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Os atuais números da violência política na América do Sul

Autor original: Marcelo Medeiros

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Os atuais números da violência política na América do Sul

O restabelecimento dos regimes democráticos dos países sul-americanos durante os anos 80 contribuiu, significativamente, para a diminuição da violência política ocorrida nas décadas anteriores. Informes sobre os métodos e números relacionados com os crimes políticos dos anos 60 e 70, período no qual a maioria dos países latino-americanos encontrava-se sob as amarras dos regimes autoritários, já foram amplamente divulgados. O trabalho investigativo foi resultado da iniciativa de organizações acadêmicas, não-governamentais e religiosas de diferentes espectros políticos. Agências internacionais de notícias, apesar do pouco destaque que conferem às pesquisas, também contribuíram, de forma significativa, para o levantamento dos números da violência política na América do Sul. Essas primeiras investigações depararam-se com sérios obstáculos para compor um levantamento fidedigno, como a falta de fontes locais confiáveis e a censura imposta pela maioria dos governos. No entanto, é inegável a importância que essas primeiras pesquisas tiveram na difusão da verdadeira natureza das ditaduras sul-americanas.

Nada obstante o contexto histórico contemporâneo notadamente menos opressivo que as décadas autoritárias, atualmente a violência política ainda persiste em muitos países da região. A tradição investigativa iniciada no auge das ditaduras, contudo, parece ter se extinguido após a consolidação democrática. Mas o Observatório Político Sul-americano (OPSA) do Iuperj retoma essa tradição, com o objetivo de atualizar seu legado teórico-metodológico e prover os atuais números da violência política na América do Sul.

A metodologia utilizada pelo OPSA consiste no recolhimento e na classificação mensal de informações de todos os países sul-americanos, com exceção da Guiana e do Suriname, a partir dos principais jornais nacionais. Os eventos mais relevantes são regularmente incluídos em um banco de dados construído pelo Observatório. As categorias de violência política utilizadas foram: mortos; feridos; seqüestros e/ou desaparecimento. Além do mais, essas categorias são classificadas segundo os destinatários da violência: forças de segurança do Estado; grupos armados organizados; civis e incertos. Por último, a informação é ordenada por localização geográfica da ocorrência: capitais nacionais, das províncias ou departamentos; e interior. Essas informações podem ser consultadas gratuitamente na Internet (http://observatorio.iuperj.br).

Vale a pena ressaltar que a ausência de estudos recentes comparados sobre o tema contrasta com o número da violência política sul-americana. Segundo os dados organizados pelo OPSA, entre os meses de fevereiro e novembro de 2005, o número de vítimas chega a 1603. Não deve chamar a atenção que 55% do total corresponda à Colômbia. O caso colombiano merece um olhar especial. O grave conflito armado no país há mais de 40 anos é responsável por quase a totalidade das vítimas fatais (67%), localizadas, em sua maioria, no interior do país (91,6%) e distribuída de maneira uniforme ao longo do ano. Ademais, 63% foram vítimas de grupos armados organizados e forças de segurança do Estado. O resto se divide entre civis e incertos. O Equador, com 27% do total sul-americano e com uma população muito inferior a da Colômbia (13 milhões de habitantes), é o segundo país com as maiores taxas regionais. Diferente do vizinho Colômbia, 87% das vítimas estão concentradas no mês de abril, período no qual as manifestações contrárias ao governo de Lucio Gutiérrez foram duramente reprimidas pelas forças policiais na capital do país, resultando em 2 mortes e 360 pessoas feridas, a grande maioria, civis. A Bolívia, o terceiro no ranking, com 7,6% do total, também deve seus números, em grande medida, à instabilidade política e institucional que o país atravessou. De fato, uma parte considerável da violência política na Bolívia foi conseqüência dos conflitos provocados pelo episódio da lei dos hidrocarbonetos, que culminou na renúncia do presidente Carlos Mesa em junho de 2005. Outra parte é produto de um problema que o país compartilha com diversas nações sul-americanas: a injusta distribuição de terras produtivas. 77% dos números bolivianos estão relacionados com esse tema, e, a maior parte, obviamente, corresponde a civis. Lamentavelmente, por vários motivos, os conflitos agrários e as vítimas que produzem representam tema que têm interessado pouco à impressa e aos governos de nossa região. A limitada repercussão desses eventos pode ser comprovada, por exemplo, pelo reduzido número de vítimas registradas no Paraguai (somente 9), país no qual a imprensa não dedica uma cobertura apropriada sobre os graves problemas agrários e onde existe clara falta de vontade política nas investigações nos incidentes relativos aos conflitos agrários.

No caso do Chile, sem registro de vítimas durante o ano de 2005, poderia ser considerado como um paradigma de ruptura bem sucedida com o passado de violência política. Vale a pena recordar que o país passou 17 anos sob o domínio de um dos mais violentos regimes autoritários da região. É evidente que a estabilidade política e social alcançada pelo Chile reflete a ausência de cifras de conflitos de natureza política. Brasil e Uruguai, apesar das diferenças na dimensão geográfica e populacional, representam aproximadamente 1% do total regional, e, nesse sentido, poderiam ser incluídos na mesma categoria do Chile. No caso da Argentina, com 4,3% do total, os eventos de violência política relacionam-se, fundamentalmente, com os conflitos derivados de protestos sociais e salariais freqüentes neste país. Peru, com 2,9%, deve esta cifra também a conflitos salariais e à violência produzida pela repressão dos protestos impulsionados pelos agricultores dedicados ao cultivo da folha de coca, situados no interior do país. O caso da Venezuela merece atenção especial, posto existe um contraste com o elevado número de vítimas registradas nos anos anteriores, período que registra 18 mortes ocorridas nos protestos de abril de 2002. A partir do reduzido número de vítimas registradas no país – questionado, em algumas ocasiões, por sua falta de compromisso com as instituições democráticas – poderíamos dizer que a Venezuela está muito distante de ser confundida com as sangrentas ditaduras latino-americanas das décadas de 60 e 70.

Os indicadores de violência política organizados pelo OPSA certamente não expressam a realidade total do fenômeno que, sem dúvida, é muito mais amplo e complexo do que aponta o senso comum. Os indicadores tão-somente ajudam a mostrar tendências a partir da delimitação e classificação da informação extraída dos principais jornais de cada país, muitos dos quais nem sempre informam de forma adequada o conjunto dos eventos relacionados com a violência política. Uma boa parte dos eventos que envolvem conflitos agrários, por exemplo, provavelmente estão ausentes em nossos registros em razão do problema mencionado.

Os números da violência política trabalhados pelo OPSA durante o ano de 2005, no entanto, permitem uma visão geral sobre a questão. Em primeiro lugar, existem diferentes categorias de países sul-americanos. Três países andinos, especialmente a Colômbia e o Equador, e, em menor medida, a Bolívia, registram os maiores índices de violência política, e refletem uma grande instabilidade vivida por seus regimes, ainda que de naturezas distintas. Em um extremo oposto encontram-se aqueles países que, como no caso do Chile, os dados permitem considerar que lograram superar, com baste êxito, seu passado de violência política, mesmo diante da persistência de formas mais tênues de instabilidade político-institucional que, salvo raras exceções, não resultaram em conflitos violentos.

No ano de 2005, o OPSA iniciou a tarefa de construção de um mapa sobre a violência política na América do Sul, procurando ocupar um vazio deixado por setores da academia, da sociedade civil e do Estado. Essa tarefa continuará e irá se aperfeiçoar no ano de 2006 com o objetivo de promover um melhor conhecimento e difusão de informações sobre a questão que, apesar das grandes mudanças políticas que a região enfrentou, ainda seguem produzindo resultados preocupantes.

Marcelo Coutinho e Juan Claudio Epsteyn são pesquisadores do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj)





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