do aço até encontrar uma solução e pôr fim às brigas. Na América Latina também houve muitas resistências a reconhecer a complementaridade, mas aí tem que entrar um elemento material, que pode ser a energia.
Nesse ponto de vista, um país mais ao sul, como a Bolívia, e outro mais ao norte, a Venezuela, têm uma probabilidade natural de unir seus interesses.
Rets - Morales é um líder de grande apelo popular, mas qual será a participação da sociedade civil em seu governo? As organizações indígenas terão voz?
Hugo Aráoz - Não é fácil responder isso. Esperamos que sim, mas ainda não está bem claro como o governo vai se articular. De todo modo, dado um Estado como existe na Bolívia e dado que houve uma revolução por meio dos votos, mas não uma revolução onde se pode mudar tudo, há muitas coisas “amarradas” ao tipo de Estado existente.
Não é fácil articular a participação das organizações sociais. Mas há uma empatia entre o presidente e os dirigentes que estão entrando agora nas organizações. Para efeito de comparação: um dos fatores de sustentação da ditadura foi que o movimento campesino indígena estava bastante ligado aos militares. A isso se chamou “pacto militar-campesino”. Nos anos 70, durante a ditadura de [Hugo] Banzer, de 1971 a 1978, rompeu-se o pacto e surgiu uma organização campesina livre que contribuiu para a aniquilação da ditadura.
Esse movimento foi crescendo, desenvolvendo-se e criando sua própria visão de país. O desafio de Morales agora é transformar o Estado para que não se desvincule dessa base social. Ou seja, um dos problemas da fase do Estado neoliberal, que vai de 1985 a 2005, foi a dissociação entre Estado e sociedade, cujo auge foi a atitude de Sanchez de Lozada [que governou o país de 2002 a 2003] de querer impor medidas sem respaldo popular. Foi quando a população se rebelou. Felizmente esse sentimento foi canalizado pela via eleitoral na votação de 18 de dezembro.
O desafio está na reforma do Estado, que ainda beneficia a oligarquia, que se beneficia das riquezas naturais, e em depois fazer um Estado mais eficiente nos serviços que presta ao povo.
Rets - Com a eleição de Morales, a relação da Bolívia com os EUA pode mudar?
Hugo Aráoz - A Bolívia recebe cooperação de muitas partes, entre elas dos EUA. Por outro lado, não é um país “caro”. Os EUA devem nos enviar cerca de US$ 150 milhões por ano e isso comparado ao que dá à Colômbia ou a Israel é “amendoim”. A Bolívia é barata para os EUA, até porque os governos têm sido muito servis, principalmente por causa da pobreza e da dependência.
O país não pode prescindir da ajuda, mas agora tem mais capacidade de dizer quem lhe ajuda e sobretudo de prever o momento em que poderá abrir mão dessa ajuda. Os países precisam ser ajudados, mas se forem sempre ajudados nunca terão seu próprio desenvolvimento.
Há dez anos essa mesma cooperação se referia à Bolívia como inviável por não ser sustentável. Ou seja, recebia muita ajuda estrangeira, mas não tinha nenhuma perspectiva de ter uma riqueza própria, pois ainda não estava claro o tamanho das reservas de gás. Agora já é possível ter um horizonte sustentável e por isso a cooperação deve orientá-la mais no sentido não mais de sobrevivência, mas de desenvolvimento de certos setores que a torne capaz de um dia prescindir da ajuda.
Não é um caminho fácil, de dois ou três anos, e nesse sentido pode insistir para que a cooperação não seja tão condicionada.
Rets - O governo Morales conseguirá frear a corrupção?
Hugo Aráoz - Até o momento ele tem mostrado capacidade de lidar com essa situação. Porém, é algo muito frágil, levando em consideração que a base do MAS é muito pobre. Agora mesmo, ao conversar com a Conamac [Conselho de Ayllus e Markas de Kollasuyo], organização do oeste da Bolívia, lhes disse que muita gente o ajudou com poucos recursos próprios, gente que só tem “água e coca”. Ou seja, que só tem comida para o café da manhã, o resto do dia passam a água e coca. São pessoas com seus princípios, mas, se colocam riquezas de uma vez em sua frente, é algo muito traumático. Algumas organizações de sucesso morreram por causa de subornos.
Isso sempre pode acontecer aqui, na China, em qualquer parte. Por outro lado, de uns anos para cá, tem havido um esforço muito grande para entender como as coisas funcionam. Se perguntar a qualquer pessoa sobre hidrocarbonetos verá que não está desinformada – o que é algo atípico. Esse é um tema difícil até em países desenvolvidos, mas, por meio de debates (é preciso lembrar que boa parte da cultura boliviana é oral), as pessoas desenvolveram um certo controle social.
Não se pode dizer que não vai haver corrupção, isso acontece nas melhores famílias.
Rets - É preciso manter a mobilização social para evitar a corrupção...
Hugo Aráoz - É preciso desenvolver capacidades de evitar a corrupção em todos os níveis. Nem sempre ela acontece nas altas esferas, muitas vezes também ocorre nas baixas.
Rets - A democracia está consolidada na Bolívia?
Hugo Aráoz - Não é tão fácil dizer que a democracia está consolidada. O que está consolidado é a opção feita pela democracia na Bolívia. É preciso ter em conta que houve uma revolução em 1952, que foi muito importante então, porque a terra era vendida com os índios dentro. Depois vieram regimes militares e depois duas ondas de guerrilhas e tempos depois o povo optou pela democracia. Foi algo muito importante. Houve pressão dos EUA, principalmente no governo de [Jimmy] Carter, mas no governo de Banzer houve um movimento popular que fez greve de fome pela anistia irrestrita a todos que haviam sido perseguidos por crimes políticos ou sindicais. Eles foram autorizados a voltar ao país e participar de eleições. Esse foi um dos momentos mais críticos da história e foi quando o povo optou pela democracia e houve um movimento para levar as pessoas a decidirem por si mesmas.
As pessoas que votaram em Evo Morales votaram por si mesmas. Antes, votaram por outras pessoas. Nesse sentido, não creio que a democracia esteja consolidada, pois em um país tão atrasado, tudo é atrasado - como, por exemplo, a democracia, a Justiça etc. Mas a opção por esse caminho está consolidada e já começa a mostrar resultados.
Paulo Lima, de La Paz
Colaborou Marcelo Medeiros
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