Autor original: Joana Moscatelli
Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor
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Prática comum durante a ditadura militar brasileira nos anos 70, a tortura ainda hoje faz parte da realidade de muitos brasileiros – geralmente jovens, pobres e negros. Embora recorrente em prisões e delegacias do país, tanto a sociedade quanto as autoridades públicas nada fazem para impedir casos de tortura, legitimando tal prática e estimulando a impunidade. Atender vítimas desse tipo de violação aos direitos humanos é o objetivo do Projeto Clínico do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.
O projeto nasceu em 1991, quando a organização sentiu a necessidade de oferecer apoio médico-psicológico a pessoas que sofreram e sofrem com a prática da tortura no Brasil. A maioria dos pacientes foi vítima do período militar brasileiro (1964-1984), mas pessoas atingidas pela violência da ação policial nos dias de hoje também participam. Por ano, cerca de cem pessoas são atendidos.
A iniciativa atua em dois eixos principais: assistência e formação. Na área de assistência, o Grupo oferece apoio médico-psicológico e jurídico. Vera Vital Brasil, psicóloga-clínica do Tortura Nunca Mais, explica que ao longo do tempo houve uma necessidade de criar um suporte jurídico para fortalecer e apoiar pessoas vítimas de tortura. “Percebemos que as pessoas precisavam não só de apoio psicológico, mas de orientação jurídica para reivindicar seus direitos e punir os responsáveis pelos crimes cometidos contra elas”.
O trabalho clínico é realizado de acordo com cada caso específico. São oferecidas diversas modalidades terapêuticas, aplicadas conforme a necessidade de cada paciente. Entre as modalidades disponíveis estão: psicoterapia individual e em grupo, terapia com medicamentos, reabilitação social e física. A preferência é dada para o trabalho em grupo, que possibilita uma “análise dos processos subjetivos indissociada dos processos políticos e sociais”. Junto à terapia individual, essa prática vem ajudando os pacientes a reconstruir suas vidas.
Outra vertente do projeto é a formação de agentes de saúde com foco em direitos humanos. Para a equipe clínica do grupo, os profissionais de saúde no Brasil foram e ainda são formados sem uma perspectiva clínica vinculada à realidade social e política do país. Por isso o projeto busca difundir sua experiência na área através de oficinas, encontros e seminários, oferecendo instrumentos técnicos e teóricos aos profissionais.
Atualmente, são oferecidas diversas oficinas em regiões pobres do Rio de Janeiro, onde o atendimento a vítimas da tortura é precário. “O objetivo é formar novos agentes de trabalho na área, ampliando o foco do Grupo para pessoas de baixa renda atingidas por esse tipo de violência. Percebemos que essas pessoas não chegavam aos nossos consultórios”.
Rede Latino-Americana contra a Tortura
O Grupo Tortura Nunca Mais-RJ integra a Rede Latino-Americana e do Caribe de Instituições de Saúde contra Tortura, Impunidade e Outras Violações dos Direitos Humanos. Formada em 1999, a rede reúne organizações civis da região que buscam atender, na área da saúde, pessoas afetadas por esse tipo de violação de direitos humanos. O objetivo é aliviar o sofrimento e reparar o trauma psicossocial oriundo dessas práticas, bem como contribuir para a recuperação e construção da memória histórica dos povos da região.
Nos anos 60 e 70, a grande maioria dos países da América Latina sofreu com ditaduras militares que reprimiam duramente qualquer forma de oposição ao regime. Milhares de pessoas foram assassinadas, seqüestradas e torturadas em nome da chamada ordem social. Em 1975, governos militares da América do Sul resolveram se unir e organizar uma ação coordenada dos seus serviços de inteligência: a chamada Operação Condor. O intercâmbio de informações facilitava a prisão, a tortura e o extermínio de militantes de esquerda, principalmente de países como Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia.
Porém, apesar do fim dos regimes militares e da redemocratização da região, recentemente, durante o 6º Fórum Social Mundial, em Caracas, Venezuela, um integrante da Associação Americana de Juristas denunciou uma suposta continuação das atividades da Operação Condor. Segundo ele, o alvo agora seriam os sem-teto, os sem-terra, os defensores de direitos humanos e os jornalistas.
Vera Brasil denuncia que, apesar de vivermos em um Estado de Direito, a tortura ainda é uma prática institucionalizada no Brasil e em muitos outros países da América Latina. Segundo ela, mesmo que não exista uma ação sistemática semelhante à Operação Condor, diariamente pessoas são torturadas, executadas e assassinadas em instituições carcerárias e áreas pobres.
“A situação não mudou, e se intensifica graças a políticas neoliberais que excluem grande parte da população. No Brasil, jovens negros e pobres são constantemente vítimas de chacinas e execuções sumárias. A diferença é que agora as vítimas não são mais opositores políticos, mas sim setores populares, marginalizados pela sociedade”.
Um mal que persiste
A tortura foi e ainda é um dos instrumentos mais usados pelas autoridades policiais do Brasil. E o que é pior: parte da sociedade ainda encara tal prática como um “mal necessário” no combate à criminalidade. Tortura-se para se fazer falar, punir, intimidar e manter sob controle pessoas consideradas perigosas.
Um exemplo recente é o caso do assassinato do chinês Chan Chang, em setembro de 2003, no presídio Ary Franco, no Rio de Janeiro (RJ). Chang foi espancado por agentes policiais e presos e levado com traumatismo craniano ao Hospital Salgado Filho, onde morreu. O diretor da unidade não tomou providências, mas a luta dos familiares de Chang e a repercussão na mídia fizeram com que o caso, diferentemente de muitos outros semelhantes, tivesse uma resposta um pouco mais contundente. Os policiais acusados tiveram sua prisão preventiva decretada e o diretor da unidade foi afastado do cargo.
Embora as autoridades tratem de situações desse tipo como exceções à regra, elas são muito comuns nas prisões e regiões pobres do país. Vera Brasil lembra outro caso chocante que apareceu nas páginas de jornais em 2005: a chacina da Baixada Fluminense (RJ), em que 30 pessoas foram executadas por agentes policiais nos municípios de Queimados e Duque de Caxias. “O que o Tortura Nunca Mais busca é denunciar tanto os casos de tortura do passado como os atuais. Ainda acontecem muitas violações dos direitos humanos”.
São inúmeros os episódios de violações aos direitos humanos que ainda hoje, em pleno regime democrático, persistem. Candelária, Vigário Geral e Carandiru são alguns nomes que marcaram a história recente do país. São locais onde pessoas, entre as quais crianças e adolescentes, foram executadas sumariamente – todas elas de origem social pobre e desprovidas de seus direitos básicos de cidadãos. Entre os criminosos, muitos ainda não foram punidos. Um deles, mesmo depois de condenado a 632 anos de prisão por ter comandado a ação que resultou no extermínio de 111 presos na Penitenciária do Carandiru, em São Paulo, foi eleito deputado estadual e tem hoje direito a foro privilegiado. Recentemente, pediu a anulação de sua sentença. O Tribunal de Justiça deve julgar o pedido na próxima semana.
Impunidade
A impunidade é um dos principais fatores que corroboram a prática da tortura no Brasil. Até hoje, depois de mais de 20 anos de democracia, é negado à sociedade o acesso aos arquivos públicos do período militar brasileiro.
“Há uma tentativa por parte dos militares em boicotar a abertura desses arquivos. Exemplos são os incêndios que aconteceram nas bases militares nos estados da Bahia e do Rio Grande do Sul. É direito de todo o cidadão conhecer como, quando, por que e quem matou ou torturou pessoas durante o regime militar. Para que as vítimas da tortura possam reconstruir suas vidas, é especialmente importante saber quem praticou o quê. Não se faz justiça se não se conhece o autor do crime. O Brasil é um dos países mais atrasados em relação a essa questão na América Latina. Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai já abriram seus arquivos da ditadura à sociedade.”
Para a psicóloga, é importante elucidar o que aconteceu na ditadura e fazer justiça, punindo os responsáveis pelos crimes cometidos. Segundo ela, negar o acesso a documentos oficiais da ditadura é estimular uma atitude de complacência em relação a práticas como a tortura. Não é à toa, afirma, que esse tipo de violação ainda hoje encontra legitimidade em grande parte de nossa sociedade, que não atenta para a gravidade da situação.
Em 1996, o projeto, que já contava com apoio do Fundo Voluntário das Nações Unidas para as Vítimas da Tortura (FVNUVT), recebeu suporte financeiro da Comunidade Européia. Pessoas interessadas em ser atendidas pelo projeto devem entrar em contato com o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, cuja sede fica na Rua General Polidoro, 238, em Botafogo.
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